Comentários ao
Evangelho - Lc 2, 16-21 - Solenidade da Santa Mãe de Deus
Naquele
tempo, 16 os pastores foram às pressas a Belém e encontraram Maria e
José, e o recém-nascido deitado na manjedoura.
17Tendo-O visto,
contaram oque lhes fora dito sobre o Menino. 18E todos os que ouviram os
pastores ficaram maravilhados com aquilo que contavam.
19Quanto a Maria,
guardava todos esses fatos e meditava sobre eles em seu coração.
20 Os
pastores voltaram, glorificando e louvando a Deus por tudo que tinham visto e
ouvido, conforme lhes tinha sido dito. 21 Quando se completaram os
oito dias para a circuncisão do Menino, deram-Lhe o nome de Jesus, como fora
chamado pelo Anjo antes de ser concebido (Lc 2, 16-2 1).
Predestinada desde
toda a eternidade
Da consideração
do maior dentre os privilégios marianos emanam maravilhas que nos permitem
vislumbrar a sublime grandeza da Mãe de Deus e nossa.
UM PRIVILÉGIO CONCEBIDO DESDE SEMPRE
A Igreja escolhe o
primeiro dia do calendário civil para celebrar a maternidade divina de Nossa
Senhora, a fim de que iniciemos o ano por meio da gloriosa intercessão de
Maria. Ela derrama sobre nós suas bênçãos de maneira muito especial nesta
Solenidade, cuja coincidência com a Oitava do Natal nos indica que a melhor
forma de louvar o Menino Jesus é exaltar as qualidades da Mãe d’Ele e nossa,
bem como a melhor forma de elogiar a Mãe é festejar o nascimento de seu Divino
Filho.
A Liturgia nos
apresenta leituras breves, porém cheias de significado. Embora não sejam
propostas diretamente por Deus, mas por comissões de peritos que extraem das
Sagradas Escrituras as passagens mais adequadas para cada celebração, o
Espírito Santo os assiste nesse trabalho a fim de que seja realizado do modo
mais perfeito, apesar da insuficiência do homem.
Elevada acima de toda
a criação
Convém ressaltar
que a, presença de Nossa Senhora nas Escrituras é muito discreta. E possível
que Ela mesma tenha pedido aos evangelistas que sua pessoa figurasse num
segundo plano nas páginas sagradas, não só por humildade, mas também para
evitar o risco de Lhe atribuírem natureza divina. De fato, isto ocorreu nos
primeiros tempos da Igreja, em algumas regiões onde chegaram a cultuá-La como
deusa.1
Sob certo aspecto,
explica-se o surgimento dessa errônea crença, que a Igreja soube retificar. Em
razão da maternidade divina, Maria está tão unida ao mistério da Encarnação do
Verbo que, mesmo possuindo natureza estritamente humana, Ela participa, de
maneira relativa, do mais alto grau da criação: a ordem hipostática que, de forma
absoluta, pertence apenas a Cristo.2 Portanto, está Nossa Senhora tão acima de
todos os outros planos criados — mineral, vegetal, animal, humano, angélico e o
da graça —, que é compreensível certa dificuldade em considerá-La como mera
criatura humana favorecida com graças insuperáveis.
Uma benção da Antiga
Aliança que atinge sua plenitude em Maria
A primeira leitura,
tirada do Livro dos Números (6, 22-27), traz a fórmula da bênção transmitida
pelo próprio Deus aos sacerdotes de Israel e usada pela Santa Igreja até hoje.
O povo judeu a recebia todos os dias, pela manhã e à tarde, quando o sacerdote
saía do santuário depois de ter oferecido o incenso a Deus no altar dos
perfumes.3 Ao contrário de outras bênçãos que enfatizam a obtenção de
benefícios materiais, esta se centra na vida sobrenatural. Embora os dons
naturais nos sejam concedidos por Deus, devem frutificar com vistas ao seu
serviço. De que adiantará a alguém possuí-los em profusão, se Deus não o
abençoar? Nunca produzirá frutos para a eternidade.
Atrai nossa atenção
em particular, nesta Solenidade, o fato de todas as bênçãos da Antiga Aliança,
outorgadas por Deus ao povo de Israel através de Aarão, se terem concentrado em
Nossa Senhora e n’Ela produzirem seus efeitos máximos, sem nenhuma fimbria de
insuficiência.
Um altíssimo
privilégio, concebido por Deus desde toda a eternidade
A grandeza de Maria
aparece com maior evidência no trecho da Carta aos Gálatas escolhido para a
segunda leitura (cf. Gal 4, 4-7), no qual São Paulo sublinha que Nosso Senhor
Jesus Cristo nasceu de uma mulher: “Quando se completou o tempo previsto, Deus
enviou o seu Filho, nascido de uma mulher, nascido sujeito à Lei, a fim de
resgatar os que eram sujeitos à Lei e para que todos recebêssemos a filiação
adotiva” (Gal 4, 4-5). Se humanizarmos um pouco a figura de Deus, como tantas
vezes o faz a Escritura, podemos imaginá-Lo esperando “o tempo previsto” para o
nascimento da Mãe do Redentor. Mas, na realidade, Ele — para quem tudo é
presente —concebeu eternamente a obra da criação e, no centro desta, num só ato
de sua vontade divina e num mesmo e idêntico decreto, predestinou a Jesus e
Maria.4 Portanto, no plano da Encarnação do Verbo, estava também contido o dom
singularíssimo da maternidade divina de Nossa Senhora. Ambos, Mãe e Filho,
inseparáveis, são a arquetipia da criação, a causa exemplar e final em função da
qual todos os outros homens foram predestinados, “para a glória dos dois, como
um cortejo real para Eles”.5
Isto nos faz
compreender porque, dentre os incontáveis privilégios de Maria — dos quais a
abundante coletânea de títulos acumulados pela piedade católica para louvá-La
nos dá uma pálida ideia —, o principal é o de ser Mãe de Deus. Comparados com
este, todos os outros são ínfimos! Deus poderia ter escolhido um meio distinto
para assumir nossa natureza e estar entre nós, mas Ele quis tomar Nossa Senhora
como Mãe. Para uma pessoa humana é impossível uma prerrogativa superior a esta,
e por isso, como ensina São Tomás,6 Ela Se encontra na categoria das criaturas
perfeitas, à qual pertencem apenas duas mais: a humanidade santíssima de Jesus
e a visão beatífica. Este privilégio toca na essência mais profunda de Maria e
é dele que Lhe defluem os demais.
A obediência de Maria
abriu as portas da graça
É evidente que Ela
preza muitíssimo este dom, e decerto as palavras são insuficientes para referir
as elevadas considerações que Ela teceu a respeito, desde o momento de seu
“Fiat!”, quando percebeu por inteiro o que significava para Ela ser Mãe de
Deus. Não obstante, como diz o adágio latino, nemo
summus fit repente — nada de
grandioso acontece de repente. Longe de ser um fato súbito que colheu Nossa
Senhora de surpresa, o anúncio de São Gabriel foi o auge de um processo, como
São Luís Grignion de Montfort tenta descrever: “A divina Maria teve, em
quatorze anos de vida, tal crescimento na graça e na sabedoria de Deus, e uma
fidelidade tão perfeita ao seu amor, que entusiasmou de admiração não só os
Anjos todos, mas ainda o próprio Deus. Sua profunda humildade, levada até o
aniquilamento, O encantou; sua pureza toda divina O atraiu; sua fé viva e suas
orações frequentes e amorosas O forçaram. A Sabedoria foi amorosamente vencida
por tão afetuosas súplicas”.7 Porém, qualquer descrição, por mais completa que
seja, não passa de um traço dessa realidade, tão rica ela é.
Com tal ato de obediência à divina vontade,
Maria fez com que o Filho de Deus, eterno, gerado e não criado, Se tornasse
Filho de Deus no tempo, gerado e criado quanto à sua natureza humana. Santo
Anselmo sintetiza este mistério numa surpreendente expressão: “Um só e o mesmo
seria naturalmente, a um só tempo, o Filho comum de Deus Pai e da Virgem”.8
Nossa Senhora proporcionou ao Filho, então, a possibilidade de Se dirigir ao
Pai a partir da natureza humana e a alegria de sentir-Se inferior ao Pai, de
oferecer-Lhe tudo o que está ao seu alcance, na inteira obediência a Ele, do
que encontramos belíssimas amostras no Evangelho. Entre outras, destaca-se a
oração proferida por Jesus durante a agonia no Horto das Oliveiras: “Meu Pai,
se é possível, afasta de Mim este cálice! Todavia não se faça o que Eu quero,
mas sim o que Tu queres” (Mt 26, 39). E o Espírito Santo, que nada podia
oferecer ao Pai nem ao Filho — porque, sendo as três Pessoas Divinas
substancialmente idênticas desde toda a eternidade, tudo Lhes era comum —, pela
obediência de Maria encontrou a possibilidade de Lhes apresentar muitos filhos
e irmãos: todos os homens que pela graça do Batismo se tornam, por adoção,
filhos do Pai e irmãos de Jesus Cristo. Portanto, “é à humanidade do Verbo e,
por conseguinte, a Maria, que o Espírito Santo deve o fato de ser o Autor da
grande obra da Igreja, que não é senão a continuação da Encarnação, de dar à
luz os membros, assim como deu à luz a Cabeça, e de produzir para a graça e
para a glória o mundo universal dos eleitos”.9
Um altar à altura de
um oferecimento infinito
Já no instante da
Encarnação, Jesus Se ofereceu ao Pai como vítima expiatória por nossos pecados
e passou a interceder junto a Deus em nosso favor. Por isso, além de Redentor,
Cristo é também a Vítima perfeita e o único Sacerdote, o qual “não tem necessidade,
como os outros sumos sacerdotes, de oferecer todos os dias sacrifícios,
primeiro pelos pecados próprios, depois pelos do povo; pois isto o fez de uma
só vez para sempre, oferecendo-Se a Si mesmo” (Hb 7, 27). 0 seu primeiro ato
foi de caráter sacerdotal.
Qual foi o altar à
altura de tal oferecimento, com o qual Nosso Senhor reparou todos os pecados da
humanidade e que seria mais tarde consumado no Calvário? O claustro materno de
Nossa Senhora, onde Ele esteve durante nove meses, no convívio mais íntimo possível
de uma criatura com o Criador. Ao longo de todo esse período, Maria formava,
com o seu sangue, o Corpo sagrado do Menino Jesus no processo próprio à
gestação, pelo qual o sangue materno supre a criança em suas necessidades.
Desta maneira, o Sangue oferecido por Jesus ao Pai tinha por origem o sangue de
Maria, que se divinizava ao se tornar parte do Corpo do Salvador. Em virtude
disso, a fonte do sacerdócio de Nosso Senhor é também a maternidade divina de
Nossa Senhora.
MATERNIDADE
DIVINA, CAUSA DO ÓDIO INFERNAL
À vista de toda a
grandeza que este privilégio mariano encerra, não é difícil entender a razão de
o demônio detestá-lo com força ímpar. Ademais, uma das hipóteses levantadas
para explicar a causa da revolta de satanás é precisamente a rejeição da
Encarnação do Verbo em Maria. E a própria História confirma como ele não poupou
esforços, com todo o seu ímpeto de maldade, para tentar destroçar os defensores
da maternidade divina aqui na Terra.
Sua sanha chegou a
um auge no século V, quando o herege Nestório, Patriarca de Constantinopla,
começou a propagar — apoiando-se na heresia ariana — que em Cristo existem duas
pessoas, uma divina e outra humana e que, em consequência, Maria não podia ser
chamada Mãe de Deus, mas somente Mãe do Cristo enquanto homem.
Ora, na gestação de
uma criança a mãe não cria a alma, apenas engendra o corpo. Ninguém dirá,
entretanto, que ela é mãe só do corpo do bebê. Ao receber nos braços o
recém-nascido, terá ela a alegria de ser mãe de uma pessoa considerada no
seu todo, corpo e alma, pois, como afirma São Tomás,1° ser concebido e nascer é
algo que se atribui à pessoa toda. Da mesma forma, Maria Santíssjma concebeu,
pela ação do Espírito Santo, Aquele que possui duas naturezas — a humana,
formada no seu seio virginal, e a divina, comunicada pelo Pai — unidas numa só
Pessoa: o Verbo de Deus, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, Filho de Deus
na eternidade e Filho de Maria gerado no tempo. Logo, Eia é verdadeiramente Mãe
de Deus.
Foi o ardoroso zelo
de São Cirilo de Alexandria que, sob os auspícios e a bênção do Papa São
Celestino I, obteve a vitória na batalha contra a heresia nestoriana, durante o
Concílio de Efeso, que culminou com a definição solene da maternidade divina de
Nossa Senhora como verdade de Fé: “Se alguém não confessar que o Emanuel é Deus
no sentido verdadeiro e que, portanto, a Santa Virgem é deípara [Mãe de
Deus] (pois gerou segundo a carne o Verbo que é de Deus e veio a ser carne),
seja anátema”.11
Considerados tais
pressupostos, analisemos o trecho do Evangelho recolhido pela Liturgia para
esta Solenidade.
UMA CENA PREPARADA
POR DEUS
Naquele tempo,
16a os pastores foram às pressas a Belém...
Nos versículos
anteriores a este, São Lucas narra a aparição do Anjo aos pastores, anunciando
o nascimento de Cristo na cidade de Davi e indicando-lhes o sinal para
reconhecê-Lo: “Achareis um recém-nascido envolto em faixas e posto numa
manjedoura” (Lc 2, 12). Depois de ouvirem o hino de glória a Deus entoado pela
“multidão do exército celeste” (Lc 2, 13), os pastores decidiram entre si:
“Vamos até Belém e vejamos o que se realizou e o que o Senhor nos manifestou”
(Lc 2, 15). Tão logo cessou a aparição angélica, foi este o primeiro impulso
daqueles piedosos homens, que o realizaram “às pressas”.
Deus prepara os seus
escolhidos
Embora pudéssemos
focalizar nossa análise numa descrição histórica dos pastores, apresentando
detalhes de seu modo de vida ou de seu status na sociedade judaica da época,
voltemos a atenção ao aspecto sobrenatural desses personagens e consideremos,
em primeiro lugar, o fato de terem sido eles escolhidos por Deus, desde todo o
sempre, para receber o anúncio do nascimento de Jesus. A aparição do Anjo,
preferindo-os entre tantos outros homens, não foi mero acaso. Deus nunca deixa
de preparar os seus eleitos, e não podemos pensar que o mensageiro celeste
tenha colhido ex abrupto os primeiros adoradores do Menino Deus, com toda a
rudeza de caráter própria ao ofício por eles exercido.
À semelhança de
Nossa Senhora, estes humildes camponeses foram trabalhados pela Providência
Divina, já na infância — ou até mesmo em seus antepassados —, para tão grande
acontecimento. Como bons judeus, eles conheciam as Escrituras, sobretudo as
profecias da vinda do Messias, e, por uma ação da graça, cada vez maior era seu
amor e sua apetência pela chegada do Salvador. Certamente imaginavam cenas
banhadas de consolação nas quais, por exemplo, se viam oferecendo ao Redentor o
melhor de si mesmos.
Na noite do
nascimento do Menino Jesus, talvez eles tenham sentido uma consolação especial,
num crescendo que culminou com a aparição do Anjo. Era crença comum no Antigo
Testamento que todo homem que visse um Anjo morreria em breve (cf. Jz 6, 22-23;
13, 21-22). Entretanto, depois de uma primeira reação de temor (cf. Lc 2, 9),
ao ouvir as palavras e o cântico da milícia celestial os pastores encheram-se
de encanto, e nem sequer pensavam nisso quando os Anjos desapareceram.
Uma importante
lição nos é oferecida nessa passagem: também nós fomos escolhidos por Deus
desde toda a eternidade. Foi Ele quem preparou tudo para nos santificarmos,
segundo nossa vocação específica. Criou graças especialíssimas para cada um de
nós e, havendo fidelidade de nossa parte, elas nos serão concedidas em
abundância sempre maior — sem sensibilidade, às vezes, para nos pôr à prova —,
até nossa partida deste mundo.
Generosidade em
atender ao chamado de Deus
A presteza dos
pastores em se dirigir ao Presépio supõe que não tenham levado consigo o
rebanho, pois o seu deslocamento exige certo vagar. Os animais ficaram à mercê
das feras e dos ladrões. Eis aqui outra prova de estarem tomados pela graça:
desejavam algo maior e nada constituiu obstáculo para encontrá-lo; senão teriam
se contentado com a visão dos Anjos, permanecendo ali para guardar as ovelhas.
No entanto, dóceis ao convite angélico, abandonaram tudo e, durante o tempo em
que estiveram na Gruta, nem pensaram no rebanho. Sua atenção estava
inteiramente posta em quem os atraíra a Belém.
Não deve ser outra
a nossa forma de proceder em relação às boas-novas vindas do Céu. Quando somos
chamados para uma vocação divina, precisamos rejeitar tudo o que nos impede de
segui-la e ir às pressas ao encontro d’Aquele que nos convoca.
A recompensa de quem
é dócil à graça
16b …e
encontraram Maria e José, e o recém-nascido deitado na manjedoura.
São Lucas quis
nomear Maria em primeiro lugar, pois também no Presépio Ela é nossa Medianeira
junto a Nosso Senhor Jesus Cristo e a tesoureira de todas as graças.
Sem dúvida, Maria havia
reclinado o Menino Jesus na manjedoura, com todo cuidado e afeto, para que os
pastores pudessem adorá-Lo sem atribuir nada a Ela. A cena era a mais modesta
possível, mas, por uma ação do Espírito Santo, os pastores diante do Salvador,
do verdadeiro Deus, tiveram intensa alegria interior, como nunca na vida haviam
sentido, que lhes dava a certeza de estar ali o Messias prometido, o Esperado
das Nações. Nem repararam nos aspectos secundários, como o fato de estar Ele
envolto em panos e ter como berço um cocho, pois quem tem fé não dá importância
aos detalhes inferiores e só considera o cerne: queriam adorar o recém-nascido
que thes fora anunciado como o Cristo Senhor.
Quando percebeu o
júbilo sobrenatural que arrebatava os visitantes, quiçá a Virgem Santíssima
tenha feito com que o Menino passasse pelos braços de cada um, para terem a
felicidade de carregá-Lo ao colo. Se o próprio Jesus Se dá a nós na Comunhão,
bem se pode conjecturar que Nossa Senhora tenha agido desse modo considerando o
Sacramento da Eucaristia a ser futuramente instituído, tal a maternal idade
d’Ela. Assim sendo, aquilo que Constituiu a alegria de Simeão terá sido também
a alegria dos pastores.
De pastores a
primeiros arautos da Boa-nova
17 Tendo-O
visto, contaram o que lhes fora dito sobre o Menino.
18 E todos
os que ouviram os pastores ficaram maravilhados com aquilo que contavam.
Ao empregar as
palavras “o que lhes fora dito”, decerto o Evangelista não se refere apenas à
mensagem do Anjo. Sendo os pastores pessoas simples, é de se supor que tenham
feito perguntas a Nossa Senhora sobre o porvir daquele Menino grandioso. E de
maneira muito afetuosa Ela lhes deve ter contado maravilhas, inclusive
considerações teológicas feitas não só a partir de revelações, mas também dos
seus conhecimentos, por ser dotada de ciência infusa.
Tão entusiasmados
ficaram ao receber esses tesouros de sabedoria que, ao sair da Gruta, começaram
a transmiti-los a todos com os quais se encontravam. Foi o pretexto escolhido
pela Providência para fazer chegar aos ouvidos do povo o eco do magno
acontecimento, iniciando-se, por meio de arautos pastores, a pregação do
Evangelho, O maravilhamento geral causado por esta primeira divulgação da
Boa-nova atesta que os pastores haviam correspondido à graça e tinham sido objeto
de uma autêntica transformação.
Eis outra
importante lição para nós: só colherá frutos no apostolado aquele cuja alma
estiver tomada de enlevo e admiração.
As altíssimas
cogitações de Maria
19 Quanto a
Maria, guardava todos esses fatos e meditava sobre eles em seu coração.
Nossa Senhora
analisava tanto os dados a respeito de seu Divino Filho — a mensagem de São
Gabriel, a manifestação de Santa Isabel, o cântico de São Zacarias, etc. —
quanto os acontecimentos que se sucederam desde o momento da Anunciação. E,
para Se fortalecer mais na fé, ia conferindo esses elementos com tudo o que já
conhecia, seja devido ao dom de sabedoria e de ciência, que Ela possuía em
plenitude, seja pela perfeita compreensão das Sagradas Escrituras, as quais lia
“com a alma cheia de luzes, maiores que as de Isaías e as de todos os outros
profetas”.12
Também os pastores,
durante a visita ao Presépio, foram para Ela objeto de cuidadosa análise, pois
via os efeitos que o Menino Jesus, nascido poucas horas antes, produzia na alma
de cada um. Afinal, se a voz de Maria foi suficiente para purificar São João
Batista ainda no seio de Santa Isabel,’3 que mudança não terá operado o próprio
Deus Menino naqueles homens cheios de fervor? Constatando os efeitos e
remontando-os à Causa, Ela ia constituindo uma elevadíssima teologia.
Conta-se que São
Tomás de Aquino, ao sair de um êxtase, parou de escrever a Suma Teológica,
declarando: “Non possum: quia omnia quæ scripsi videntur mihi paleæ — Não posso. Tudo quanto escrevi,
parece-me, unicamente, palha...”.14 Se ele tivesse conversado com Nossa Senhora
sobre essas cogitações, talvez não escrevesse obra teológica alguma, pois com o
conhecimento de tantas maravilhas julgaria insuficiente qualquer pensamento
próprio...
Da admiração ao
apostolado
20 Os pastores
voltaram, glorificando e louvando a Deus por tudo que tinham visto e ouvido,
conforme lhes tinha sido dito.
Tendo comprovado
com os sentidos tudo o que o Anjo e Nossa Senhora lhes haviam dito, os pastores
saíram do Presépio admirados, e o manifestavam com o constante louvor a Deus
que afluía a seus lábios. Tocados por uma graça que movia a fé, alimentava a
esperança e fortificava a caridade, logo passaram a comunicar isso aos outros,
pois o bem é eminentemente difusivo.15 Assim também devemos ser nós: quando
recebemos uma graça, ou quando Deus nos envia qualquer consolação, precisamos
fazer com que os demais participem dos mesmos dons.
O primeiro
derramamento de Sangue do Redentor
21 Quando se completaram os oito
dias para a circuncisão do Menino deram-Lhe o nome de Jesus, como fora chamado pelo
Anjo antes de ser concebido.
A circuncisão era o
preceito dado por Deus a Abraão (cf.Gn 17, 10-14), verdadeiro privilégio que,
distinguindo os judeus dos outros povos, apagava a mancha do pecado original já
no Antigo Testamento e conferia a graça enquanto símbolo da fé na futura Paixão
de Cristo e pré-figura do Batismo, embora as portas do Céu continuassem
fechadas.’6
Nosso Senhor não
tinha necessidade de Se submeter a esse ritual, pois Ele é o Sumo Bem, a
Verdade por essência, o Belo Absoluto e, ao Se encarnar no seio de uma Virgem
Imaculada, jamais poderia assumir nossa natureza em pecado, que era totalmente
incompatível com Ele. Mas, por nossa causa, Ele quis vir “numa carne semelhante
à do pecado” (Rm 8, 3), e aplicar em Si, inclusive, o remédio próprio ao
pecado, a circuncisão. Além de cumprir a lei por Ele mesmo instituída, foi esse
o modo pelo qual iniciou a obra da Redenção, concluída na Cruz.
Nessa perspectiva,
vemos como é expressivo o nome de Jesus, cujo significado é Deus salva ou
Salvador. Foi-Lhe posto este nome na cerimônia legal da circuncisão, quando
verteu suas primeiras gotas de Sangue, o qual seria derramado abundantemente na
Paixão em reparação por nossos pecados. E sendo o nome a coroação plena do
nascimento de uma pessoa, porque é o que vai designá-la para sempre, mais uma
vez o Evangelho nos reporta à maternidade divina, pois, a partir do momento em
que Jesus recebeu este nome bendito, Maria pôde ser chamada, com propriedade,
Mãe de Jesus, ou seja, Mãe do Salvador, Mãe de Deus.
MÃE DE DEUS… E TAMBÉM
MÃE NOSSA!
Diante da riqueza
da Liturgia inspirada pelo Espírito Santo para exaltar a maternidade divina de
sua Esposa, devemos compreender que também nós estamos contemplados nesse
privilégio de Maria. Todos os batizados fazemos parte da Santa Igreja, Corpo
Místico do qual Cristo é a Cabeça e nós seus membros. Ora, quem é Mãe da Cabeça
é Mãe‚ de todo o Corpo! E quando nascemos para a graça, no Batismo, passamos a
participar da família divina enquanto filhos de Deus e irmãos de Nosso Senhor
Jesus Cristo. Também por esse aspecto Maria é nossa Mãe.
Além disso, assim
como os rios correm a partir de uma nascente, a fonte de nossa vida
sobrenatural é Nosso Senhor Jesus Cristo, pois “todos nós recebemos da sua
plenitude graça sobre graça” (Jo 1, 16). E a Mãe desse manancial de graças é
também Mãe dos riachos que d’Ele procedem.
Foi o próprio
Salvador que, crucificado entre dois ladrões no alto do Calvário, deu caráter
oficial à maternidade de Nossa Senhora extensiva a nós. Na pessoa de São João
Evangelista, Jesus nos entregou a Ela como autênticos filhos, ao dizer:
“Mulher, eis aí teu filho!” (Jo 19, 26), e ao Apóstolo: “Eis aí tua Mãe!” (Jo
19, 27). Desta forma, colocou à disposição de todos nós, seus irmãos pela graça
e pela Redenção, sua própria Mãe. E Ela ama a cada um como se fosse seu filho
único, a tal ponto que se somássemos o amor de todas as mães do mundo por um só
filho, o resultado não alcançaria o amor que Nossa Senhora nutre por nós,
individualmente.17
Encontramos nas
palavras do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira uma tocante consideração a esse
respeito: “Entre o Verbo Encarnado e nós há algo em comum, algo insondavelmente
precioso: temos a mesma Mãe! Mãe perfeita desde o primeiro instante de seu ser
concebido sem mácula. Mãe Santíssima de tal maneira que, em cada momento de sua
existência, não cessou de corresponder à graça; apenas cresceu, cresceu e
cresceu até alcançar inimaginável elevação de virtude. Essa Mãe, d’Ele e nossa,
tem misericórdia do filho mais esfarrapado, torto, desarranjado; e quanto mais
desarranjado, torto e esfarrapado, maior sua compaixão materna. ‘Minha Mãe:
aqui estou eu. Tende pena de mim hoje, agora, como sempre tivestes e, espero,
sempre tereis. Purificai-me, ordenai-me, tomai minha alma cada vez mais
semelhante à vossa e à d’Aquele que, como a mim, é dada a indizível felicidade
de Vos ter por Mãe!”.18
A Jesus, cujo Natal
celebramos nesta Oitava, dirigimos nosso olhar cheio de gratidão e imploramos
que cheguem à sua plenitude as graças por Ele trazidas ao mundo ao nascer em
Belém: “Senhor, Vós quereis reinar sobre a Terra de uma forma solene, majestosa
e, ao mesmo tempo, maternal. Por isso, Vós entregais o vosso Reino à vossa Mãe
Santíssima. Nós Vos pedimos, Senhor, que a misericórdia d’Ela triunfe o quanto
antes! Neste momento, nosso coração se volta a Ela, cheio da certeza de que sua
misericórdia e bondade para cada um de nós é superior à de qualquer mãe. Ela
está disposta a nos abraçar, a nos acolher em seu colo e nos proteger, quer
seja contra a maldade dos homens, quer seja contra a maldade vinda do inferno.
Enfim, Ela está disposta a fazer de tudo por nós! Senhor, não A retenhais!
Deixai que a misericórdia d’Ela nos abrace, pois só assim os horrores do mundo
contemporâneo não atingirão nossa alma. Nós Vos pedimos, Senhor, que Ela
desdobre sobre os vossos filhos toda a sua bondade maternal e misericordiosa,
para que o reino do afeto, o reino do carinho materno, o reino da bondade
insuperável de Maria Santíssima se estabeleça na Terra. E que Ela apareça
sorridente na cerimônia de inauguração dessa nova era histórica, dizendo a seus
filhos: ‘Por fim, o meu Imaculado Coração triunfou”.
1) Os desvios na devoção a Nossa Senhora nos primeiros tempos
ocasionaram inclusive cerimoniais de culto, como comenta Alastruey: “segundo o
testemunho de Santo Epifânio, os coliridianos, na Arábia, veneravam a Virgem
como deusa e ofereciam, com ritos idolátricos, pequenos pães ou tortas em sua
honra. Esta seita era composta quase exclusivamente por mulheres, e a elas
estavam reservados os ofícios sacerdotais. Entre os montanistas orientais, os
chamados marianistas e filo-marianistas adoravam Maria como deusa” (ALASTRUEY,
Gregorio. Tratado de la Virgen Santísima. 4.ed. Madrid: BAC, 1956, p.841).
2) Cf. ROYO MARIN, OP, Antonio. La Virgen María. Madrid: BAC, 1968, p.100-102.
3) Cf. COLUNGA, OP, Alberto; GARCIA CORDERO, OP, Maximiliano.
Biblia Comentada. Pentateuco. Madrid: BAC, 1960, v.1, p.787-788.
4) A respeito da predestinação eterna do Redentor e sua Mãe
Santíssima, ensina o Papa João Paulo II na Encíclica Redemptoris Mater: “No
mistério de Cristo, Maria está presente já ‘antes da criação do mundo’, como
Aquela a quem o Pai ‘escolheu’ para Mãe do seu Filho na Encarnação — e,
conjuntamente ao Pai, escolheu-A também o Filho, confiando-A eternamente ao
Espírito de santidade. Maria está unida a Cristo, de um modo absolutamente
especial e excepcional; e é amada neste ‘Filho muito amado’ desde toda a
eternidade” (JOAO PAULO II. Redemptoris Mater, n.8).
5) ROSCHINI, OSM, Gabriel. Instruções Marianas. São Paulo:
Paulinas, 1960, p.25.
6) Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. I, q.25, a.6, ad 4.
7) SÃO LUÍS MARIA GRIGNION DE MONTFORT. L’Amour de la Sagesse
Éternelle, n.107. In: OEuvres Complètes. Paris: Du Seuil, 1966, p.151.
8) SANTO ANSELMO. De conceptu virginali et originali peccato,
c.XVIII. In: Obras Completas, Madrid: BAC, 1953, v.11, p.47.
9) NICOLAS, Auguste. La Vierge Marie et le plan divin. 2.ed.
Paris: Auguste Vaton, 1856, t.I, p.376.
10) Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., III, q.35, a.4.
11) Dz 252.
12) PHILIPON, OP,
Marie-Michel. Los dones del Espíritu Santo. Barcelona: Balmes, 1966, p.370.
13) Cf. SAO LUIS MARIA GRIGNION DE MONTFORT. Traité de la vraie
dévotion à la Sainte Vierge, n.19. In: OEuvres Complètes, op. cit., p.497.
14) BARTOLOMEU DE CAPUA. Depoimento no Processo de Canonização,
apud AMEAL, João. São Tomás de Aquino. Iniciação ao estudo da sua figura e da
sua obra, Porto: Tavares Martins, 1961, p.145.
15) Cf. sAo fÁs DE AQUINO. Suma contra os gentios. LIII, c.24, n.6.
16) Cf. SAO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. III, q.70, a.4.
17) Cf. SÃO LUÍS MARIA GRIGNION DE MONTFORT, Traité de la vraie
dévotion à la Sainte Vierge, op. cit., n.202, p.620.
18) CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. A mesma Mãe. In: Dr Plinio. São Paulo.
Ano IX. N.96 (Mar., 2006); p.36.
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