Comentário ao Evangelho
– Solenidade da Santíssima Trindade – Ano C
"Naquele tempo disse Jesus a Seus discípulos: 12 ‘Tenho ainda
muitas coisas a dizer-vos, mas não sois capazes de as compreender agora. 13
Quando, porém, vier o Espírito da Verdade, Ele vos conduzirá à plena verdade.
Pois não falará por Si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido e até as coisas
futuras vos anunciará. 14 Ele Me glorificará, porque receberá do que é meu e
vo-lo anunciará. 15 Tudo o que o Pai possui é meu. Por isso, disse que o que
Ele receberá e vos anunciará é meu'" (Jo 16, 12-15).
Constatando a
insuficiência da humana inteligência diante dos maiores mistérios de nossa Fé,
resta-nos prestar um tributo de amor e gratidão ao Deus Uno e Trino, que nos
oferece uma dádiva infinitamente acima de nossa natureza e merecimentos.
I - Um dos maiores mistérios da nossa Fé
Conta uma piedosa
tradição que, estando o grande Santo Agostinho muito empenhado em procurar
compreender a Santíssima Trindade, certo dia sonhou que presenciava na praia um
menino esvaziando baldes e baldes de água do mar em uma cavidade na areia.
Intrigado, aproximou- se dele e indagou:
- Que fazes aqui, meu jovenzinho?
- Tento colocar toda a
água do mar neste buraco na areia.
- Mas, não vês que isso
é impossível? - perguntou-lhe o santo.
- Pois sabei, Agostinho,
que mais fácil é transferir para aqui toda a água do mar do que vós
compreenderdes o mistério da Santíssima Trindade.
A sábia resposta fez o
Doutor da Graça dar-se conta da insuficiência da inteligência humana, ainda que
tão brilhante como a dele, perante um dos mistérios centrais da nossa Fé.
Inatingível pela mera razão natural
Nas aulas de Catecismo,
aprendemos uma fórmula extraordinariamente simples e breve: "Um só Deus em
três pessoas". Ela nos é muito familiar e podemos decorá-la com
facilidade, mas jamais conseguiremos penetrar no seu significado sem a ajuda da
Fé. Por isso, Santo Agostinho nos aconselha: "Se almejamos compreender
tanto quanto nos é possível a eternidade, a igualdade e unidade de um Deus
trino, precisamos crer antes de entender".1
Desde toda a eternidade,
conhecendo-Se a Si mesmo no espelho puríssimo de Sua essência, o Pai gera o
Filho - o Verbo, a Palavra viva e substancial -, que é a Segunda Pessoa. Vendo
a essência divina do Seu Verbo, o Pai O ama sem limites. E o Verbo, afirma o
padre Royo Marín, "retribui a Seu Pai um amor semelhante, igualmente
eterno e infinito. E ao encontrar-se a corrente impetuosa de amor que brota do
Pai com a que brota do Filho, salta, por assim dizer, uma torrente de chamas,
que é o Espírito Santo".2
Esse insondável mistério
da vida ad intra de Deus, baseada no amor, tornou-se cognoscível apenas pela
Revelação. Para a inteligência humana resulta impossível entendê-lo, pois nada
há na ordem da criação que possa dar ideia explícita dele. "É impossível
chegar ao conhecimento da Trindade das Pessoas divinas pela razão
natural", afirma São Tomás.3 Logo a seguir, esclarece ser-nos possível
conhecer de Deus, por mero raciocínio, "o que pertence à unidade da
essência, não à distinção das Pessoas".4
Tão inefável é o
mistério da Santíssima Trindade que Santo Antônio Maria Claret, após procurar
descrevê-lo, afirma: "Incompreensível vos parecerá isto, sem dúvida. E se
pudéssemos compreendê- lo com perfeição, ou seríamos esse Deus, ou Aquele cuja
natureza declarássemos como é em si, não o seria. O que teria de precioso a
Divindade incompreensível - pergunta Eusébio Emiseno - se a sabedoria humana
pudesse compreender Aquele Senhor que habita nas alturas, ao qual as nuvens
servem de abajur e que é infinitamente superior a toda a ciência dos homens?".5
O Espírito sonda tudo
A incapacidade de nosso
intelecto para desvendar os mistérios da Fé não deve nos causar estranheza
quando, mesmo no plano material, continuamos desconhecendo a explicação de
muitos fenômenos naturais que nossos sentidos captam e cujas causas poderíamos
deduzir pela aplicação do nosso entendimento.
Alguns mistérios, como o
da Encarnação, parecem estar mais ao nosso alcance, porque neles encontramos um
Deus que Se fez Homem, tornando-Se perceptível a nossos sentidos. Mas, tanto o da
Encarnação quanto o da Santíssima Trindade e os outros mistérios da nossa Fé
foram escondidos dos sábios, e revelados aos pequeninos (cf. Mt 11, 25) pela
ação do Espírito Santo, que "sonda tudo, mesmo as profundezas de
Deus" (I Cor 2, 10). É pela fogosa pluma do Apóstolo que temos ciência de
quanto "o amor de Deus foi derramado nos nossos corações pelo Espírito
Santo, que nos foi dado" (Rm 5, 5).
A grande e virtuosa
Santa Maria Madalena de Pazzi, disse em certa ocasião: "Vi um hóspede
divino sentado sobre um trono".6
O afamado padre Plus
torna-nos ainda mais explícito quem é esse Divino Visitante: "Esse
Hóspede, o mais nobre e digno de todos, é o Espírito Santo que, com a agilidade
de Sua bondade e de Seu amor a nós, infunde-Se rapidamente em todas as almas
dispostas a recebê-lo. Quem poderia enunciar os maravilhosos efeitos que Ele
produz em qualquer lugar onde é recebido! Fala sem articular palavras, e todos
ouvem Seu divino silêncio. Está sempre imóvel e sempre em movimento, e Sua
imobilidade móvel comunica-se a todos. Permanece sempre em repouso e, não
obstante, age sempre; e no Seu repouso realiza as mais dignas e admiráveis
obras. Sempre em movimento, sem nunca mudar de lugar, confirma e ao mesmo tempo
destrói tudo onde penetra. Sua imensa e penetrante ciência tudo conhece, tudo
ouve e tudo descobre. Sem necessidade de estar atento, ouve a menor palavra
dita no mais íntimo do coração".7
Diz-nos, ademais, o
padre Faber: "O Espírito Santo fala mais que Jesus [...], toma maior
iniciativa; parece dizer mais, parece que a paixão de Seu interesse pelos
pecadores, Ele a tem muito maior para o santo".8
É o Espírito Quem nos
faz compreender - muitas vezes às apalpadelas (cf. At 17, 27), como se
andássemos às escuras - os ensinamentos revelados pela Palavra da verdade. É
por um dom do Paráclito que aos poucos vamos conhecendo- os e constituindo uma
noção cada vez menos imprecisa a respeito da Santíssima Trindade.
Por isso, pedimos na
Oração do Dia: "Ó Deus, nosso Pai, enviando ao mundo a Palavra da verdade
e o Espírito Santificador, revelastes o vosso inefável mistério, fazei que,
professando a verdadeira Fé, reconheçamos a glória da Trindade e adoremos a
Unidade onipotente".
Mistério com o qual convivemos cotidianamente
Já nos escritos
apostólicos, encontramos formulações afirmando a crença na Trindade. Destaca-
se, entre eles, o encerramento da Epístola aos Coríntios, que inspirou a
saudação inicial da Santa Missa: "A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor
de Deus e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos vós" (II Cor 13,
13). E ao longo dos séculos foi a Igreja
explicitando sua Fé trinitária e definindo verdades por obra dos Concílios, com
a contribuição dos Padres da Igreja e do sensus fidei do povo cristão.
Hoje, podemos constatar
a naturalidade com que, por maravilhosa ação da graça nas almas, convive o fiel
cotidianamente com um dos principais mistérios de nossa Fé. Diversas vezes ao
dia nos persignamos "em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo"
e a maior parte das nossas orações termina glorificando a Santíssima Trindade.
Em qualquer ato litúrgico ou piedoso Ela é reverenciada sem que, na maioria das
ocasiões, os presentes se detenham para pensar sobre a grandeza desse mistério.
E a Liturgia desta
Solenidade - cuja comemoração foi estendida por João XXII, em 1334, a toda a
Igreja Latina - visa precisamente incrementar nossa devoção ao Deus uno e
Trino, Trindade consubstancial e indivisível.
II - Jesus anuncia o Paráclito
O trecho do Evangelho de
São João, hoje contemplado, pertence ao relato da Última Ceia. Precede a Oração
Sacerdotal, e sucede ao episódio do lava-pés e a diversas afirmações
misteriosas do Divino Redentor que pareceram incompreensíveis aos Apóstolos,
como o anúncio da traição de Judas, da negação de Pedro antes que o galo cantasse,
ou ainda da Sua breve partida: "Para onde Eu vou, vós não podeis ir"
(Jo 13, 33).
Encontravam-se eles
admirados e perplexos ao extremo diante do grandioso panorama apresentado por
Jesus, tanto mais que suas vidas estavam em questão, pois poucos instantes
antes o Salvador afirmara: "Virá a hora em que todo aquele que vos matar,
julgará estar prestando culto a Deus" (Jo 16, 2).
"Não sois capazes de compreender agora"
12 "Tenho ainda muitas coisas a dizervos, mas não sois capazes de
as compreender agora".
Chama a atenção ver o
Mestre por excelência, incomparável pedagogo, dotado de divina didática,
afirmar que vai silenciar determinados ensinamentos porque Seus interlocutores
não são capazes de compreendê-los.
Até se poderia ter a
falsa impressão de que, por causa de certas deficiências dos Apóstolos, Nosso
Senhor houvera decidido guardar para Si algumas das doutrinas que deveriam
fazer parte da Revelação. E que, portanto, se os Doze tivessem sido
inteiramente fiéis, ter-lhes-ia o Divino Mestre desvendado muitas outras
maravilhas. Afirmar isso, porém, seria grave erro, pois equivaleria a asseverar
que ficou incompleta a missão de Nosso Senhor, não tendo sido atingida, com
Ele, a plenitude da Revelação.
Para bem entendermos
este versículo, precisamos considerar a rudeza dos Apóstolos, sua condição de
pessoas simples e a sublimidade dos ensinamentos que lhes seriam confiados.
Tudo isto exigia, segundo o padre Tuya, "uma transformação radical que, no
plano do Pai, estava reservada ao Pentecostes, como ponto inicial da ação do
Espírito sobre eles".9
Necessitavam dos dons do
Paráclito para compreender certas verdades reveladas, que ultrapassam a
capacidade humana de entendimento. De nada serviria, naquele momento, toda a
divina didática de Cristo, sem estar acompanhada pela ação sobrenatural que se
lhes concederia mais adiante. Embora o Espírito Santo "não fosse melhor
mestre que Jesus, Ele, entretanto, lhes falaria numa oportunidade melhor",
explica Maldonado.10
De outro lado, as
palavras de Nosso Senhor não autorizam a deduzir que tenha havido alguma falta
ou infidelidade da parte dos Apóstolos. Apenas afirma o Divino Mestre serem
eles incapazes de compreender, naquele momento, "muitas coisas" que
Ele tinha a transmitir. Nisso nada havia de desonroso, pois, mesmo decorridos
já dois milênios, durante os quais a doutrina católica foi crescentemente
explicitada pelo Magistério pontifício, pelos escritos dos doutores ou pela voz
dos pregadores, muitas das verdades reveladas permanecem ainda incompreensíveis
à razão humana, aguardando uma ação do Paráclito que venha esclarecê-las.
Uma última reflexão,
útil especialmente para nós sacerdotes. Além de reconhecermos com humildade
essa limitação do nosso intelecto, precisamos saber aplicar, no exercício de
nosso ministério, a lição moral que o Cardeal Gomá tira deste versículo:
"A inteligência humana é um vaso pequeno demais para receber toda a
verdade divina. Por isso Deus é misericordioso a ponto de descer até nós e
dar-nos a verdade de acordo com a medida de nossa capacidade.Tenham isto bem
presente aqueles que ensinam, ao povo, as verdades de nossa Religião".11
"Ele vos conduzirá à plena verdade"
13a "Quando, porém, vier o Espírito da Verdade, Ele vos conduzirá à
plena verdade".
Deveria nosso Redentor
partir em breve, vindo em seguida o Paráclito para abrir as almas dos
discípulos à "plena verdade", isto é, conduzi- los ao conhecimento
completo do que foi revelado. Pois cabe ao Consolador, como afirma Fillion,
finalizar a obra de Jesus, ensinando aos Seus discípulos "a verdade cristã
inteira e completa em toda a sua extensão, e sem perigo de errarem, ao menos
naquilo que lhes fosse necessário para seu futuro ministério".12
No mesmo sentido se
pronuncia o padre Manuel de Tuya, ao afirmar: "O contexto do Evangelho de
João sugere que, mais do que a uma revelação absolutamente nova de verdades,
feita pelo Espírito Santo, refere-se a uma maior penetração das verdades
reveladas por Cristo aos Apóstolos".13
Com efeito, no decurso
da era da Nova Aliança, o Espírito Santo não deixa de inspirar progressivamente
as almas no sentido de melhor entenderem a riquíssima doutrina deixada por
Nosso Senhor. Tudo quanto Ele ensinou será passível de desdobramentos e
aprofundamentos até o fim do mundo. E sempre haverá novas pérolas a descobrir nesse
inesgotável tesouro, pois, "embora a Revelação esteja terminada, não está
explicitada por completo; caberá à Fé cristã captar gradualmente todo o seu
alcance ao longo dos séculos".14
Em relação ao método
usado pelo Espírito Paráclito para melhor fazer penetrar os Apóstolos nas
verdades reveladas, Maldonado interpreta da seguinte forma a expressão
"vos conduzirá": "Conduzir à plena verdade não significa ensinar
de qualquer maneira toda a verdade, mas agir de modo que o mestre leve quase
pela mão o discípulo, e vá ensinando-lhe o caminho da verdade mais adequado à
sua inteligência; ou seja, não expor-lhe todas as coisas ao mesmo tempo ou em
desordem, mostrando primeiro o difícil e depois o fácil, mas ao contrário,
propondo primeiro o fácil e em seguida o difícil, cada coisa a seu tempo, de
acordo com o aproveitamento e a capacidade de quem aprende".15
É preciso notar, por
fim, que quem não tiver recebido o Sacramento do Batismo jamais conseguirá
atingir certas verdades da nossa Fé, por maiores que sejam a inteligência e o
esforço aplicados. E isto porque a alma não recebeu a luz do Espírito Santo,
que torna compreensível a Palavra divina.
Assim aconteceu quando
Nosso Senhor revelou a Eucaristia: muitos dos Seus discípulos O abandonaram,
por interpretarem Suas palavras em sentido literal (cf. Jo 6, 48-69); hoje,
porém, com o auxílio da graça do Paráclito, milhões e milhões de fiéis no mundo
inteiro participam da Celebração Eucarística, dobrando os joelhos em adoração,
ao serem pronunciadas, na Consagração, palavras do teor daquelas que outrora
tanto chocaram, inclusive os Apóstolos.
Três pessoas idênticas e coeternas
13b "Pois não falará por Si mesmo, mas dirá tudo o que tiver
ouvido".
Com Nosso Senhor,
atingiu-se a plenitude da Revelação. "Cristo, o Filho de Deus feito Homem,
é a Palavra única, perfeita e insuperável do Pai. N'Ele o Pai disse tudo e não
haverá outra palavra senão esta".16 Portanto, nada há fora do Verbo
Encarnado que possa ser transmitido aos homens, e devemos interpretar neste
sentido o presente versículo, como observa Lagrange: "O Espírito não
falará por Si mesmo, ou seja, não exporá uma doutrina própria d'Ele: a doutrina
não será nova, pelo menos no sentido de que não será estranha à Revelação já
feita pelo Filho".17
De outro lado, convém
evitar a conclusão errônea segundo a qual o Espírito Santo necessitaria ouvir
os ensinamentos de Cristo para depois transmiti-los aos Apóstolos, como se Ele
tivesse alguma inferioridade em relação ao Filho. Sendo as três Pessoas
idênticas e coeternas, são um só Deus.
Portanto, falando em
termos humanos, o que "sabe" uma Pessoa divina, "sabem-no"
também as outras. Ou, dito com as palavras do Cardeal Gomá: "A ciência das
três Pessoas divinas é a mesma, infinita; contudo, recebendo o Espírito Santo a
natureza do Pai e do Filho, dos quais procede, recebe também a ciência, segundo
nossa maneira de falar".18
Assim, quando o
Paráclito disser aos Apóstolos "tudo quanto tiver ouvido", estará
revelando aquilo que conhece desde toda a eternidade, tal qual o Pai e o Filho.
O dom de profecia
13c "e até as coisas futuras vos anunciará".
Pode-se interpretar esta
afirmação como um recurso didático utilizado pelo Divino Mestre para melhor
fazer compreender, aos Seus ouvintes, toda a extensão do poder do Espírito
Santo para conduzir as almas à plena verdade. Mas outros autores, entre os
quais Maldonado,19 preferem interpretar esta passagem como sendo um desejo de
Jesus, de frisar a presença do dom de profecia entre os demais dons que o
Espírito Santo infundiria nos Apóstolos.
Pois se este dom foi
dado à Sinagoga, com muito maior razão deveria possuí-lo a Igreja. É o que
assinala o Cardeal Gomá: "As funções do Espírito Santo não terminaram com
a morte dos Apóstolos; com eles encerrou-se a Revelação; mas a Igreja tem a assistência
positiva do Espírito Divino para não errar no caminho da verdade especulativa e
prática; por outro lado, nunca cessou, na Igreja, o espírito de
profecia".20
Lembremos também que
profetizar não significa apenas, nem principalmente, prever o futuro; consiste,
pelo contrário, em interpretar o presente para saber conduzir os fiéis nas vias
da Providência. Esse carisma para discernir os desígnios de Deus e guiar Seus
filhos é concedido à Igreja em um grau incomparavelmente maior do que foi dado
na Antiga Lei.
O Espírito não é maior do que o Filho
14 "Ele Me glorificará, porque receberá do que é meu e vo-lo
anunciará".
Tudo quanto se refere à
Santíssima Trindade fica envolvido em véus de mistério. Qual o significado da
afirmação feita pelo Divino Mestre: "Receberá do que é meu"?
Sob uma perspectiva
eminentemente pastoral, Crisóstomo assim interpreta: "Para que, ao ouvir
essas palavras, não julgassem os discípulos ser o Espírito Santo maior do que
Ele e caíssem em maior impiedade, disse: ‘Receberá do que é meu'. Ou seja: ‘O
que Eu disse, também Ele o dirá'".21
Dídimo, de sua parte,
sob um prisma metafísico, busca o sentido da mesma expressão: "‘Receber',
aqui, segundo a natureza divina, deve entender- se da seguinte forma: assim
como o Filho, dando, não Se priva do que dá, nem Se prejudica beneficiando a
outrem, assim também o Espírito Santo não recebe o que antes não possuía; pois
se recebesse um dom que não tinha anteriormente, ficaria sem ele quando o
transferisse a outrem. Convém entender que o Espírito Santo recebe do Filho
aquilo que constitui Sua natureza, e que não são duas substâncias - uma que dá
e outra que recebe - mas sim uma só substância. Do mesmo modo, o Filho recebe
do Pai a mesma substância que subsiste em ambos: nem o Filho é outra coisa que
tudo aquilo que recebe de Seu Pai, nem o Espírito Santo é outra substância que
a que recebe do Filho".22
Já Maldonado, em
consonância com diversos comentaristas antigos, procura salientar a
glorificação que Cristo há de receber pelo testemunho que d'Ele será dado pelo
Espírito da Verdade, e conclui: "Portanto, a verdadeira interpretação é:
‘O Espírito virá em meu nome e ensinará minha doutrina, como legado meu. Por
isso, a glória de Suas obras e magistério redundará em minha glória'".23
O Paráclito transformará as nossas almas
15 "Tudo o que o Pai possui é meu. Por isso, disse que o que Ele
receberá e vos anunciará é meu".
Após ter afirmado no
versículo anterior que o Espírito Santo "receberá do que é meu",
Jesus agora declara: "tudo o que o Pai possui é meu", evidenciando a
união substancial das três divinas Pessoas. Como bem assevera Lagrange, "é
tal a unidade do Pai e do Filho que é preciso reconhecer: tudo quando o
Espírito recebeu do Pai, Ele recebeu também do Filho, porque o Filho tem tudo
quanto o Pai tem. Estas palavras são o que o Novo Testamento contém de mais
expressivo sobre a unidade de natureza e a distinção de Pessoas na Santíssima
Trindade, e especialmente sobre a processão do Espírito Santo".24
No mesmo sentido se
pronuncia o Cardeal Gomá, ao afirmar ser este versículo "uma forma de
manifestar, segundo o raciocínio e as palavras do homem, aquilo que se produz
de maneira inefável no seio da Trindade beatíssima. Baste- nos saber - para
sentirmos profunda gratidão ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo - que as três
Pessoas divinas realizaram o mistério de nossa salvação e santificação, e que
as inspirações da graça, as sugestões de ordem intelectual, às quais aqui Se
refere Jesus, atribuem-se ao Espírito Santo porque é obra de amor que se atribui
ao Espírito Santificador".25
Assim, em todas as
nossas orações, sobretudo ao recebermos a Sagrada Comunhão, peçamos a graça de
sermos inteiramente dóceis às inspirações do Paráclito. Abramos-lhe as nossas
almas sem nenhuma restrição, desconfiança ou reserva, a fim de que Ele nos
encha de luzes, fogo e entusiasmo, como o fez com os Apóstolos no dia de
Pentecostes.
III - Fazemos parte da Família Divina
No Paraíso Terrestre,
Adão passeava com Deus na brisa da tarde (cf. Gn 3, 8). Afirma, a este propósito,
Santo Irineu: "O Jardim do Éden era tão belo e agradável que com
frequência Deus nele Se apresentava pessoalmente, passeava e conversava com o
homem, prefigurando o que haveria de suceder no futuro, isto é, que o Verbo de
Deus habitaria junto ao homem e conversaria com ele, ensinando-lhe sua
justiça".26
Mas se esta passagem
bíblica prenuncia o inefável relacionamento que a Segunda Pessoa da Santíssima
Trindade teria com os homens durante 33 anos nesta Terra, através de Sua
sagrada humanidade, ela evoca ainda mais o celeste convívio na felicidade
eterna, quando contemplaremos face a face o mesmo Deus que o homem apenas
entrevia no Paraíso.
Com a maternal
preocupação de preparar-nos para esse sobrenatural relacionamento, a Liturgia
de hoje ilumina nosso entendimento e move nossa vontade. Pois se, pelo Batismo,
a graça nos faz participar daquilo que o Espírito recebeu de Cristo, e Cristo
recebeu do Pai, ela nos eleva muito acima da nossa natureza humana para nos
tornar verdadeiros filhos e herdeiros da Santíssima Trindade. Como mais
precisamente nos ensina São Paulo: "Todos os que são conduzidos pelo
Espírito de Deus são filhos de Deus" (Rm 8, 14).
Mesmo sendo puras
criaturas, há no Céu um trono preparado para cada um de nós, e a consideração
de tão grande dádiva convida-nos a esquecermos as contingências da vida terrena
e elevar o espírito até a bem-aventurança eterna. Todos nós somos chamados a
participar da própria vida de Deus. Pertencemos, como membros adotivos, a esta
família chamada Santíssima Trindade. Este é nosso maior tesouro.
Saibamos dar o devido
valor a esta gratuita dádiva, e procuremos compreender que, em nosso
relacionamento diário, temos uma insuperável matriz de convívio: o eterno amor
entre as três Pessoas divinas. Pois, ensina-nos a Santa Igreja, a família
cristã é "comunhão de pessoas, vestígio e imagem da comunhão do Pai, do
Filho e do Espírito Santo".27
Sejamos gratos à Divina
Providência, rogando a graça de estarmos à altura de tudo quanto d'Ela
recebemos. E peçamos, por meio da Filha diletíssima do Pai, Mãe admirável de
Nosso Senhor Jesus Cristo, e Esposa e Templo do Paráclito, que a Santíssima
Trindade nos cumule de dons místicos no relacionamento com o Pai que nos criou,
com o Filho que nos redimiu, e com o Espírito que nos santifica.
1 SANTO AGOSTINHO. De Trinitate, I,8, c.5:
PL 42, 952- 953.
2 ROYO MARÍN, OP, Antonio. Teología de la
Perfección Cristiana. 9.ed. Madrid: BAC, 2001, p.53.
3 SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. I,
q.32, a.1, resp.
4 Idem, ibidem.
5 SANTO Antonio María CLARET. Colección de
Pláticas Dominicales. Barcelona: Librería Religiosa, 1886, v.II, p.256.
6 SANTA MARIA MADALENA DE PAZZI apud PLUS,
SJ, Raúl. Cristo en nosotros. Barcelona: Librería Religiosa, 1943, p.153.
7
PLUS, SJ, op. cit., ibidem.
8
FABER, Frederick William. OEuvres posthumes. P. Lethielleux, 1906, t.I, p.125;
t.II, p.242.
9 TUYA, OP, Manuel de. Biblia comentada -
II Evangelios. Madrid: BAC, 1964, p.1253. No mesmo sentido, MALDONADO, SJ, Juan
de. Comentarios a los cuatro Evangelios. III. Evangelio de San Juan. Madrid:
BAC, 1954, p.867.
10 MALDONADO, SJ, op. cit., ibidem.
11 GOMÁ Y TOMÁS, Isidro. El Evangelio
explicado. Barcelona: Acervo, 1967, v.II, p.535.
12 FILLION, Louis-Claude. Vida de Nuestro
Señor Jesucristo. Madrid: Voluntad, 1927, p. 223.
13
TUYA, OP, op. cit., p.1253.
14 Catecismo da Igreja Católica, n.66.
15 MALDONADO, SJ, op. cit., p.869.
16 Catecismo da Igreja Católica, n.65.
17
LAGRANGE, OP, Marie-Joseph. Évangile selon Saint Jean. Paris: Lecoffre, 1936,
p.422.
18 GOMÁ Y TOMÁS, op. cit., p.535.
19 Cf. MALDONADO, SJ, op. cit., p.871.
20 GOMÁ Y TOMÁS, op. cit., p.534.
21 SAN JUAN CRISÓSTOMO. Homilías selectas
- Homilías exegéticas. Madrid: Razón y Fe, 1911, t.III, p.509.
22 DÍDIMO apud SANTO TOMÁS DE AQUINO.
Catena aurea.
23 MALDONADO, SJ, op. cit., p.872.
24 LAGRANGE, OP, op. cit., p.423.
25 GOMÁ Y YOMÁS, op. cit., p.535.
26
ST. IRENAEUS, BISHOP OF LYON. The Demonstration of the Apostolic Preaching.
London: Society of Promoting Christian Knowledge, 1920, p.82.
27 Catecismo da Igreja Católica, n.2205.
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