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quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

Evangelho II Domingo do Advento – Ano C – Lc 3, l-6

Comentários ao Evangelho II Domingo Advento – Ano C – Lc 3, l-6

1 No décimo quinto ano do império de libério César, quando Pôncio Pilatos era governador da Judeia, Herodes administrava a Galileia, seu irmão Filipe, as regiões da Itureia e Traconítide, e Lisânias a Abilene; 2 quando Anás e Caifás eram sumos sacerdotes, foi então que a palavra de Deus foi dirigida a João, o filho de Zacarias, no deserto.
3 E ele percorreu toda a região do Jordão, pregando um batismo de conversão para a perdão dos pecados,4 como está escrito no Livro das palavras do profeta Isaías: “Esta é a voz daquele que grita no deserto: ‘preparai o caminho do Senhor, endireitai suas veredas.5 Todo vale será aterrado, toda montanha e colina serão rebaixadas; as passagens tortuosas ficarão retas e os caminhos acidentados serão aplainados. 6 E todas as pessoas verão a salvação de Deus” (Lc 3, l-6).
A verdadeira procura da felicidade
Em busca da felicidade, muitos se arriscam por vias equivocadas que terminam na frustração. A mensagem de São João Batista surge na História como um farol seguro a iluminar o caminho para encontrá-la.
I – A PROCURA DA FELICIDADE
Quem se detivesse a fazer uma breve análise das pessoas do próprio meio ou até de outras menos próximas — incluindo antepassados, personagens históricos, figuras destacadas no contexto mundial hodierno ou de outrora —, perceberia que, apesar da diferença de mentalidade, aptidões ou estilo de vida, é possível nelas distinguir um traço comum, norteador de seus atos: o desejo de ser feliz. Entretanto, apesar de todos, sem exceção, procurarem a felicidade com infatigável ardor, muitos chegam ao fim de seus dias sem a terem encontrado... Qual será a causa desses esforços frustrados? O problema é que “todos querem ser felizes e nem todos desejam viver do único modo como se pode ser feliz”,1 observa Santo Agostinho. Ao invés de orientar sua existência para Deus, Bem supremo e fim último do homem, único Ser que sacia por completo esta aspiração, muitos são ludibriados pelo mundo e acabam trilhando vias paralelas ao verdadeiro caminho. Nunca serão felizes, pelo simples fato de seguirem um itinerário que não conduz a Deus.

Alguns, por exemplo, enredam-se nas ilusões do dinheiro. Veem o equilíbrio financeiro como sinônimo de prestígio, poder e influência na sociedade, bem como garantia de um futuro despreocupado. Não é raro, porém, que a existência de quem muito possui tenha características bem diversas de uma estável tranquilidade, sobretudo quando entesouram para si mesmos e não são ricos para Deus (cf. Le 12, 21). Vivem na insaciável ambição de acumular cada vez mais pois quem “ama a riqueza nunca se fartará” (Ecl 5, 9) — e, quanto maior for a opulência, tanto maiores serão suas aflições para administrá-la e conservá-la. Já para outros, a ilusão será a ciência. Aspirando a dominar assuntos de difícil compreensão para o geral das pessoas e obstinados pela ideia de serem laureados pela erudição, consomem o tempo em estudos, pesquisas e escritos. Fazem do saber a finalidade última da existência, esquecendo-se de que ele é apenas um meio dado por Deus ao homem para conhecê-Lo melhor e remontar a considerações mais elevadas. Por ser limitado, o conhecimento humano jamais satisfará a sede de felicidade da alma, que anseia pelo Infinito. Por isso, muitos intelectuais, mesmo sendo aplaudidos pelo mundo, terminam seus dias na amargura. E, às vezes, esses falsos caminhos levam não só à frustração, como também ao absurdo. E o que se verifica em nossos dias, por exemplo, com pessoas que se submetem a dietas rigorosas para se adequarem aos padrões de beleza física impostos pela moda. Julgando que se sentirão plenamente satisfeitas com os elogios e a admiração provocada por uma exagerada magreza, prescindem não só do nobre prazer do paladar temperante, mas inclusive da saúde. Em casos extremos, essa enganosa via da felicidade torna-se um atalho para abreviar a própria vida...
Nessa perspectiva, nossa consideração recai sobre uma figura ímpar na História, contemplada neste 2º Domingo do Advento: o Precursor de Nosso Senhor Jesus Cristo. Que relação podemos encontrar entre sua mensagem e a busca da felicidade?
A PREGAÇÃO DE JOÃO BATISTA
1 No décimo quinto ano do império de libério César, quando Pôncio Pilatos era governador da Judeia, Herodes administrava a Galileia, seu irmão Filipe, as regiões da Itureia e Traconítide, e Lisânias a Abilene;
Para situar cronologicamente o início da missão do Precursor e delinear a conjuntura histórica em que se encontrava o povo judeu naquela época, São Lucas abre seu terceiro capítulo nomeando as autoridades políticas da Palestina. O poder supremo do Império Romano era então exercido por Tibério, “um dos mais mal-afamados tiranos da História universal”2 devido à duplicidade de caráter e irrefreável espírito vingativo que marcou sua conduta no governo. Pôncio Pilatos foi por ele constituído procura dor da Judeia 3 e, sob todos os aspectos, mostrou-se um autêntico representante do arbitrário césar. Os relatos evangélicos da condenação de Jesus retratam o procurador como homem covarde e egoísta, capaz de derramar sangue inocente para salvaguardar os próprios interesses, e seus contemporâneos Filon e Flávio Josefo são ainda mais categóricos ao descrever sua má índole, dizendo ter-se destacado “por seu desdém à Lei judaica, não obstante estivesse reconhecida pelos romanos, e por sua pérfida crueldade”.4 Aproveitava ele qualquer pretexto para infringir os preceitos mosaicos e assim ferir a religiosidade e o nacionalismo israelita, pois “não somente odiava seus súditos, como também tinha uma prepotente necessidade de mostrar-lhes seu ódio”.5
Os tetrarcas Herodes Antipas e Filipe, mencionados logo em seguida, eram filhos de Herodes, o Grande. Seu governo, portanto, significava para os judeus a humilhante condição de dupla sujeição aos gentios: os romanos e os idumeus. A respeito de Antipas, basta lembrar a alcunha de raposa que lhe foi dada pelo Divino Mestre (cf. Lc 13, 32) para se ter uma acertada noção de sua personalidade. A maneira desse astuto animal, o comportamento do tetrarca era regido conforme a prudência carnal, vício caracterizado por “uma hábil sagacidade em encontrar os meios mais oportunos para entregar-se a toda espécie de concupiscências desordenadas”.5 Seu irmão Filipe, pelo contrário, foi honrado em sua vida particular e exerceu de modo correto as funções administrativas, a ponto de ser considerado uma exceção à regra dos herodianos.7 Quanto à Abilene, província limítrofe da Judeia governada por Lisânias,8 tetrarca de origem grega, o Evangelista a inclui nesta relação porque tal território fazia parte dos “limites assinalados por Deus a Abraão [...] e é provável que estivesse habitada em sua maior parte por judeus, embora sob o domínio de um estrangeiro”,9 comenta Maldonado.
Reavivamento das expectativas messiânicas
2… quando Anás e Caifás eram sumos sacerdotes...
Desde a época de Herodes, o Grande, os pontífices eram instituídos e depostos conforme os interesses dos imperadores ou das autoridades políticas locais, existindo, com frequência, negociações corruptas por detrás de cada nomeação. Tal decadência moral do judaísmo se agravou com Anás, o qual constituiu uma organização familiar cúmplice do poder romano e herodiano, à custa de subornos, passando a controlar todo o establishment israelita. No momento histórico descrito pelo Evangelista, o cargo, que era individual, estava ocupado por Caifás, genro de Anás. São Lucas nomeia ambos pelo fato de Anás, deposto havia anos, ainda exercer tamanha influência que sua palavra era equivalente à voz do sumo sacerdote oficial.10
Essa deplorável situação religiosa somada à opressão política refletia-se no povo e resultava num estado geral de depauperamento. Pesavam-lhe os impostos e os próprios costumes judaicos se dessoravam sob o influxo do paganismo romano. Em nenhum momento, contudo, os israelitas perderam as esperanças a respeito do Messias prometido por Deus aos patriarcas e anunciado pelos profetas. Ele viria “para curar os corações doloridos, anunciar aos cativos a redenção, e aos prisioneiros a liberdade” (Is 61, 1), e apareceria num período de extrema desolação para a nação judaica. Por isso, à medida que a situação piorava, a realização da promessa messiânica parecia mais iminente. No entanto, a errônea interpretação das profecias levava os judeus a imaginar o Salvador como um herói nacional que os libertaria do jugo romano — considerado o grande mal do qual decorriam todos os outros infortúnios de Israel — e dar-lhes-ia uma insuperável projeção política, social e financeira, bem como a supremacia em relação a todos os outros povos da Terra.
Em meio a tão singular atmosfera, na qual se confundiam o desalento e a expectativa, um novo profeta manifestou-se à nação eleita.
Um Precursor à altura?
2b…foi então que a palavra de Deus foi dirigida a João, o filho de Zacarias…
Devido aos diversos fatos extraordinários relacionados com o nascimento de São João Batista (cf. Lc 1, 5-25.57-66), as notícias a seu respeito se propagaram “por todas as montanhas da Judeia” (Lc 1, 65), despertando a admiração popular. A esse início cheio de celebridade, porém, sucederam-se anos de completo apagamento aos olhos do mundo. Apartando-se do convívio social, João “viveu no deserto até o dia em que se apresentou diante de Israel” (Lc 1, 80). Tal deserto corresponde a uma região agreste, quase toda desabitada, compreendida entre o Lago de Genesaré e o Mar Morto, e que se estendia a partir da margem ocidental deste último até os limites das terras férteis da Judeia. Ali o menino cresceu e fortificou-se em espírito (cf. Lc 1, 80) pela prática de um rigoroso ascetismo, vestindo-se de pele de camelo e alimentando-se de mel silvestre e gafanhotos (cf. Mc 1, 6; Mt 3, 4), até à idade de mais ou menos trinta anos,11 quando começou a exercer seu ministério. Esse estilo de vida permite-nos imaginá-lo como “um homem profundamente recolhido, de uma grande delicadeza de alma e extrema modéstia, tão absorto em Deus que se tem a impressão de que só com esforço ele consegue sair de sua contemplação”.12
À primeira vista, tão misteriosa austeridade pode parecer o extremo oposto da glória infinita do Verbo Encarnado, de quem João era Precursor. Da mesma forma como a entrada do Menino Deus no mundo havia sido anunciada aos pastores por um Anjo refulgente de luz (cf. Lc 2, 9) e aos Reis Magos pela estrela que os conduziu a Belém (cf. Mt 2, 1-12), seria de se esperar que o começo de sua vida pública também fosse precedido por aparições semelhantes ou por extraordinários fenômenos da natureza. Bem diferente, entretanto, foi o anúncio feito por João Batista, pois sua grandeza não era aparatosa. “Sua autoridade lhe vinha desta pureza mais que terrestre e da majestade da graça que o destacava aos olhos do povo como um homem superior ao resto da humanidade, encarregado de censurar e repreender, é verdade, como também investido de uma missão de inefável misericórdja”.13
A essência da verdadeira grandeza
Entre outras razões, Deus procedeu desta forma para não tirar aos judeus a possibilidade de adquirir o mérito da fé, crendo na divindade de Jesus quando O vissem pessoalmente. Com efeito, se as exterioridades do arauto de Cristo correspondessem às pompas do cerimonial prestado à Segunda Pessoa da Santíssima Trindade pela corte celeste, ter-se-ia extinguido o estado de prova dos contemporâneos de Nosso Senhor em relação ao mistério da Encarnação. Pela força da evidência, o aspecto esplendoroso de João Batista seria suficiente para concluir que o Mestre por ele anunciado era o próprio Deus.
Por outro lado, quis a Providência nos ensinar que o verdadeiro valor do homem está em seu interior, embora muitas vezes o mundo não o reconheça. Não foi entre os líderes da política ou da religião em Israel, cujos nomes abrem o Evangelho de hoje, que Deus escolheu o seu Precursor. O eleito para esta missão de importância ímpar na História foi um homem sui generis para os costumes da época, sem qualquer prestígio social. Não obstante, sua excelência sobrenatural fê-lo ultrapassar em grandeza a todos os homens, conforme o próprio Jesus revelou: “Em verdade vos digo, não surgiu entre os nascidos de mulher alguém maior que João Batista” (Mt 11, 11). Portanto, como é próprio à ação divina, também neste caso a Providência escolheu o que havia de melhor. O anunciador de Cristo possuía a mais nobre das qualificações: fora santificado ainda no ventre materno, tornando-se cheio do Espírito Santo e, por isso, era “grande diante do Senhor” (Lc 1, 15).
Daí decorre também ser São João Batista um exemplo do quanto, para Deus, mais vale o homem pelo que é do que por aquilo que faz. Nossos atos exteriores nos obtêm mérito sobrenatural mais pela disposição interior que nos anima, do que pelo esforço empregado ao realizá-los. Modelo supremo, nesse sentido, é Maria Santíssima, cujo amor a Deus e fervor de intenção fê-la dar “mais glória a Deus pela menor de suas ações — por exemplo, fiando na roca, dando pontos de agulha —, que São Lourenço sobre a grelha, no seu cruel martírio, e o mesmo em relação às mais heroicas ações de todos os santos”,’4 ensina São Luís Grignion de Montfort.
Simbolismo do deserto
2c …no deserto…
Além de referir-se ao local onde São João viveu e recebeu a revelação, o deserto pode ser interpretado em sentido simbólico. Assim como aquela região era desabitada, também o Precursor estava livre de apegos materiais e pretensões mundanas, vazio de si mesmo. O deserto é uma bela imagem da alma dignamente preparada para receber Jesus e participar do Reino de Deus: despojada das manias e dos caprichos egoístas, afastada do materialismo reinante no mundo, deserta de vaidades e ambições.
Um batismo de penitência
3 E ele percorreu toda a região do Jordão, pregando um batismo de conversão para o perdão dos pecados...
De modo diferente dos antigos profetas, João Batista não se dirigiu às cidades, nem aos locais públicos onde era comum haver aglomerações. Percorrendo as agrestes cercanias do rio Jordão, começou ali mesmo a pregar àqueles que encontrava — bem poucos, certamente. O impacto causado por sua pessoa e pelo vigor de sua mensagem teve rápida repercussão, e logo “saíam para ir ter com ele toda a Judeia, toda Jerusalém” (Mc 1, 5). Naquela região, outrora solitária, tornou-se intensa a circulação de judeus que procuravam encontrar no profeta o despontar da ansiada regeneração moral e religiosa de Israel. Inclusive muitos carregavam em seu interior uma dúvida cheia de esperança: não seria João o próprio Messias? Por isso, ora discernindo os pensamentos dos corações, ora respondendo a perguntas explícitas, o Precursor entremeava as exortações à penitência com afirmações que dirimiam os equívocos a respeito de sua pessoa: “Eu vos batizo na água, mas eis que vem outro mais poderoso do que eu, a quem não sou digno de desatar a correia das sandálias” (Lc 3, 16). Se Aquele que deveria vir superava ainda mais o admirável e arrebatador Batista, fazia-se mister preparar-se para recebê-Lo.
Com vistas a esse grande acontecimento, numerosos judeus receberam o “batismo de conversão”. Este, contudo, não conferia a graça à alma15 como o Batismo sacramental instituído depois por Cristo, pois era apenas um símbolo que consolidava a mudança de mentalidade à qual João conclamava, ratificando de forma sensível o desejo de, através da penitência, purificar-se espiritualmente a fim de poder participar no iminente Reino de Deus.
Pregação de alto sentido simbólico
4 …como está escrito no Livro das palavras do profeta Isaías: “Esta é a voz daquele que grita no deserto: ‘preparai o caminho do Senhor, endireitai suas veredas”.
Essas palavras de Isaías, que prenunciaram o fim do exílio do povo judeu na Babilônia e o retorno à Palestina, haviam atravessado os séculos como sinal de consolo e perdão. Nos lábios do Precursor, todavia, a mesma mensagem revestiu-se de caráter penitencial, penetrando a fundo nas consciências e movendo-as à conversão.
Importante é lembrarmo-nos de que a pregação de João Batista não foi dirigida somente aos que tiveram a ventura de viver no tempo de Jesus. Conforme ensina São Bernardo, a vinda de Nosso Senhor ao mundo pode ser dividida em três etapas, das quais a primeira corresponde à sua vida mortal e a última ao Juízo após o fim do mundo, quando Ele vier em Corpo glorioso. A segunda vinda, por sua vez, é cotidiana, quando Ele vem a cada um de nós, pela sua graça.16 Jesus nos chama a cada momento, nas mais diversas circunstâncias da vida, sendo necessário estarmos sempre prontos para recebê-Lo.
Como outrora aqueles judeus que acorriam às margens do Jordão, também nós devemos produzir “frutos de verdadeira penitência” (Mt 3, 8), colocando em prática as admoestações do Precursor. Em primeiro lugar, ele exorta a endireitar as veredas do caminho pelo qual o Senhor passará em breve. Não se trata, evidentemente, de promover uma obra de retificação das estradas palestinas. Toda a sua pregação tem alto sentido simbólico e deve ser interpretada sob o prisma sobrenatural. Esta advertência é um apelo para eliminar os desvios que se estabelecem na alma quando se quer conjugar a adoração a Deus com o egoísmo. Quem não se empenha em combater os defeitos pessoais nem em progredir na perfeição acaba entrando pelas tortuosas sendas dos vícios à margem do bem, sem, todavia, querer abandoná-lo por inteiro. Cedo ou tarde, o dinamismo do mal termina sufocando uma frágil adesão à virtude e cai-se por inteiro na via do pecado.
Oportuno é, no Advento, determos-nos um pouco em nossa caminhada espiritual e, abstraindo da febricitação do mundo, examinar nossa consciência a fim de verificar se não estamos, em algum ponto, construindo trajetos sinuosos em nossa vida. Façamos então o firme propósito de endireitá-los, buscando a inteira coerência entre nossa conduta e a Fé, o que se cifra no perfeito cumprimento dos Mandamentos da Lei de Deus.
Eliminar a mediocridade e o orgulho
5a “‘Todo vale será aterrado, toda montanha e colina serão rebaixadas...’”
Chamado a viver em função de sua dignidade de filho de Deus e a ter os olhos sempre postos nos elevados panoramas da Fé, muitas vezes o homem dá as costas a esse plano superior e concentra toda a atenção nas coisas concretas, preocupando-se excessivamente com os bens materiais e com banalidades próprias à existência terrena. Tal mesquinhez leva-o a se esquecer da efemeridade desta vida e, menosprezando a eternidade, a viver como se o Criador não existisse. Formam-se na alma, então, os vales da ausência de Deus. A par disso, há também montanhas e colinas na vida espiritual. São as elevações do amor-próprio desregrado, o qual se manifesta das mais diversas maneiras. Por exemplo, no desejo de chamar a atenção alheia sobre as qualidades pessoais, reais ou supostas, procurando sobressair em relação aos demais. Além de aterrar os vales da mediocridade materialista, é preciso nivelar essas proeminências do orgulho.
É interessante aqui observarmos um pormenor do texto evangélico, pois, neste versículo, o Precursor não dá uma ordem, como no anterior, mas faz uma afirmação: os vales serão aterrados; as montanhas e colinas serão rebaixadas Com a vinda de Nosso Senhor ao mundo foram deixados à disposição da humanidade os Sacramentos, meios eficazes para essa reforma interior. Conferindo a graça à alma, eles corrigem os desníveis que se interpõem no caminho da perfeição e dificultam o progresso espiritual. Como comenta São Cirilo, “quando Deus feito homem destruiu o pecado em sua carne, tudo foi aplainado e se tornou fácil o caminho, não havendo montes nem vales que fossem obstáculo para quem quisesse caminhar”.17 Resta ao homem unir a esse auxílio divino o próprio esforço, sempre consciente de que cada avanço, mesmo quando pequeno, se deve à graça obtida por Cristo e não a seu mero empenho.
As racionalizações, passagens tortuosas da consciência
5b “‘… as passagens tortuosas ficarão retas e os caminhos acidentados serão aplainados”.
As racionalizações — ou seja, os falsos raciocínios elaborados pelo homem para justificar suas próprias faltas — são desvios muito sutis na vida espiritual, pois encobrem a inconsistência do erro com a aparência sólida da verdade. As passagens tortuosas são uma imagem adequada desses desonestos subterfúgios do pecador, que foge ao se deparar com o aguilhão da consciência que o importuna, advertindo-o a respeito do mal que pretende fazer ou repreendendo-o pelas faltas já praticadas. Só com tais evasivas o homem consegue permanecer nos acidentados caminhos do pecado. Para eliminar essas ardilosas irregularidades do terreno é preciso a virtude da retidão, a qual faz a pessoa ver por inteiro sua própria fraqueza e maldade, reconhecendo-se pecadora e necessitada do amparo sobrenatural para não soçobrar nas tentações. Porém, o fator decisivo é, mais uma vez, a ação divina, ressaltando aos olhos do homem o horror do pecado e a noção de que Deus conhece todas as coisas, inclusive os mais íntimos pensamentos e as intenções do coração.
Deus deve estar no centro da vida do homem
6 “‘E todas as pessoas verão a salvação de Deus”.
Estas palavras finais são muito exatas, não só para significar a universalidade da missão de Nosso Senhor, como também a atitude dos homens em relação a Ele, livres que são para aceitá-Lo ou rejeitá-Lo e, em vista disso, obter a salvação ou a perdição eterna. Daí a razão de São João não dizer que todos se salvarão, mas sim que todos verão a salvação, como comenta o padre Duquesne: “O Salvador, enviado de Deus, veio para todos os homens e foi anunciado a todos os homens; nem todos, entretanto, O reconheceram e O seguiram. Mas dia virá em que todos O verão como seu Juiz”.18
Finalmente, voltando ao problema da felicidade, ao qual nos referíamos no início, podemos ver a conversão pregada pelo Precursor como um farol seguro a iluminar o percurso para lograr o êxito na busca desse tesouro desejado por todos nós, pois o objetivo de cada um de seus ensinamentos se reduz a um só: fazer o homem viver em função de Deus e não de si mesmo.
DEUS NOS LEVARÁ ATÉ O FIM
O Evangelho deste 2º Domingo do Advento, ao mostrar-nos a estreita relação entre a conversão e a felicidade, propõe a cada um de nós um desafio. De um lado, compreendemos a necessidade de pôr em prática as admoestações de São João Batista, reformando-nos espiritualmente. De outro, pesam-nos as consequências do pecado original e de nossos pecados atuais, e vemos quão incapazes somos de levar a cabo uma reforma interior sem a força da graça de Deus. Não conseguimos sequer fazer digna penitência por nossas faltas! E o desafio da santidade, diante do qual se encontra todo cristão. Cabe a nós nunca desanimar a meio caminho, mas crer com fé robusta que Ele, tendo começado em nós essa boa obra, a levará à perfeição, conforme escreve São Paulo aos Filipenses no trecho escolhido para a leitura deste domingo (cf. Fi 1, 6). Tal obra se inicia com o Batismo, quando Deus introduz na alma a graça, fazendo-a participar da vida divina. Conferida como uma semente, deve ela se desenvolver durante toda a existência, “até alcançar em cada um de nós a plenitude que corresponda ao grau de nossa predestinação em Cristo”.19
Existem obstáculos, entretanto, que impedem seu desenvolvimento... São os montes, vales e demais sinuosidades colocadas pelo próprio homem no terreno de sua alma, onde a graça deveria crescer, O desejo de remover tais empecilhos, o emprego de todos os meios a nosso alcance para eliminá-los e, sobretudo, a confiança na onipotência divina são a contribuição que a Providência espera de nós nessa obra de perfeição, cujo Autor e Consumador é o próprio Deus.
Como alento de nossa esperança, voltemos nosso olhar a Nossa Senhora, Auxílio dos Cristãos, que a cada instante intercede por nós junto a seu Divino Filho. Todos os dons por nós recebidos nos foram alcançados por sua mediação. Ora, “Ela não pode ser a Senhora das obras inacabadas. Ela é a Senhora das construções terminadas, das grandes obras levadas a termo”, afirma com unção o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira. Resta-nos, portanto, abandonarmo-nos aos maternais cuidados de Maria Santíssima, certos de que Ela mesma Se encarregará de conduzir à plenitude este ousado empreendimento de nos fazer perfeitos assim como o Pai celeste é perfeito (cf. Mt 5, 48).
1) SANTO AGOSTINHO. De Trinitate. L.XIII, c.4, n.7. In: Obras. Madrid: BAC, 1956, vV, p.7 12.
2) WEISS, Juan Bautista. Historia Universal. Barcelona: La Educación, 1927, v.111, p.661.
3) Segundo os historiadores, Herodes, o Grande, deixara consignado em testamento que após sua morte a Palestina fosse dividida entre seus três filhos. E assim se fez: a Judeia, a Samaria e a Idumeia foram dadas a Arquelau; Herodes Antipas recebeu a Galileia e a Pereia; e as terras situadas ao norte da Transjordânia foram a parte de Filipe. Acusado de tirania, Arquelau foi deposto por César Augusto e seu território tornou-se subjugado ao governo da Síria. A partir de então, os imperadores nomeavam procuradores que se estabeleciam na Judeia e exerciam sua autoridade em toda a província (cf. RICCIOTI I, José. Historia de Israel. Buenos Aires: Excelsa, [s.d.], til, p.412-413; SCHUSTER, Ignacio; HOLZAMMER, Juan B. Historia Bíblica. Barcelona: Litúrgica Española, 1935, tII, p.76).
4) SCHUSTER; HOLZAMMER, op. cit., p.132, nota 1.
5) RICCIOTTI, op. cit., p.430.
6) ROYO MARIN, OP, Antonio. Teología Moral para seglares. Madrid: BAC, 1996, v.1, p.421.
7) Cf. RICCIOTFI, op. cit., p.414.

8) Este dado do Evangelho de São Lucas foi causa de inúmeras controvérsias durante longo período, devido à falta de provas de sua historicidade. Julgava-se ter sido um equívoco do Evangelista a menção a Lisânias como contemporâneo de Tibério (14-37), pois o rei Lisânias do qual se tinha notícia fora morto antes da constituição do Império Romano, vítima de uma instigação de Cleópatra junto a Antônio (cf. FLAVIO JOSEFO.Antiguidades judaicas. LXV, c.4

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