Comentário ao Evangelho Solenidade da Epifania do Senhor – Ano –
C Mt 2, 1-12
1Tendo nascido Jesus na cidade de Belém, na
Judeia, no tempo do rei Herodes, eis que alguns magos do Oriente chegaram a
Jerusalém, 2perguntando: “Onde está o rei dos judeus, que acaba de nascer? Nós
vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo”.
3Ao saber disso, o rei Herodes ficou
perturbado, assim como toda a cidade de Jerusalém.
4Reunindo todos os sumos sacerdotes e os
mestres da Lei, perguntava-lhes onde o Messias deveria nascer. 5Eles
responderam: “Em Belém, na Judeia, pois assim foi escrito pelo profeta: 6E tu,
Belém, terra de Judá, de modo algum és a menor entre as principais cidades de
Judá, porque de ti sairá um chefe que vai ser o pastor de Israel, o meu povo”.
7Então Herodes chamou em segredo os magos e
procurou saber deles cuidadosamente quando a estrela tinha aparecido. 8Depois
os enviou a Belém, dizendo: “Ide e procurai obter informações exatas sobre o
menino. E, quando o encontrardes, avisai-me, para que também eu vá adorá-lo”.
9Depois que ouviram o rei, eles partiram. E
a estrela, que tinham visto no Oriente, ia adiante deles, até parar sobre o
lugar onde estava o menino. 10Ao verem de novo a estrela, os magos sentiram uma
alegria muito grande.
11Quando entraram na casa, viram o menino
com Maria, sua mãe. Ajoelharam-se diante dele, e o adoraram. Depois abriram
seus cofres e lhe ofereceram presentes: ouro, incenso e mirra.
12Avisados em sonho para não voltarem a
Herodes, retornaram para a sua terra, seguindo outro caminho.
Diante do Rei, os bons reis e o mau
Na longa viagem empreendida pelos Magos, nada há de razões profanas ou
mundanas. E, diante de um tirano de má fama como Herodes, é comovedora sua
confiança penetrada de coragem. Sem dúvida, estavam sustentados por uma especial
moção do Espírito Santo.
Natal e Epifania
A festa da Epifania — também denominada pelos gregos de Teofania, ou seja,
manifestação de Deus — era celebrada no Oriente já antes do século IV. É uma
das mais antigas comemorações cristãs, bem como a Ressurreição de Nosso Senhor.
Não nos devemos esquecer que a Encarnação do Verbo se tornou efetiva logo
após a Anunciação do Anjo; entretanto, apenas Maria, Isabel, José e,
provavelmente, Zacarias tiveram conhecimento do grande mistério operado pelo
Espírito Santo. O restante da humanidade não se deu conta do que se passava no
período de gestação do Filho de Deus humanado. A Revelação feita pelos Profetas
era envolta em certo mistério que só após o testemunho dos Apóstolos se tornou
evidente.
A Liturgia do Tempo do Advento
Nas quatro semanas do Advento, a Liturgia nos recorda as profecias sobre os
principais fatos ligados às manifestações graduais e sucessivas do Salvador e
da Boa Nova trazida à Terra. Com muita ênfase é sublinhado o texto de Isaías: “Eis que uma virgem
conceberá e dará à luz um filho, e o chamará ‘Deus Conosco’” (Is 7, 14).
Fica patente que o Messias pertenceria à nobre estirpe de Davi: “Um renovo sairá do
tronco de Jessé, e um rebento brotará de suas raízes. Sobre ele repousará o
Espírito do Senhor, Espírito de sabedoria e de entendimento, Espírito de
prudência e de coragem, Espírito de ciência e de temor ao Senhor” (Is 11,
1-2).
A Liturgia vai num crescendo a ponto de tornar claro que vem o Salvador das
nações, por isso roga que a terra O germine: “Rorate cæli desuper
et nubes pluant iustum, aperiatur terra et germinet salvatorem et iustitia
oriatur simul!” — “Que os céus, das alturas, derramem o seu orvalho, que as
nuvens façam chover a vitória; abra-se a terra e brote a felicidade, e ao mesmo
tempo faça germinar a justiça!” (Is 45, 8).
Por fim, nasce o Redentor, como um simples bebê. Quem estivesse, porém,
tomado por um dom do Espírito Santo, discerniria naquela adorável criança os
resplendores dos raios de sua fulgurante divindade. Não se tratava de um ente
puramente humano; àquela natureza se unia a própria Divindade na hipóstase da
Segunda Pessoa da Santíssima Trindade. Ali estava o Homem-Deus.
Epifania: público reconhecimento da divindade
do Menino Jesus
Se, por assim dizer, no Natal Deus Se manifesta como Homem, na Epifania
esse mesmo Homem se revela como Deus. Assim, nestas duas festas, quis Deus que
o grande mistério da Encarnação fosse revelado com todo o brilho, tanto aos
judeus como aos gentios, dado o seu caráter universal. No Ocidente, desde o
princípio, celebrava-se o Natal a 25 de dezembro, e no Oriente, a Epifania a 6
de janeiro. Foi a Igreja de Antioquia, na época de São João Crisóstomo, que
passou a comemorar as duas datas. Só a partir do século V é que no Ocidente
começou a se celebrar a segunda festividade.
Em nossa atual fase histórica, a Liturgia comemora a Adoração dos Reis
Magos ao Menino Jesus. Por outro lado, ainda permanecem alguns vestígios da
antiga tradição oriental que incluía na Epifania, além da Adoração dos Reis, o
milagre das Bodas de Caná e o Batismo do Senhor no Jordão. Hoje, em nossa
Liturgia, as Bodas de Caná não são mais celebradas, e o Batismo do Senhor é
festejado no domingo entre os dias 7 e 13 de janeiro.
Em síntese, podemos afirmar que a Epifania, ou seja, a manifestação do
Verbo Encarnado, não pode ser considerada desligada da adoração que Lhe
prestaram os Reis do Oriente. Nesta cena está concernido um público
reconhecimento da divindade do Menino Jesus unida à Sua humanidade.
A virtude de Religião
A adoração, segundo nos ensina o Doutor Angélico, “orienta-se à reverência
daquele que é adorado”. Trata-se de uma virtude especial, chamada de religião,
à qual “é próprio prestar reverência a Deus”.1 Para melhor entendermos, basta
dizer que a religião tem seu fundamento em quem é Deus e o que somos nós;
naquilo que Ele nos deu e no que Lhe devemos restituir. Deus é o ser por
essência, a Perfeição, o Bem, a Verdade e a Beleza, ademais, absoluto e
infinito; e nós, pelo contrário, somos criaturas contingentes: d’Ele recebemos
tudo e, em nossa existência, necessitamos de Sua sustentação a cada instante.
Bem dizia o Revmo. Padre Antonio Royo Marín, OP, que se, por absurdo, Deus
chegasse a cochilar, todas as criaturas retornariam ao nada; ao que o Prof.
Plinio Corrêa de Oliveira respondeu: “E, em Sua onipotência, Ele recriaria tudo
novamente, logo ao despertar”. Portanto, o ser de toda e qualquer criatura é
conferido por Deus, assim como os mais variados bens que haja em toda a ordem
do universo. Na linha dos dons nada há, portanto, que não recebamos de Deus.
Somos os eternos devedores do Criador. Debaixo deste ponto de vista, até a mais
excelsa de todas as criaturas, Maria Santíssima, também o é, e Ela soube
reconhecer isto em seu cântico diante de sua prima Santa Isabel: “Minha alma
glorifica ao Senhor [...] porque olhou o nada [a humildade] de Sua serva” (Lc
1, 46.48).
A virtude de religião é a essência da adoração que se concentra no
reconhecimento destas duas realidades: quem é Deus, quais Seus direitos e
benefícios; quem somos nós, nossa indigência, nosso nada. Por isso, “a religião
é a principal entre as virtudes morais” — explica-nos São Tomás de Aquino —,
porque “está mais próxima de Deus que as outras virtudes morais, enquanto suas
ações diretas e imediatamente ordenam-se para a honra divina. Consequentemente,
a religião é superior às outras virtudes morais”.2
Um convite a sermos gratos ao Senhor
Ora, o que movia o fundo da alma dos Reis Magos era o desejo de prestar
culto de adoração Àquele que acabara de nascer. O significado da moção do
Espírito Santo, levando-os a Belém, cifra-se no chamado universal de todas as
nações à salvação e à participação nos bens da Redenção.
Se bem que os Profetas houvessem feito previsões sobre a universalidade
dessa vocação, os judeus consideravam-na como um privilégio exclusivo do Povo
Eleito. É curioso notar como o próprio Senhor em Sua vida pública, apesar de
elogiar a fé do centurião romano — “Em verdade vos digo:
não encontrei semelhante fé em ninguém de Israel” (Mt 8, 10) —, afirma não
ter sido enviado pelo Pai senão para cuidar das “ovelhas dispersas da
casa de Israel” (Mt 15, 24).
Ou seja, não quis Ele chamar diretamente a gentilidade; essa tarefa seria
reservada aos Apóstolos, em especial a São Paulo. Mas, com décadas de
antecedência, os Santos Reis simbolizaram junto ao berço do Salvador esse Seu
grande desejo de nos redimir também a nós todos da gentilidade, conforme as
palavras da Oração do Dia: “Ó Deus, que hoje
revelastes o Vosso Filho às nações, guiando-as pela estrela”; e mais
claramente no Prefácio: “Revelastes, hoje, o
mistério de Vosso Filho como luz para iluminar todos os povos no caminho da
Salvação”.
Se aos Reis Magos Deus os chamou por meio da estrela, a nós Ele nos chama
através de Sua Igreja, com sua pregação, doutrina, governo e Liturgia. Logo, a
Epifania é a festa que nos convida a agradecermos ao Senhor, como também a Lhe
implorar a graça de sermos guiados sempre e por toda parte através de Sua luz
celeste, bem como de acolhermos com fé e vivermos com amor todos os dons que a
Santa Igreja nos dá.
Belém, os Magos e Herodes
“Tendo, pois, Jesus nascido em Belém de
Judá, no tempo do rei Herodes, eis que Magos vieram do Oriente a Jerusalém”.
Como nos diz São Paulo: “Se a tivessem conhecido [a misteriosa sabedoria de
Deus], nunca teriam crucificado o Senhor da glória” (I Cor 2, 8). Não era dos
desígnios de Deus que o nascimento de Jesus Menino fosse manifestado a toda a
humanidade, pois isso provavelmente impediria que se realizasse a Redenção. Por
outro lado, se Sua vinda ao mundo fosse acompanhada por sinais fulgurantes e
grandiosos, seriam anulados os méritos da fé.
O nascimento, sinal prévio da segunda e plena
manifestação
Por estes e outros motivos, nos explica São Tomás de Aquino: “É inerente à
ordem da sabedoria divina que os dons de Deus e os segredos de sua sabedoria
não cheguem da mesma forma a todos, mas que cheguem imediatamente a alguns e,
por meio deles, se estendam aos outros. Assim, no que concerne ao mistério da
Ressurreição, diz o livro dos Atos: ‘Deus ressuscitou Cristo ao terceiro dia e
Lhe concedeu manifestar a sua presença, não ao povo em geral, mas às
testemunhas designadas de antemão por Deus’. O mesmo devia ser observado em
relação a Seu nascimento: que Cristo não Se manifestasse a todos, mas a alguns,
por meio dos quais poderia chegar aos outros”.3
Várias também são as razões pelas quais a Providência Divina escolheu
primeiro os judeus, e só depois os gentios, para manifestar o nascimento de
Jesus. Claro está que tendo Deus um especial apreço pelo princípio de
hierarquia, deveria preferir iniciar Sua grande obra pelo Povo Eleito. Daí
continuar a discorrer sobre esse pormenor o mesmo Doutor Angélico:
“A manifestação do nascimento de Cristo foi uma antecipação da manifestação
plena que haveria de vir. E assim como na segunda manifestação a graça de
Cristo foi anunciada por Cristo e por Seus Apóstolos, primeiro aos judeus, e
depois aos pagãos, assim também, os primeiros a aproximar-se de Cristo foram os
pastores, que eram as primícias dos judeus e estavam perto; depois vieram os
Magos, de longe, como ‘primícias dos pagãos’, na expressão de Agostinho”.
Considerações e profecias
Quanto à referência à cidade de Belém de Judá neste versículo, devemos
considerar a afirmação feita pelo próprio Salvador, décadas mais tarde: “Eu sou
o pão vivo que desceu do Céu” (Jo 6, 41). Por isso fazem os comentaristas uma
aproximação entre o significado do nome Belém — ou seja, “casa do pão” — e a instituição
do Sacramento da Eucaristia, Pão dos Anjos. Havia uma outra Belém, ao norte, na
terra de Zabulon, daí procurar o Evangelista especificar a tribo de Judá.
O rei Herodes, na realidade, não pertencia à raça dos judeus, pois era
idumeu. Chegou ao trono por apoio dos romanos, devido a lhe serem contrários os
judeus, por se tratar de um estrangeiro. Foi muito habilidoso, restaurando com
esmero o Templo de Jerusalém, no intuito de que se esquecessem de suas origens.
Porém, sua fama perpetuou-se pelas grandes máculas de seus costumes dissolutos
e de sua crueldade.
Sobre este particular, pondera Teodoro de Mopsuéstia: “O patriarca Jacó
havia já discernido com exatidão esse momento, ao dizer: ‘Não se apartará o
cetro de Judá, nem o bastão de comando dentre seus pés, até que venha aquele a
quem pertence por direito, e a quem devem obediência os povos’ (Gn 49, 10).
Mateus apresenta esses dados para, por meio deles, pôr em evidência que tudo
estava correndo de acordo com as palavras proféticas. Por um lado, o profeta
tinha dito que nasceria em Belém (cf. Mq 5, 1); por outro, o fato de ocorrer
isso no tempo de Herodes cumpria, ademais, a predição de Jacó. Primeiro reinou
sobre eles a estirpe de Davi, da tribo de Judá, irmão de Levi, mas a
descendência provinha da estirpe de Judá, que se mesclara com a tribo levítica,
especialmente com sumos sacerdotes, e tinham prerrogativas reais. Em seguida —
depois que os irmãos Aristóbulo e Hircano disputaram entre si o poder — a
dignidade real passou finalmente para Herodes, o qual não era judeu de raça,
por ser filho de Antípatro, o idumeu. Foi então, no tempo desse reinado, que
apareceu Cristo Senhor, não havendo mais reis e governantes do povo judeu”.5
Mateus se cala sobre maiores detalhes a respeito dos Magos; daí a multiplicidade
de hipóteses e a não pouca divergência entre os autores sobre este particular.
Entretanto, podemos afirmar que o nome Magos não deve ser tomado com as
conotações próprias aos nossos tempos. Naquela época, significava pessoas de
certo poder e muito distintas, em especial pelos conhecimentos científicos,
sobretudo de astronomia. Além disso, a tradição no-los apresenta como reis. É
também por tradição que consta serem três, terem sido batizados mais tarde por
São Tomé Apóstolo e, tempos depois, martirizados.
Sobre o país de origem — Caldeia, Arábia ou Pérsia —, o que consta são
puras hipóteses; como também quanto ao momento da chegada deles a Jerusalém e a
Belém, que parece ter-se dado depois da Apresentação do Menino Jesus.
O certo e admitido por todos é que, sendo a Redenção de âmbito universal,
deveria ser anunciada a todos.6
Os reis perante Herodes
“Perguntaram eles:
‘Onde está o rei dos judeus que acaba de nascer? Vimos a Sua estrela no Oriente
e viemos adorá-Lo’”.
Torna-se claro, por este versículo, o real e profundo motivo da longa
viagem empreendida por eles; nada houve de pura curiosidade, razões profanas,
ou até mundanas. Ademais, demonstram possuir grande fé, e não pouca intrepidez,
ao formularem uma pergunta tão incisiva, tanto mais que poderia ser
interpretada por Herodes como sendo uma negação de seu título e de seu poder,
conquistados com tantos esforços.
A estrela que guiava os Magos
Sobre a estrela, comenta o Revmo. Padre Manuel de Tuya, OP: “Os magos alegam,
para terem vindo adorar o Rei dos judeus recém-nascido, que viram ‘sua estrela
no Oriente’. De maneira muito acentuada, fala-se precisamente da estrela do Rei
dos judeus. No mundo da astrologia, os homens se consideram governados pelos
astros. Mas também na Antiguidade estava difundida a crença de que o nascimento
dos homens de grande importância era precedido de algum sinal do céu. Isto se
refletia até nos escritos cuneiformes. Surgiram várias teorias a respeito dessa
‘estrela vista pelos Magos’”.7
Também o Doutor Angélico não deixou de exprimir seu pensamento a respeito
desta passagem. Depois de discorrer sobre as razões pelas quais aos judeus
revelou Deus Seu nascimento através de Anjos e, aos gentios, por sinais, cita
Santo Agostinho: “Os Anjos moram nos céus que são adornados pelas estrelas”.8 E
a partir daí, passa a analisar a estrela em si mesma, mostrando como ela “não
era uma das estrelas do céu”, mas sim um astro inteiramente sui generis.9
Jerusalém ficou perturbada
“Ouvindo isto, o rei
Herodes ficou perturbado e toda Jerusalém com ele”.
É de fácil compreensão esse temor de Herodes, dada sua irrefreável ambição,
inveja e crueldade. Sua esposa e seus três filhos puderam experimentar a
violência de seu péssimo e impetuoso temperamento, pois foram mortos por uma
determinação tirânica sua, nascida do medo de que o destronassem.
Para um homem com essa moral desregrada e tão mau caráter, o anúncio do
surgimento miraculoso de um novo rei só poderia causar perturbação; tanto mais
que “havia-se
difundido então por todas as partes do Império Romano, no Oriente mais do que
em qualquer outra, certo pressentimento — às vezes vago, às vezes mais preciso
— de uma nova era que se abriria para a humanidade”.10
E qual a causa da perturbação dos habitantes de Jerusalém? Era-lhes
anunciado o nascimento de um Rei judeu: não seria esta uma alvissareira
notícia? E não deveriam eles acompanhar os Magos para, com alegria, comprovar
os fatos? Não causaria estranheza que o povo, a essas alturas, já estivesse
acomodado e relaxadamente complacente com o criminoso tirano. Quiçá pudesse
concorrer para essa perturbação o receio de represálias e vinganças. Ou ainda o
amor-próprio ferido, o orgulho pisado, o desprezo de uma graça, pois esperavam
um Messias com maior esplendor e, ademais, anunciado a eles diretamente, e não
a estrangeiros.
A esse propósito, comenta São João Crisóstomo: “Porque continuavam na
mesma disposição de seus antepassados — os quais, apesar de todos os benefícios
recebidos, afastaram-se de Deus — e gozavam de plena liberdade, recordavam-se
das carnes do Egito”.11
Iniquidade fraudulenta de Herodes
“Convocou os príncipes
dos sacerdotes e os escribas do povo e deles indagou onde havia de nascer o
Cristo”.
Péssimo, mas habilidoso, Herodes dissimula seu satânico plano de matar o
Messias e procura saber quais são os desígnios de Deus para, com eficácia,
impedi-los. Com ares de hipócrita piedade, convoca o Sinédrio. Sua pergunta
demonstra o quanto todos eram conhecedores da possibilidade de que aquele
recém-nascido bem poderia ser o Cristo. Daí também a maldade do Sinédrio e do
próprio povo.
“Disseram-lhe: ‘Em Belém de Judá, porque
assim foi escrito pelo profeta: E tu, Belém de Judá, não és de modo algum a
menor entre as cidades de Judá, porque de ti sairá o chefe que governará
Israel, meu povo’” (Mq 5,
2).
Os doutores da Lei não temem dizer a Herodes que, segundo Miqueias, o
Cristo deveria nascer na cidade de Belém de Judá. Entretanto, suprimem da
profecia oficial a frase subsequente, que clarissimamente insinuava a origem
divina de Cristo: “Et egressus eius a
temporibus antiquis, a diebus æternitatis” — “Suas origens remontam aos
tempos antigos, aos dias da eternidade” (Mq 5, 1). Talvez por malícia, ou por
orgulho, não possuíam suficiente fé para crer nessa revelação. Ou, ainda, quiçá
por amolecimento de caráter. Essa péssima atitude levou São João Crisóstomo a
associá-los na culpabilidade pela morte dos Santos Inocentes, pois Herodes não
se enfureceria se soubesse que se tratava de um Rei da eternidade, portanto,
não de um rival terrestre.
“Herodes, então,
chamou secretamente os Magos e perguntou-lhes sobre a época exata em que o
astro lhes tinha aparecido”.
Chama-nos a atenção o emprego do advérbio secretamente. Segundo um famoso
historiador daqueles tempos, Flávio Josefo, era muito comum Herodes vestir-se
como um qualquer e imiscuir-se em meio às gentes para sondar de modo direto o
que pensavam sobre seu reinado.12 Era o seu habilidoso modo de proceder.
Estando já seguro quanto à cidade onde teria nascido seu inimigo Messias,
desejava agora conjecturar sua idade, pois aproximava a data do nascimento do
Menino ao dia do aparecimento da estrela.
“E, enviando-os a
Belém, disse: ‘Ide e informai-vos bem a respeito do Menino. Quando o tiverdes
encontrado, comunicai-me, para que eu também vá adorá-lo’”.
Hipócrita, se faz de piedoso e suave para enganar a simplicidade, candura e
inocência dos Magos. Não sem fundamento, alguns autores denominam essa atitude
de “iniquidade fraudulenta”.
De Jerusalém a Belém
“Tendo eles ouvido as
palavras do rei, partiram. E eis que a estrela, que tinham visto no Oriente, os
foi precedendo até chegar sobre o lugar onde estava o Menino, e ali parou. A
aparição daquela estrela os encheu de profunda alegria”.
Assim sempre procede Deus, recompensando aqueles que são fiéis à Sua graça.
É comovedora a confiança penetrada de coragem desses Reis Magos, diante de um
tirano de tal má fama. Não há dúvida de estarem sustentados por especial moção
do Espírito Santo.
Reaparece a estrela
Terão partido à noite, ou durante o dia? De Jerusalém a Belém, levava-se
duas horas de caminhada por via conhecidíssima. Entretanto, uns poucos autores
defendem a tese de esse deslocamento ter-se efetuado durante o dia. Mas, como
se explicaria o reaparecimento da estrela? Uns dizem não terem sido necessárias
as sombras da noite, por tratar-se de um corpo luminoso em regiões atmosféricas
mais próximas dos Magos. Outros interpretam essa passagem como se a estrela
tivesse reaparecido só na entrada de Belém, uma vez que não havia como errar o
caminho.
Ao ler estes versículos com devoção, chega-se, por momentos, a participar
da alegria dos primeiros peregrinos aos Lugares Santos.
O desaparecimento da estrela lhes pusera à prova a confiança; agora é a
consolação como prêmio. Uma pergunta aqui surge, também. Por que se ocultara a
estrela ao chegar a Jerusalém e reapareceu só em Belém? Será que já àquelas
alturas Jerusalém não era digna de um sinal tão evidente e público? Ou, pelo
contrário, escondendo-se, ela propiciou uma permanência maior dos Magos na
cidade, e com isso a autenticidade do acontecimento tornou-se mais patente a
todos os seus habitantes?
Adoraram-No, inspirados pelo Espírito Santo
“Entrando na casa,
acharam o Menino com Maria, Sua mãe. Prostrando-se diante dEle, O adoraram.
Depois, abrindo seus tesouros, ofereceram-Lhe como presentes: ouro, incenso e
mirra”.
Emociona esta descrição de Mateus: “acharam o Menino com Maria, Sua mãe”.
Palavras proféticas, inspiradas pelo Espírito Santo, para deixar constando pelos
séculos afora que não se pode encontrar Jesus sem Maria, e menos ainda, Maria
sem Jesus. A História comprova — e muito mais o fará — o quanto a devoção à Mãe
conduz à adoração ao Filho, e vice-versa.
Chama-nos a atenção Mateus ao local onde Se encontrava o Menino: uma casa,
não uma gruta. “Alguns
autores antigos — entre eles São Justino — julgaram que ‘casa’ era um
eufemismo, em lugar de ‘gruta’. São Jerônimo, em compensação, menciona várias
vezes a gruta e nunca fala da lembrança nem da presença dos Magos nela. Não
seria nada improvável que a palavra ‘casa’ tenha em Mateus seu sentido real.
Situada essa cena à distância de um ano e meio do nascimento de Cristo, não é
de crer-se que a Sagrada Família tenha permanecido alojada naquela gruta
circunstancial; parece natural que ela tenha habitado uma modesta casa.
Ademais, o versículo 22 sugere que ela havia se estabelecido em Belém”.13
Essa adoração prestada pelos Magos comprova mais uma vez a realidade da
ação do Espírito Santo nas almas deles, tal qual afirma São Tomás de Aquino:
“Os Magos são
‘as primícias dos pagãos’ a crerem em Cristo. Neles apareceram, numa espécie de
presságio, a fé e a devoção dos pagãos vindos a Cristo de lugares remotos. Por
isso, sendo a fé e a devoção dos pagãos isentas de erro, por inspiração do
Espírito Santo, também deve-se crer que os Magos, inspirados pelo Espírito
Santo, se comportaram sabiamente ao prestarem homenagem a Cristo”.14
Quanto aos presentes, eles cumprem, com esse
gesto, a profecia de Isaías: “Virão todos de Sabá, trazendo ouro e incenso, e
publicando os louvores do Senhor. Todo o gado menor de Cedar se reunirá junto a
ti, os carneiros de Nabaiot ficarão à tua disposição; fá-los-ão subir sobre meu
altar para minha satisfação, e para a honra de meu templo glorioso” (Is 60,
6-7).
“Ao reconhecê-Lo como rei, ofereceram as
primícias excelentes e preciosas do templo: o ouro que guardavam; por entender
que Ele era de natureza divina e celestial, ofertaram incenso perfumado, forma
de oração verdadeira, oferecida como suave odor do Espírito Santo; e em
reconhecimento de que sua natureza humana receberia sepultura temporal,
ofereceram mirra”.15
Voltaram por outro caminho
“Avisados em sonhos de
não tornarem a Herodes, voltaram para sua terra por outro caminho”.
Deus jamais deixa de proteger aqueles que O servem com amor e fidelidade.
Se os Magos tivessem retornado a Herodes, eles mesmos poderiam ter precedido os
Inocentes na morte.
A todos nós, Deus nos faz retornar à Pátria “por outro caminho”, segundo
nos ensina São Gregório Magno. Infelizmente, deixamos o Paraíso Terrestre pelo
pecado de orgulho de nossos primeiros pais; mais ainda, dele nos afastamos pelo
apego às coisas deste mundo e devido aos nossos próprios pecados. Deus, como
bom Pai, nos oferece o Paraíso Eterno; mas, para nele entrar, o caminho é
oposto ao do orgulho e da sensualidade, ou seja, o do desprendimento, da
obediência, da renúncia às nossas paixões. Ele nos oferece um caminho fácil e
seguro: “Ad Jesum
per Mariam!” (A Jesus, por Maria!).
1 AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica II-II,
q. 84 a.1. AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica II-II, q. 81 a. 6. AQUINO, São
Tomás de. Suma Teológica III, q. 36, a. 2, resp. c. AQUINO, São Tomás de. Suma
Teológica III, q. 36, a. 3 ad I. MOPSUÉSTIA, Teodoro de, Fragmentos sobre o
Evangelho de Mateus, 6. Cf. AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica III, q. 36 a.
3c. TUYA OP, Pe. Manuel de. Bíblia Comentada. Madrid: BAC, 1964, v. II, p. 35.
AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica III, q. 36, a. 5 resp. Ver quadro anexo:
Não foi uma das estrelas do céu. FILLION, Louis-Claude. Vida de Nuestro Señor
Jesucristo. Madrid: Rialp, 2000. v. I. p. 7-8. Homilias sobre o Evangelho de
Mateus, 6, 4: PG 57, 67-68. Cf. Antiguidades dos Judeus, l. XV, c. 10, 4. TUYA
OP, Pe. Manuel de. Op. Cit. p. 39. AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica III, q.
36 a. 8, resp. ANÔNIMO. Obra incompleta sobre o Evangelho de Mateus, 2: PG 56,
642.
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