Comentários ao Evangelho II Domingo Advento – Ano C – Lc 3, l-6
1 No décimo quinto ano do império de libério César, quando Pôncio
Pilatos era governador da Judeia, Herodes administrava a Galileia, seu irmão
Filipe, as regiões da Itureia e Traconítide, e Lisânias a Abilene; 2 quando
Anás e Caifás eram sumos sacerdotes, foi então que a palavra de Deus foi
dirigida a João, o filho de Zacarias, no deserto.
3 E ele percorreu toda a região do Jordão, pregando um batismo de
conversão para a perdão dos pecados,4 como está escrito no Livro das palavras
do profeta Isaías: “Esta é a voz daquele que grita no deserto: ‘preparai o
caminho do Senhor, endireitai suas veredas.5 Todo vale será aterrado, toda
montanha e colina serão rebaixadas; as passagens tortuosas ficarão retas e os
caminhos acidentados serão aplainados. 6 E todas as pessoas verão a salvação de
Deus” (Lc 3, l-6).
A verdadeira procura da felicidade
Em busca da
felicidade, muitos se arriscam por vias equivocadas que terminam na frustração.
A mensagem de São João Batista surge na História como um farol seguro a
iluminar o caminho para encontrá-la.
I – A PROCURA DA FELICIDADE
Quem se detivesse a fazer uma
breve análise das pessoas do próprio meio ou até de outras menos próximas —
incluindo antepassados, personagens históricos, figuras destacadas no contexto
mundial hodierno ou de outrora —, perceberia que, apesar da diferença de
mentalidade, aptidões ou estilo de vida, é possível nelas distinguir um traço
comum, norteador de seus atos: o desejo de ser feliz. Entretanto, apesar de
todos, sem exceção, procurarem a felicidade com infatigável ardor, muitos
chegam ao fim de seus dias sem a terem encontrado... Qual será a causa desses
esforços frustrados? O problema é que “todos querem ser felizes e nem todos
desejam viver do único modo como se pode ser feliz”,1 observa Santo Agostinho.
Ao invés de orientar sua existência para Deus, Bem supremo e fim último do
homem, único Ser que sacia por completo esta aspiração, muitos são ludibriados
pelo mundo e acabam trilhando vias paralelas ao verdadeiro caminho. Nunca serão
felizes, pelo simples fato de seguirem um itinerário que não conduz a Deus.
Alguns, por exemplo, enredam-se
nas ilusões do dinheiro. Veem o equilíbrio financeiro como sinônimo de
prestígio, poder e influência na sociedade, bem como garantia de um futuro
despreocupado. Não é raro, porém, que a existência de quem muito possui tenha
características bem diversas de uma estável tranquilidade, sobretudo quando
entesouram para si mesmos e não são ricos para Deus (cf. Le 12, 21). Vivem na
insaciável ambição de acumular cada vez mais pois quem “ama a riqueza nunca se
fartará” (Ecl 5, 9) — e, quanto maior for a opulência, tanto maiores serão suas
aflições para administrá-la e conservá-la. Já para outros, a ilusão será a
ciência. Aspirando a dominar assuntos de difícil compreensão para o geral das
pessoas e obstinados pela ideia de serem laureados pela erudição, consomem o
tempo em estudos, pesquisas e escritos. Fazem do saber a finalidade última da
existência, esquecendo-se de que ele é apenas um meio dado por Deus ao homem
para conhecê-Lo melhor e remontar a considerações mais elevadas. Por ser
limitado, o conhecimento humano jamais satisfará a sede de felicidade da alma,
que anseia pelo Infinito. Por isso, muitos intelectuais, mesmo sendo aplaudidos
pelo mundo, terminam seus dias na amargura. E, às vezes, esses falsos caminhos
levam não só à frustração, como também ao absurdo. E o que se verifica em
nossos dias, por exemplo, com pessoas que se submetem a dietas rigorosas para
se adequarem aos padrões de beleza física impostos pela moda. Julgando que se
sentirão plenamente satisfeitas com os elogios e a admiração provocada por uma
exagerada magreza, prescindem não só do nobre prazer do paladar temperante, mas
inclusive da saúde. Em casos extremos, essa enganosa via da felicidade torna-se
um atalho para abreviar a própria vida...
Nessa perspectiva, nossa
consideração recai sobre uma figura ímpar na História, contemplada neste 2º
Domingo do Advento: o Precursor de Nosso Senhor Jesus Cristo. Que relação
podemos encontrar entre sua mensagem e a busca da felicidade?
A PREGAÇÃO DE JOÃO BATISTA
1 No décimo quinto ano do império de libério César, quando Pôncio
Pilatos era governador da Judeia, Herodes administrava a Galileia, seu irmão
Filipe, as regiões da Itureia e Traconítide, e Lisânias a Abilene;
Para situar cronologicamente o
início da missão do Precursor e delinear a conjuntura histórica em que se
encontrava o povo judeu naquela época, São Lucas abre seu terceiro capítulo
nomeando as autoridades políticas da Palestina. O poder supremo do Império
Romano era então exercido por Tibério, “um dos mais mal-afamados tiranos da
História universal”2 devido à duplicidade de caráter e irrefreável espírito
vingativo que marcou sua conduta no governo. Pôncio Pilatos foi por ele
constituído procura dor da Judeia 3 e, sob todos os aspectos, mostrou-se um
autêntico representante do arbitrário césar. Os relatos evangélicos da
condenação de Jesus retratam o procurador como homem covarde e egoísta, capaz
de derramar sangue inocente para salvaguardar os próprios interesses, e seus
contemporâneos Filon e Flávio Josefo são ainda mais categóricos ao descrever
sua má índole, dizendo ter-se destacado “por seu desdém à Lei judaica, não
obstante estivesse reconhecida pelos romanos, e por sua pérfida crueldade”.4
Aproveitava ele qualquer pretexto para infringir os preceitos mosaicos e assim
ferir a religiosidade e o nacionalismo israelita, pois “não somente odiava seus
súditos, como também tinha uma prepotente necessidade de mostrar-lhes seu
ódio”.5
Os tetrarcas Herodes Antipas e
Filipe, mencionados logo em seguida, eram filhos de Herodes, o Grande. Seu
governo, portanto, significava para os judeus a humilhante condição de dupla
sujeição aos gentios: os romanos e os idumeus. A respeito de Antipas, basta
lembrar a alcunha de raposa que lhe foi dada pelo Divino Mestre (cf. Lc 13, 32)
para se ter uma acertada noção de sua personalidade. A maneira desse astuto
animal, o comportamento do tetrarca era regido conforme a prudência carnal,
vício caracterizado por “uma hábil sagacidade em encontrar os meios mais
oportunos para entregar-se a toda espécie de concupiscências desordenadas”.5
Seu irmão Filipe, pelo contrário, foi honrado em sua vida particular e exerceu
de modo correto as funções administrativas, a ponto de ser considerado uma
exceção à regra dos herodianos.7 Quanto à Abilene, província limítrofe da
Judeia governada por Lisânias,8 tetrarca de origem grega, o Evangelista a
inclui nesta relação porque tal território fazia parte dos “limites assinalados
por Deus a Abraão [...] e é provável que estivesse habitada em sua maior parte
por judeus, embora sob o domínio de um estrangeiro”,9 comenta Maldonado.
Reavivamento das expectativas messiânicas
2… quando Anás e Caifás eram sumos sacerdotes...
Desde a época de Herodes, o
Grande, os pontífices eram instituídos e depostos conforme os interesses dos
imperadores ou das autoridades políticas locais, existindo, com frequência,
negociações corruptas por detrás de cada nomeação. Tal decadência moral do
judaísmo se agravou com Anás, o qual constituiu uma organização familiar
cúmplice do poder romano e herodiano, à custa de subornos, passando a controlar
todo o establishment israelita. No momento histórico descrito pelo Evangelista,
o cargo, que era individual, estava ocupado por Caifás, genro de Anás. São
Lucas nomeia ambos pelo fato de Anás, deposto havia anos, ainda exercer tamanha
influência que sua palavra era equivalente à voz do sumo sacerdote oficial.10
Essa deplorável situação
religiosa somada à opressão política refletia-se no povo e resultava num estado
geral de depauperamento. Pesavam-lhe os impostos e os próprios costumes
judaicos se dessoravam sob o influxo do paganismo romano. Em nenhum momento,
contudo, os israelitas perderam as esperanças a respeito do Messias prometido
por Deus aos patriarcas e anunciado pelos profetas. Ele viria “para curar os
corações doloridos, anunciar aos cativos a redenção, e aos prisioneiros a
liberdade” (Is 61, 1), e apareceria num período de extrema desolação para a
nação judaica. Por isso, à medida que a situação piorava, a realização da
promessa messiânica parecia mais iminente. No entanto, a errônea interpretação
das profecias levava os judeus a imaginar o Salvador como um herói nacional que
os libertaria do jugo romano — considerado o grande mal do qual decorriam todos
os outros infortúnios de Israel — e dar-lhes-ia uma insuperável projeção
política, social e financeira, bem como a supremacia em relação a todos os
outros povos da Terra.
Em meio a tão singular
atmosfera, na qual se confundiam o desalento e a expectativa, um novo profeta
manifestou-se à nação eleita.
Um Precursor à altura?
2b…foi então que a palavra de Deus foi dirigida a João, o filho de
Zacarias…
Devido aos diversos fatos
extraordinários relacionados com o nascimento de São João Batista (cf. Lc 1,
5-25.57-66), as notícias a seu respeito se propagaram “por todas as montanhas
da Judeia” (Lc 1, 65), despertando a admiração popular. A esse início cheio de
celebridade, porém, sucederam-se anos de completo apagamento aos olhos do
mundo. Apartando-se do convívio social, João “viveu no deserto até o dia em que
se apresentou diante de Israel” (Lc 1, 80). Tal deserto corresponde a uma
região agreste, quase toda desabitada, compreendida entre o Lago de Genesaré e
o Mar Morto, e que se estendia a partir da margem ocidental deste último até os
limites das terras férteis da Judeia. Ali o menino cresceu e fortificou-se em
espírito (cf. Lc 1, 80) pela prática de um rigoroso ascetismo, vestindo-se de
pele de camelo e alimentando-se de mel silvestre e gafanhotos (cf. Mc 1, 6; Mt
3, 4), até à idade de mais ou menos trinta anos,11 quando começou a exercer seu
ministério. Esse estilo de vida permite-nos imaginá-lo como “um homem
profundamente recolhido, de uma grande delicadeza de alma e extrema modéstia,
tão absorto em Deus que se tem a impressão de que só com esforço ele consegue
sair de sua contemplação”.12
À primeira vista, tão
misteriosa austeridade pode parecer o extremo oposto da glória infinita do
Verbo Encarnado, de quem João era Precursor. Da mesma forma como a entrada do
Menino Deus no mundo havia sido anunciada aos pastores por um Anjo refulgente
de luz (cf. Lc 2, 9) e aos Reis Magos pela estrela que os conduziu a Belém (cf.
Mt 2, 1-12), seria de se esperar que o começo de sua vida pública também fosse
precedido por aparições semelhantes ou por extraordinários fenômenos da
natureza. Bem diferente, entretanto, foi o anúncio feito por João Batista, pois
sua grandeza não era aparatosa. “Sua autoridade lhe vinha desta pureza mais que
terrestre e da majestade da graça que o destacava aos olhos do povo como um
homem superior ao resto da humanidade, encarregado de censurar e repreender, é
verdade, como também investido de uma missão de inefável misericórdja”.13
A essência da verdadeira grandeza
Entre outras razões, Deus
procedeu desta forma para não tirar aos judeus a possibilidade de adquirir o
mérito da fé, crendo na divindade de Jesus quando O vissem pessoalmente. Com efeito,
se as exterioridades do arauto de Cristo correspondessem às pompas do
cerimonial prestado à Segunda Pessoa da Santíssima Trindade pela corte celeste,
ter-se-ia extinguido o estado de prova dos contemporâneos de Nosso Senhor em
relação ao mistério da Encarnação. Pela força da evidência, o aspecto
esplendoroso de João Batista seria suficiente para concluir que o Mestre por
ele anunciado era o próprio Deus.
Por outro lado, quis a
Providência nos ensinar que o verdadeiro valor do homem está em seu interior,
embora muitas vezes o mundo não o reconheça. Não foi entre os líderes da
política ou da religião em Israel, cujos nomes abrem o Evangelho de hoje, que
Deus escolheu o seu Precursor. O eleito para esta missão de importância ímpar
na História foi um homem sui generis para os costumes da época, sem qualquer
prestígio social. Não obstante, sua excelência sobrenatural fê-lo ultrapassar
em grandeza a todos os homens, conforme o próprio Jesus revelou: “Em verdade
vos digo, não surgiu entre os nascidos de mulher alguém maior que João Batista”
(Mt 11, 11). Portanto, como é próprio à ação divina, também neste caso a
Providência escolheu o que havia de melhor. O anunciador de Cristo possuía a
mais nobre das qualificações: fora santificado ainda no ventre materno, tornando-se
cheio do Espírito Santo e, por isso, era “grande diante do Senhor” (Lc 1, 15).
Daí decorre também ser São João
Batista um exemplo do quanto, para Deus, mais vale o homem pelo que é do que
por aquilo que faz. Nossos atos exteriores nos obtêm mérito sobrenatural mais
pela disposição interior que nos anima, do que pelo esforço empregado ao
realizá-los. Modelo supremo, nesse sentido, é Maria Santíssima, cujo amor a
Deus e fervor de intenção fê-la dar “mais glória a Deus pela menor de suas
ações — por exemplo, fiando na roca, dando pontos de agulha —, que São Lourenço
sobre a grelha, no seu cruel martírio, e o mesmo em relação às mais heroicas
ações de todos os santos”,’4 ensina São Luís Grignion de Montfort.
Simbolismo do deserto
2c …no deserto…
Além de referir-se ao local
onde São João viveu e recebeu a revelação, o deserto pode ser interpretado em
sentido simbólico. Assim como aquela região era desabitada, também o Precursor
estava livre de apegos materiais e pretensões mundanas, vazio de si mesmo. O
deserto é uma bela imagem da alma dignamente preparada para receber Jesus e
participar do Reino de Deus: despojada das manias e dos caprichos egoístas,
afastada do materialismo reinante no mundo, deserta de vaidades e ambições.
Um batismo de penitência
3 E ele percorreu toda a região do Jordão, pregando um batismo de
conversão para o perdão dos pecados...
De modo diferente dos antigos
profetas, João Batista não se dirigiu às cidades, nem aos locais públicos onde
era comum haver aglomerações. Percorrendo as agrestes cercanias do rio Jordão,
começou ali mesmo a pregar àqueles que encontrava — bem poucos, certamente. O
impacto causado por sua pessoa e pelo vigor de sua mensagem teve rápida
repercussão, e logo “saíam para ir ter com ele toda a Judeia, toda Jerusalém”
(Mc 1, 5). Naquela região, outrora solitária, tornou-se intensa a circulação de
judeus que procuravam encontrar no profeta o despontar da ansiada regeneração
moral e religiosa de Israel. Inclusive muitos carregavam em seu interior uma
dúvida cheia de esperança: não seria João o próprio Messias? Por isso, ora
discernindo os pensamentos dos corações, ora respondendo a perguntas
explícitas, o Precursor entremeava as exortações à penitência com afirmações
que dirimiam os equívocos a respeito de sua pessoa: “Eu vos batizo na água, mas
eis que vem outro mais poderoso do que eu, a quem não sou digno de desatar a
correia das sandálias” (Lc 3, 16). Se Aquele que deveria vir superava ainda
mais o admirável e arrebatador Batista, fazia-se mister preparar-se para
recebê-Lo.
Com vistas a esse grande
acontecimento, numerosos judeus receberam o “batismo de conversão”. Este,
contudo, não conferia a graça à alma15 como o Batismo sacramental instituído
depois por Cristo, pois era apenas um símbolo que consolidava a mudança de
mentalidade à qual João conclamava, ratificando de forma sensível o desejo de,
através da penitência, purificar-se espiritualmente a fim de poder participar
no iminente Reino de Deus.
Pregação de alto sentido simbólico
4 …como está escrito no Livro das palavras do profeta Isaías: “Esta é a
voz daquele que grita no deserto: ‘preparai o caminho do Senhor, endireitai
suas veredas”.
Essas palavras de Isaías, que
prenunciaram o fim do exílio do povo judeu na Babilônia e o retorno à
Palestina, haviam atravessado os séculos como sinal de consolo e perdão. Nos
lábios do Precursor, todavia, a mesma mensagem revestiu-se de caráter
penitencial, penetrando a fundo nas consciências e movendo-as à conversão.
Importante é lembrarmo-nos de
que a pregação de João Batista não foi dirigida somente aos que tiveram a
ventura de viver no tempo de Jesus. Conforme ensina São Bernardo, a vinda de
Nosso Senhor ao mundo pode ser dividida em três etapas, das quais a primeira
corresponde à sua vida mortal e a última ao Juízo após o fim do mundo, quando
Ele vier em Corpo glorioso. A segunda vinda, por sua vez, é cotidiana, quando
Ele vem a cada um de nós, pela sua graça.16 Jesus nos chama a cada momento, nas
mais diversas circunstâncias da vida, sendo necessário estarmos sempre prontos
para recebê-Lo.
Como outrora aqueles judeus que
acorriam às margens do Jordão, também nós devemos produzir “frutos de
verdadeira penitência” (Mt 3, 8), colocando em prática as admoestações do
Precursor. Em primeiro lugar, ele exorta a endireitar as veredas do caminho
pelo qual o Senhor passará em breve. Não se trata, evidentemente, de promover
uma obra de retificação das estradas palestinas. Toda a sua pregação tem alto
sentido simbólico e deve ser interpretada sob o prisma sobrenatural. Esta
advertência é um apelo para eliminar os desvios que se estabelecem na alma
quando se quer conjugar a adoração a Deus com o egoísmo. Quem não se empenha em
combater os defeitos pessoais nem em progredir na perfeição acaba entrando
pelas tortuosas sendas dos vícios à margem do bem, sem, todavia, querer
abandoná-lo por inteiro. Cedo ou tarde, o dinamismo do mal termina sufocando
uma frágil adesão à virtude e cai-se por inteiro na via do pecado.
Oportuno é, no Advento,
determos-nos um pouco em nossa caminhada espiritual e, abstraindo da
febricitação do mundo, examinar nossa consciência a fim de verificar se não
estamos, em algum ponto, construindo trajetos sinuosos em nossa vida. Façamos
então o firme propósito de endireitá-los, buscando a inteira coerência entre
nossa conduta e a Fé, o que se cifra no perfeito cumprimento dos Mandamentos da
Lei de Deus.
Eliminar a mediocridade e o orgulho
5a “‘Todo vale será aterrado, toda montanha e colina serão rebaixadas...’”
Chamado a viver em função de
sua dignidade de filho de Deus e a ter os olhos sempre postos nos elevados
panoramas da Fé, muitas vezes o homem dá as costas a esse plano superior e
concentra toda a atenção nas coisas concretas, preocupando-se excessivamente
com os bens materiais e com banalidades próprias à existência terrena. Tal
mesquinhez leva-o a se esquecer da efemeridade desta vida e, menosprezando a
eternidade, a viver como se o Criador não existisse. Formam-se na alma, então,
os vales da ausência de Deus. A par disso, há também montanhas e colinas na
vida espiritual. São as elevações do amor-próprio desregrado, o qual se
manifesta das mais diversas maneiras. Por exemplo, no desejo de chamar a
atenção alheia sobre as qualidades pessoais, reais ou supostas, procurando
sobressair em relação aos demais. Além de aterrar os vales da mediocridade
materialista, é preciso nivelar essas proeminências do orgulho.
É interessante aqui observarmos
um pormenor do texto evangélico, pois, neste versículo, o Precursor não dá uma
ordem, como no anterior, mas faz uma afirmação: os vales serão aterrados; as
montanhas e colinas serão rebaixadas Com a vinda de Nosso Senhor ao mundo foram
deixados à disposição da humanidade os Sacramentos, meios eficazes para essa
reforma interior. Conferindo a graça à alma, eles corrigem os desníveis que se
interpõem no caminho da perfeição e dificultam o progresso espiritual. Como
comenta São Cirilo, “quando Deus feito homem destruiu o pecado em sua carne,
tudo foi aplainado e se tornou fácil o caminho, não havendo montes nem vales
que fossem obstáculo para quem quisesse caminhar”.17 Resta ao homem unir a esse
auxílio divino o próprio esforço, sempre consciente de que cada avanço, mesmo
quando pequeno, se deve à graça obtida por Cristo e não a seu mero empenho.
As racionalizações, passagens tortuosas da consciência
5b “‘… as passagens tortuosas ficarão retas e os caminhos acidentados
serão aplainados”.
As racionalizações — ou seja,
os falsos raciocínios elaborados pelo homem para justificar suas próprias
faltas — são desvios muito sutis na vida espiritual, pois encobrem a
inconsistência do erro com a aparência sólida da verdade. As passagens
tortuosas são uma imagem adequada desses desonestos subterfúgios do pecador,
que foge ao se deparar com o aguilhão da consciência que o importuna,
advertindo-o a respeito do mal que pretende fazer ou repreendendo-o pelas
faltas já praticadas. Só com tais evasivas o homem consegue permanecer nos
acidentados caminhos do pecado. Para eliminar essas ardilosas irregularidades
do terreno é preciso a virtude da retidão, a qual faz a pessoa ver por inteiro
sua própria fraqueza e maldade, reconhecendo-se pecadora e necessitada do
amparo sobrenatural para não soçobrar nas tentações. Porém, o fator decisivo é,
mais uma vez, a ação divina, ressaltando aos olhos do homem o horror do pecado
e a noção de que Deus conhece todas as coisas, inclusive os mais íntimos
pensamentos e as intenções do coração.
Deus deve estar no centro da vida do homem
6 “‘E todas as pessoas verão a salvação de Deus”.
Estas palavras finais são muito
exatas, não só para significar a universalidade da missão de Nosso Senhor, como
também a atitude dos homens em relação a Ele, livres que são para aceitá-Lo ou
rejeitá-Lo e, em vista disso, obter a salvação ou a perdição eterna. Daí a
razão de São João não dizer que todos se salvarão, mas sim que todos verão a
salvação, como comenta o padre Duquesne: “O Salvador, enviado de Deus, veio
para todos os homens e foi anunciado a todos os homens; nem todos, entretanto,
O reconheceram e O seguiram. Mas dia virá em que todos O verão como seu
Juiz”.18
Finalmente, voltando ao
problema da felicidade, ao qual nos referíamos no início, podemos ver a
conversão pregada pelo Precursor como um farol seguro a iluminar o percurso
para lograr o êxito na busca desse tesouro desejado por todos nós, pois o
objetivo de cada um de seus ensinamentos se reduz a um só: fazer o homem viver
em função de Deus e não de si mesmo.
DEUS NOS LEVARÁ ATÉ O FIM
O Evangelho deste 2º Domingo do
Advento, ao mostrar-nos a estreita relação entre a conversão e a felicidade,
propõe a cada um de nós um desafio. De um lado, compreendemos a necessidade de
pôr em prática as admoestações de São João Batista, reformando-nos
espiritualmente. De outro, pesam-nos as consequências do pecado original e de
nossos pecados atuais, e vemos quão incapazes somos de levar a cabo uma reforma
interior sem a força da graça de Deus. Não conseguimos sequer fazer digna
penitência por nossas faltas! E o desafio da santidade, diante do qual se
encontra todo cristão. Cabe a nós nunca desanimar a meio caminho, mas crer com
fé robusta que Ele, tendo começado em nós essa boa obra, a levará à perfeição,
conforme escreve São Paulo aos Filipenses no trecho escolhido para a leitura
deste domingo (cf. Fi 1, 6). Tal obra se inicia com o Batismo, quando Deus
introduz na alma a graça, fazendo-a participar da vida divina. Conferida como
uma semente, deve ela se desenvolver durante toda a existência, “até alcançar
em cada um de nós a plenitude que corresponda ao grau de nossa predestinação em
Cristo”.19
Existem obstáculos, entretanto,
que impedem seu desenvolvimento... São os montes, vales e demais sinuosidades
colocadas pelo próprio homem no terreno de sua alma, onde a graça deveria
crescer, O desejo de remover tais empecilhos, o emprego de todos os meios a
nosso alcance para eliminá-los e, sobretudo, a confiança na onipotência divina
são a contribuição que a Providência espera de nós nessa obra de perfeição,
cujo Autor e Consumador é o próprio Deus.
Como alento de nossa esperança,
voltemos nosso olhar a Nossa Senhora, Auxílio dos Cristãos, que a cada instante
intercede por nós junto a seu Divino Filho. Todos os dons por nós recebidos nos
foram alcançados por sua mediação. Ora, “Ela não pode ser a Senhora das obras
inacabadas. Ela é a Senhora das construções terminadas, das grandes obras
levadas a termo”, afirma com unção o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira.
Resta-nos, portanto, abandonarmo-nos aos maternais cuidados de Maria
Santíssima, certos de que Ela mesma Se encarregará de conduzir à plenitude este
ousado empreendimento de nos fazer perfeitos assim como o Pai celeste é
perfeito (cf. Mt 5, 48).
1) SANTO AGOSTINHO. De Trinitate. L.XIII, c.4, n.7. In: Obras. Madrid: BAC, 1956, vV, p.7 12.
2) WEISS, Juan Bautista. Historia Universal. Barcelona: La
Educación, 1927, v.111, p.661.
3) Segundo os historiadores, Herodes, o Grande, deixara
consignado em testamento que após sua morte a Palestina fosse dividida entre
seus três filhos. E assim se fez: a Judeia, a Samaria e a Idumeia foram dadas a
Arquelau; Herodes Antipas recebeu a Galileia e a Pereia; e as terras situadas
ao norte da Transjordânia foram a parte de Filipe. Acusado de tirania, Arquelau
foi deposto por César Augusto e seu território tornou-se subjugado ao governo
da Síria. A partir de então, os imperadores nomeavam procuradores que se
estabeleciam na Judeia e exerciam sua autoridade em toda a província (cf.
RICCIOTI I, José. Historia de Israel. Buenos Aires: Excelsa, [s.d.], til,
p.412-413; SCHUSTER, Ignacio; HOLZAMMER, Juan B. Historia Bíblica. Barcelona:
Litúrgica Española, 1935, tII, p.76).
4) SCHUSTER; HOLZAMMER,
op. cit., p.132, nota 1.
5) RICCIOTTI, op. cit.,
p.430.
6) ROYO MARIN, OP,
Antonio. Teología
Moral para seglares. Madrid: BAC, 1996, v.1, p.421.
7) Cf. RICCIOTFI, op. cit.,
p.414.
8) Este dado do Evangelho de São Lucas foi causa de inúmeras
controvérsias durante longo período, devido à falta de provas de sua
historicidade. Julgava-se ter sido um equívoco do Evangelista a menção a
Lisânias como contemporâneo de Tibério (14-37), pois o rei Lisânias do qual se
tinha notícia fora morto antes da constituição do Império Romano, vítima de uma
instigação de Cleópatra junto a Antônio (cf. FLAVIO JOSEFO.Antiguidades
judaicas. LXV, c.4
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