Comentários ao
Evangelho XII Domingo do Tempo Comum – Ano C – Lc 9, 18-24
A cruz, quando inteiramente abraçada, nos configura
com Cristo
No auge da fama e da popularidade de Nosso Senhor, todos
esperam para breve sua aclamação como um líder político sem precedentes. Jesus,
porém, desfaz essa errônea expectativa com o anúncio de sua Paixão.
A TENTACÃO DA TERCEIRA POSIÇÃO
É difícil para o homem, no relacionamento com o
próximo ou com Deus, agir segundo as exigências de sua consciência, da moral e
da verdade. Tomar uma atitude decidida e definitiva constitui uma escolha
árdua, pois, por um lado, no interior da alma, clama a voz das más inclinações
decorrentes do pecado e, por outro, o convite à retidão, à perfeição e à
santidade feito pela graça. Optar por uma dessas solicitações acarreta sérias
consequências, surgindo a partir daí uma luta que continua durante toda a vida
até o momento do juízo particular, fato que explica a conhecida afirmação de
Jó: “a vida do homem sobre a Terra é uma luta” (7, 1). Não há uma idade a
partir da qual seja possível considerá-la encerrada; pelo contrário, as
batalhas espirituais tornam-se cada vez mais impetuosas com o passar do tempo.
Comprova-o a hagiografia, ao mostrar a luta presente na trajetória terrena dos
santos, até o último suspiro deles. Célebre é a exclamação de São Luís Grignion
de Montfort, na hora da morte, indicativa de seu constante esforço para se
manter fiel à Lei divina, da qual se julgava cumpridor muito imperfeito:
“Cheguei ao termo de minha carreira: não pecarei mais!”1
Contudo, quando não é justo, o homem esmorece
nesse combate ascético e procura encontrar um meio de descansar, desejando
alcançar a recompensa eterna sem fazer esforço. Tal é a razão pela qual não
existe uma corrente com maior quantidade de adeptos quanto a chamada terceira
posição. Trata-se do partido mais numeroso existente no mundo, desde a saída de
Adão e Eva do Paraíso, porque a tendência do homem não é ceder ao mal enquanto
mal — pois ser mau é incômodo e implica também em lutar, exige agrede, ou seja,
capacidade de luta —, mas sim fugir da dor. Nossa existência acarreta sempre
padecimentos, pois é impossível viver sem sofrer, ainda quando se é inocente.
Nem a Inocência em Si mesma, Nosso Senhor, nem a Inocente por excelência, Nossa
Senhora, ficaram livres da dor, sendo inconcebível uma existência, por mais
excelsa que seja, isenta de adversidades.
São Luís Grignion de
Montfort, em sua Carta circular aos Amigos da Cruz, tratou dessa luta interior
ao mostrar o glorioso caminho dos eleitos: “O conhecimento experimental do
mistério da Cruz é dado a conhecer a muito poucos. Para que um homem suba até o
Calvário e se deixe crucificar com Jesus, em meio a seu próprio povo, necessita
ser um valente, um herói, um homem determinado e unido a Deus; que escarneça do
mundo e do inferno, de seu corpo e de sua própria vontade; um homem resolvido a
sacrificar tudo, a realizar tudo e a padecer tudo por Jesus Cristo. Sabei,
queridos Amigos da Cruz, que aqueles que dentre vós não se encontrem com esta
disposição, estes andam com um pé só, voam apenas com uma asa e não merecem
estar convosco, porque não merecem ser chamados Amigos da Cruz, a qual devemos
amar com Jesus Cristo, corde
magno et animo volenti — com
largueza de coração e ânimo generoso (cf. II Mac 1, 3).2 Não existe um terceiro
caminho no qual juntemos as vantagens e as glórias da obediência a Deus com o
gozo e as fruições do pecado. A batalha de nossa vida espiritual, portanto,
cifra-se em tomarmos fervorosamente a primeira posição, sem nos deixarmos
enganar pela falsidade da terceira. Como abrir, então, nossas almas à árdua via
do sofrimento, única forma de atender ao chamado do Divino Mestre? E o que nos
ensina Nosso Senhor neste Evangelho do 12º Domingo do Tempo Comum.
O EXEMPLO DO SALVADOR
A passagem apresentada
neste domingo situa-se no período áureo da vida pública de Jesus, quando sua
fama no mundo hebraico caminhava para o apogeu e se celebravam seus feitos por
toda parte. A notícia dos milagres realizados já se espalhara por Israel, e não
havia um só recanto onde não se comentasse a trajetória ascensional daquele
Mestre cheio de influência e poderes sobrenaturais. Fillion comenta a
importância do momento histórico e das afirmações de Cristo ora contemplados:
“Chegamos a palavras e acontecimentos de altíssima importância. [...] eis aqui
acontecimentos extraordinários, inclusive dentro de uma vida tão extraordinária
como foi a de Nosso Senhor. Essa vida, de si tão sublime, vai subir a regiões
ainda mais elevadas antes de descer ao que muito justamente se chamou de vale
profundo da dor e da humilhação. Se daqui em diante Jesus se ocupa menos em
instruir o povo e o vemos mais raramente em contato com ele, consagra, em
troca, mais atenção ao pequeno grupo de seus Apóstolos, aos quais revelará os segredos
de sua origem e missão. Assim iremos penetrando cada vez mais no coração do
Evangelho”.3
De fato, o episódio deste domingo é tido como um
dos pontos auges do convívio do Salvador com os discípulos, e marco importante
da instituição da Igreja docente. Os evangelistas São Mateus e São Marcos
relatam encontrar-Se Jesus, nesse dia, nas proximidades de Cesareia de Filipe,
cidade situada em território pagão, incrustada numa região isolada e de
grandiosa beleza. São Lucas, embora não ofereça maiores especificações
geográficas, registra um precioso pormenor que antecedeu a confissão de Pedro e
o primeiro anúncio da Paixão: o Mestre estava orando.
A oração do Homem-Deus
Certo dia, 18a Jesus estava rezando num lugar
retirado, e os discípulos estavam com ele.
A oração de Jesus constitui um apaixonante
mistério mencionado em diversas ocasiões ao longo dos Evangelhos. Dentre os
quatro evangelistas, São Lucas mostra-se mais atento a esse detalhe,
referindo-o com certa frequência. Os grandes episódios da vida de Cristo são
precedidos por períodos de prece. O Evangelista menciona onze ocasiões em que
Jesus reza ao Pai, embora nem sempre se detenha no conteúdo de tais colóquios.4
Dessa vez Nosso Senhor procura um lugar ermo e,
sem despedir os que O seguiam, afasta-Se um pouco deles e entrega-Se a uma
recolhida oração. Nossa piedade, estimulada pela grandeza do ato — o qual, de
si, já bastaria para redimir a humanidade —, nos conduz à formulação de algumas
perguntas: se Ele é Deus, a quem rezava? E Ele o destinatário da prece e, ao
mesmo tempo, quem reza? A pluma dos teólogos torna-se débil para expressar a
excelsitude do fato. Sendo Deus e Homem, e possuindo, por tal razão, duas
naturezas distintas unidas na Pessoa Divina do Verbo, em Cristo encontra-se
onipotência unida à humanidade, sem que esta última perca uma só de suas
característitas, tais como inteligência, vontade, sensibilidade, memória,
imaginação e demais faculdades.Sua prece, portanto, parte da natureza humana
dirige-se à Trindade, cuja Segunda Pessoa é Ele mesmo, sendo a
expressão da vontade de humana de Jesus, deliberada e absoluta,
intercessão perfeita que deve ser atendida. Quão insondável e profunda é a
oração do Mestre! Nunca conheceremos nesta vida — tão só no Céu — a força
impetratória de um pedido d’Ele, como na comovedora frase “eu roguei por ti”
(Lc 22, 32), pela qual perseverou não apenas São Pedro, mas também cada um de
nós.
A excelência da oração e do recolhimento
Grande é o apreço de Nosso Senhor pela oração,
tanto que quis servir-Se dela para derramar graças sobre o mundo. O que podia
conceder diretamente como Deus, preferiu pedir enquanto Homem, indicando à
humanidade um caminho infalível e harmônico com os desígnios divinos. Agindo
dessa maneira, ensina São Cirilo de Alexandria, “constituía-se em modelo de
seus discípulos”.5
Cornélio a Lápide, por sua vez, tece as seguintes
considerações a propósito do valor e dos efeitos da oração: “Não há lugar nem
tempo em que não devamos rezar. A oração é a coluna das virtudes, a escada da
divindade, das graças e dos Anjos para descer à Terra, e dos homens para subir
à montanha eterna. A oração é a irmã dos Anjos, o fundamento da fé, a coroa das
almas [...]. A oração é uma corrente de ouro que liga o homem a Deus, Deus ao
homem, a Terra ao Céu; ela fecha o inferno, encadeia os demônios; previne os
crimes e os apaga... A oração é a arma mais forte; ela oferece uma
inquebrantável segurança, é o maior tesouro; ela é o porto seguro da salvação;
é o verdadeiro lugar de refúgio”.6 Com efeito, a oração faz do homem um ser
mais espiritualizado, no qual prevalece a graça de Deus e aquietam-se as
paixões desregradas.
O Salvador ainda nos oferece outro tocante
exemplo nessa cena. Ao retirar-Se para rezar, ensina a não nos limitarmos
unicamente à oração comunitária, como a participação na Eucaristia ou outros
atos litúrgicos. Sem menosprezar a prece coletiva, à qual está ligada a
promessa da sua presença — “onde dois ou três estão reunidos em meu nome, aí
estou eu no meio deles” (Mt 18, 20) —, Ele mostra ser muito benfazejo rezar a
sós, longe das aglomerações.
Ao contar que estava
acompanhado de perto apenas pelos discípulos — pormenor que, no parecer de
Bento XVI, denota o quanto eles “estão incluídos nesse estar só, em seu
reservadíssimo estar com o Pai” —, quis o Evangelista mostrar a relação
entre a oração do Divino Mestre e o elevado tema tratado por Ele a seguir.
Jesus interroga os
discípulos sobre sua Pessoa
18b Então Jesus
perguntou-lhes: “Quem diz o povo que eu sou?” 19 Eles responderam: “Uns dizem
que és João Batista; outros, que és Elias; mas outros acham que és algum dos
antigos profetas que ressuscitou”.
Voltando-se para os Apóstolos, Nosso Senhor os
interroga a respeito do que ouvem dizer sobre Ele. A pergunta possui claramente
uma finalidade didática, dando a entender a antecipação de outra mais
importante. Podemos imaginar Jesus ouvindo com interesse as mais variadas e
calorosas narrações da repercussão de suas obras oferecidas pelos Doze, os
quais, no contato direto com as multidões, puderam recolher todo tipo de
impressões, para oferecer ao Mestre um substancioso relato dos comentários
populares. Sem necessitar de tal testemunho — que já conhecia desde toda a
eternidade —, Ele procedeu desse modo para trazer à tona a opinião geral, antes
de fixar a verdadeira, que de muito a ultrapassava. Ficaria patente aos olhos
dos discípulos, portanto, a insuficiência das afirmações admitidas e a
necessidade de possuírem a seu respeito uma visão perfeita.
Tudo indica haver sido essa conversa mais extensa
do que a sintética narração dos evangelistas, os quais, na afirmação de São
João Crisóstomo, “costumam resumir fatos e palavras, movidos pelo desejo de ser
breves e sucintos”.8 Terão aflorado opiniões diversas, mais ou menos acertadas.
Sintetizando o parecer dos judeus quando faziam um paralelo entre Jesus e as
figuras de João Batista, Elias e Jeremias (cf. Mt 16, 14), 05 Apóstolos
transmitem o que era a voz corrente. Não obstante, Jesus era incomparavelmente
mais: a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, Deus feito Homem, que viera para
operar curas corpóreas, sanar as almas e, mediante o sacrifício cruento do
Calvário, extirpar a chaga do pecado e abrir as portas do Céu. Por fim, chegara
o momento dessa altíssima revelação!
A confissão de Pedro
20 Mas Jesus perguntou: “E vós, quem dizeis que
eu sou?” Pedro respondeu: O Cristo de Deus”. 21 Mas Jesus proibiu-lhes
severamente que contassem isso a alguém.
Depois de ouvir com atenção o que os Apóstolos
tinham a dizer, Nosso Senhor os interroga, por sua vez, sobre essa mesma
questão. Agora importa saber o pensamento deles, já que estão em privilegiadas
condições para emitir um juízo. Não veem Jesus apenas ao longe, nas praças ou
no Templo, mas acompanham-No todos os dias; entregaram-se a seu serviço e são
os depositários de sua máxima confiança. Seria cabível opinarem o mesmo que o
povo, posto que vissem e soubessem muito mais? “Aqui” — dirá São Tomás de
Aquino — “a fé dos discípulos é examinada”.9 Ao formular a pergunta,
separando-os do resto das pessoas — “e vós?” —, deixa o Mestre entrever que
espera de seus seguidores uma resposta diferente, por não corresponderem os
comentários do povo à plena verdade. Por isso, ensina São Cirilo: “Quão
discreto é esse ‘vós’! Distingue-os dos outros para que também fujam de suas
opiniões e assim não tenham uma ideia indigna d’Ele”.10
Sobre a didática empregada por Nosso Senhor ao
incitá-los a um parecer, ensina o Doutor Angélico que Ele atuou dessa forma por
desejar dar-lhes o mérito da fé.’1 Caberia a Pedro, o Apóstolo veemente,
decidido e loquaz, a gloria de ser o primeiro a proclamar que Jesus era o Filho
de Deus encarnado, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade. Sua percepção,
todavia, não poderia ser atribuída à sua mera perspicácia natural, mas sim a
uma graça especial para apreender aquilo que a inteligência não alcançava, por
se tratar de um dos principais mistérios de nossa fé: “Quando Jesus lhes
perguntou qual era o parecer do povo, todos falaram; no momento em que deseja
conhecer a opinião pessoal deles, Pedro se adianta a todos e exclama: ‘Tu és o
Cristo”.12 Tão solene confissão foi ditada por uma elevada inspiração no
interior de Pedro, conforme reconhece o Salvador: “Feliz és, Simão, filho de
Jonas, porque não foi a carne nem o sangue que te revelou isto, mas meu Pai que
está nos céus” (Mt 16, 17). Um magnífico passo rumo à exaltação de Nosso Senhor
está dado partindo de seus mais próximos.
A seguir houve a
instituição do papado, episódio que faz vibrar a alma católica, apesar de
omitido na versão de São Lucas (cf. Mt 16, 18-19). Está dito, no entanto, que
Jesus proibiu severamente transmitir a terceiros o que acabava de ser dito,
impedindo com divina autoridade que extravasasse daquele âmbito uma declaração
de tamanha gravidade. Não é difícil intuir que ali pairava uma graça
favorecendo a entusiasmada aceitação da verdade. Além disso, é natural prever a
explosão de cólera que esse ato de fé causaria, caso chegasse aos ouvidos das
autoridades religiosas de Israel. Havia outro motivo — como analisaremos logo
abaixo — para desaconselhar, por ora, a difusão da verdadeira identidade do
Senhor.
Espera de um falso Messias
Os Apóstolos, como todos
em Israel, aguardavam com sofreguidão o advento do Messias prometido por Deus e
anunciado pelos profetas. Uma santa expectativa norteava a vida de cada judeu,
fazendo convergir para esse personagem mitificado todos os seus anseios de
felicidade. Em si mesmo, tal impulso deve ser tido não somente como legítimo,
mas também como uma reação salutar à paganização da sociedade daquele tempo e
sinal de fidelidade às promessas da Escritura. Caso não procedessem assim,
dariam os hebreus mostras de uma reprovável tibieza. Era Deus que, em sua
admirável Providência, os vinha preparando para a chegada de seu ungido. Haviam
passado mais de quatro séculos da morte de Malaquias, e depois dele nenhum
outro profeta erguera a voz entre os filhos de Abraão. Esse silêncio, acrescido
às vicissitudes históricas que tiveram como palco a Palestina, nesse extenso
período, concorria para compenetrá-los da importância e necessidade de tal
varão.
Entretanto, uma deformação se estabelecera na
mentalidade do povo eleito — e, por conseguinte, na dos Apóstolos — a respeito
da índole da missão desse enviado. O Messias, o Cristo de Deus, não era para
eles senão aquele que viria estabelecer a dominação dos judeus sobre os outros
povos, resolver todos os problemas políticos, sociais e, sobretudo, financeiros
do país; traria ele, antes de mais nada, uma felicidade humana. Ou seja, seria
a súmula de uma espécie de super Moisés, de super Davi e de super Salomão,
personagens que tinham levado a nação israelita a um auge de glória e fizeram
tremer os estrangeiros. Ao lado de tão formidável poderio, pensavam eles, o
Messias também seria um homem justo, cumpridor da Lei e temente a Deus, tal
como os maiores expoentes do judaísmo. Coadunaria uma religiosidade exemplar
com o despotismo dos césares, o respeito à Torá com o desrespeito aos gentios:
numa palavra, seria o imperador da terceira posição. Com esse Messias haveria
alguém que, por fim, traria todos os benefícios e extirparia todos os males de
Israel. Que imensa vitória! Por isso, Nosso Senhor faz aos Apóstolos uma nova
revelação, logo após a declaração de Pedro, para todos inesperada. Primeiro Ele
determina sigilo sobre sua origem, como se dissesse: “Não queirais jamais
ensinar que Eu sou esse Messias que estais pensando. Sim, sou o Messias, mas
não o que vós sentis e pretendeis. O Cristo que havereis de anunciar é o que Eu
mesmo vos revelarei”.13 Depois, para extirpar o erro e educá-los adequadamente,
Jesus, no dizer de Louis Veuillot, “sem lhes deixar formar qualquer ideia
agradável da glória que os esperava, rasgou o véu do porvir, e mostrou-lhes o
Calvário”.14
Sofrimento: a marca do Salvador
22 E acrescentou: “O Filho do Homem deve sofrer
muito, ser rejeitado pelos ancios, pelos sumos sacerdotes e doutores da Lei,
deve ser morto e ressuscitar no terceiro dia”.
“Tanto quanto o céu domina a Terra, tanto é
superior à vossa a minha conduta e meus pensamentos ultrapassam os vossos” (Is
55, 9). Enquanto o povo esperava um Messias terreno, Nosso Senhor vinha
trazendo o resgate da dívida infinita contraída com o Pai pelo pecado, o que
nenhum homem, por mais santo e perfeito que fosse, poderia fazer. Não há termo
de comparação para exprimir a superioridade da Redenção perante o mais
esplendoroso dos impérios humanos, e, portanto, do que o Messias trazia aos
judeus, comparado com o reino material que eles aguardavam.
Não obstante, para o pleno cumprimento de tão
alta missão, era necessária a expiação na Cruz, a imolação do Filho de Deus. E
essa declaração — que contradiz de forma contundente os sonhos de olhos abertos
dos Apóstolos — é feita por Jesus com todo o seu realismo. Santo Ambrósio
reconhece a dificuldade dos Doze em admitir o prenúncio da Paixão e comenta:
“Quiçá porque sabia o Senhor que era difícil acreditar no mistério da Paixão e
Ressurreição, mesmo tratando-se de seus discípulos, quis ser Ele mesmo o
anunciador”.15 Já os vaticínios dos profetas do Antigo Testamento apontavam
para um Messias padecente, fato de que ninguém queria se lembrar. Nosso Senhor,
despertando-os de uma profunda letargia, mostra que seria desprezado pelo poder
vigente, por aqueles sem cuja aprovação — ponderavam os Apóstolos — não se
estabeleceria o reinado messiânico. Ele quebra, desse modo, o apoio psicológico
depositado em homens de falsa sabedoria, indicando serem precisamente estes os que
tramariam a sua morte.
Então Jesus, o Mestre,
seria morto! Sim, “é preciso estabelecer para sempre a verdadeira natureza da
salvação trazida por Cristo; ela é operada pelos seus sofrimentos e pela sua
morte”.16 A impressão produzida foi tão forte que os Apóstolos parecem não
prestar atenção no anúncio da ressurreição ao terceiro dia. Quiçá tenha sido
esse pasmo que os fez omitir novas perguntas sobre como se daria tal
holocausto. Sem embargo, era chegado o momento de conhecerem o plano de Deus ao
enviar o Filho Unigênito, uma vez que o Pai desejava conferir-Lhe toda honra e
toda a glória e eles estavam a poucos meses desse acontecimento pinacular.
“Christianus alter
Christus”
23 Depois Jesus disse a todos: ‘Se alguém me
quer seguir, renuncie a si mesmo, tome sua cruz cada dia, e siga-me. 24 Pois
quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la; e quem perder a sua vida por causa
de mim, esse a salvará”.
Voltando-se para a multidão, que até esse momento
estivera guardando uma respeitosa distância do pequeno grupo, Nosso Senhor
também lhe dirige a palavra. O ensinamento desses versículos nasce do ousado
anúncio de seus padecimentos, e indica que, embora não fosse o momento de falar
publicamente da Paixão, Ele considera oportuno instruir seus seguidores sobre o
verdadeiro discipulado e a adequação dos espíritos à realidade da cruz.
“Se alguém me quer
seguir...”. O convite é explícito, respeitando, contudo, o livre-arbítrio,
sem impor-se a ninguém à força. E preciso que os bons tenham o mérito da
liberdade bem empregada, e sua adesão ao Divino Mestre deve se fundamentar no
enlevo, nunca na coação. As pessoas congregadas ali em grande número não foram
obrigadas a acompanhar Jesus até Cesareia de Filipe. E os Apóstolos também
abandonaram as redes e os labores devido a um livre assentimento pessoal.
Pois bem, para levar à plenitude a adesão a Nosso
Senhor, são indispensáveis novas renúncias, que sempre devem ser feitas por
meio de um generoso sim da parte de cada um. A maior delas, sem lugar a dúvida,
é a que diz respeito a si próprio, e por isso mais custa ao homem. Privado do
dom de integridade, em razão do pecado original, ele vive num desequilibrio que
gera um apreço desmesurado por sua própria pessoa, levando-o, quando não é
santo, a amar-se e a enaltecerse de maneira pecaminosa. Ora, o perfeito amor a
Deus não se atinge por meio da condescendência com essa má inclinação, mas pela
entrega total do próprio ser Aquele que nos criou. A renúncia a si mesmo em
benefício da glória de Deus torna-se uma exigência da fidelidade a Ele.
Abraçar a cruz significa assumir com radicalidade
o cumprimento da vocação específica, recebida desde o Batismo. E fácil aceder
ao chamado divino quando esse convite desponta em nosso interior soprado pelo
vento favorável das consolações. Com o início das dificuldades de cada dia, em meio
à aridez, aos padecimentos físicos ou morais, à perseguição ou aos atractivos
do mundo, faz-se necessário abraçar o ideal e segui-lo por amor, tal como o
exemplo de Nosso Senhor ao carregar a cruz com alegria, apesar de estar imerso
num oceano de amargura. E suas dores foram incomparavelmente maiores do que as
nossas, pois Jesus não nos pede nada que Ele mesmo não tenha padecido antes, em
grau superlativo.
Têm sido extensos os comentários dos teólogos a
respeito da interpretação desse impressionante versículo 24, onde se torna
claro como o valor da vida eterna sobrepuja o da terrena, merecendo, inclusive,
o alto preço do martírio. Entretanto, podemos ressaltar que “ganhar a vida”
significa também ter uma existência pautada pelos Mandamentos, visando como objectivo
a santidade. Em nossa época, na qual os homens pagam qualquer tributo para
trilhar uma carreira brilhante e construir um nome de prestígio, lucraria muito
quem meditasse nessa passagem, pois no afã de se obter um êxito mundano pode-se
rumar para o inferno.
A CRUZ, FONTE DE FELICIDADE
Em suma, o Evangelho deste 12º Domingo do Tempo
Comum nos proporciona elementos para um exame de consciência: qual tem sido
nossa postura perante a cruz com que Nosso Senhor Jesus Cristo passa diante de
nós e nos convida a segui-Lo? Temos grandeza de alma para integrar número de
seus seguidores que têm espírito consequente, ou, mesmo nos deixando maravilhar
pela sublimidade de seu ensinamento, somos iludidos pela atração das coisas
pecaminosas, a exemplo dos filhos das trevas? Seremos contados no número dos
que procuram a terceira posição, harmonizando o bem com o mal, numa união
ilegítima?
A Liturgia de hoje nos
aponta a solução para um dos maiores males do angustiante século em que
vivemos, no qual a humanidade se utiliza de todos os meios tecnológicos, médicos
e sociais para evitar a dor, e padece, como nunca, de angústias inenarráveis. A
primeira vista, parece um mistério o fato de nunca terem existido tantas
possibilidades de bem-estar e, simultaneamente, sermos flagelados por toda
espécie de catástrofes. Isto se deve a que fugimos da cruz por desconhecermos a
imensa felicidade oferecida por eia quando é abraçada com alegria. A medida que
adequamos todo o nosso modo de ser, perspectivas, visualizações, desejos,
pensamento, dinamismo, atividade e tempo em função de Nosso Senhor, somos
invadidos por uma paz interior que a nada pode ser comparada. Descem as bênçãos
do Alto e operam-se as maravilhas da graça. Com razão afirma o Prof. Plinio
Corrêa de Oliveira: “A graça do enlevo pelas coisas celestes, pelas coisas
de Deus, proporciona a uma pessoa coragem para que ela carregue grandes cruzes
como se fossem pequenas. Quer dizer, esse amor latente por Deus, por Nossa
Senhora, pelas grandezas do Céu age com tal profundidade no homem que, por um
ato de consentimento livre, consciente — e ao mesmo tempo subconsciente, o que
parece paradoxal, porém verdadeiro —, ele se deixa transformar. E o amor à Cruz
é o sintoma dessa mudança de mentalidade”.17 Assim, conformados com o
Divino Redentor, estaremos aptos não só a reconhecê-Lo como o verdadeiro
Messias, confessando com São Pedro: “Tu és o Cristo de Deus”, mas diremos
também com o chefe da Igreja, desta vez com um timbre de autenticidade que
somente a cruz é capaz de oferecer: “Senhor, sabes tudo, tu sabes que te amo”
(Jo 21, 17).
1) SÃO LUÍS MARIA GRIGNION DE MONTFORT, apud
ABAD, SJ, Camilo María. Introducción
General, c.VI, n.32. In: Obras de San Luis María Grignion de Montfort. Madrid:
BAC, 1954, p.66.
2) SÃO LUÍS MARTA GRIGNION DE MONTFORT. Carta
circular a los Amigos de la Cruz, n.15. In:
Obras de San Luis María Grignion de Montfort, op. cit., p.236- 237.
3) FILLION, Louis-Claude. Vida de Nuestro Señor
Jesucristo. Vida pública. Madrid:
Rialp, 2000, v.11, p.269.
4 Cf. Lc 3, 21; 5 9, 18; 10, 21; 11, 1; 22,
31-32; 22, 3, 46.
5) SÃO CIRILO DE ALEXANDRIA, apud SÃO TOMÁS DE
AQUINO. Catena Aurea. In Lucam, c.IX, v.18-22.
6) CORNELIO A LÁPIDE. Lib. I de Orat., apud
BARBIER, SJ, Jean-André (Org.). Les
trésors de Cornelius a Lapide. 6.ed. Paris: Ch. Poussielgue, 1876, v.I’vÇ p.147.
7) BENTO XVI. Jesús de Nazaret. Desde el Bautismo
a la Transfiguración. Bogotá: Planeta, 2007, p.341.
8) SÃO JOÃO CRISÓSTOMO. Homilía XIX, nl. In: Homilías sobre el Evangelio de San
Juan (1-29). 2.ed. Madrid: Ciudad Nueva, 2001, p.241.
9) SÃO TOMÁS DE AQUINO. Super Matthæum. C.16, lect.2.
10) SAO CIRILO DE ALEXANDRIA. Comentario al
Evangelio de Lucas, 9, 18,apud ODEN, Thomas C.; JUST, Arthur A. La Biblia
comentada por los Padres de la Iglesia.Evangelio según San Lucas. Madrid:
Ciudad Nueva, 2006, vIII, p.224.
11) Cf. SAO TOMAS DE AQUINO, Super Matthæum, op.
cit.
12) FILLION, op.
cit., p.272.
13) BENETTI,
Santos. Caminando por el desierto.
Ciclo C. Madrid: Paulinas, 1985,p.70.
14) VEUILLOT, Louis. Vida de Jesus. São Paulo:
Jornal dos livros, [s.d.], v.11, p.131.
15) SANTO ANIBRÓSIO. Tratado sobre el Evangelio
de San Lucas. LVI, n.100. In: Obras. Madrid: BAC, 1966, v.1, p.338.
16) LAGRANGE, OP,
Marie-Joseph. Évangile selon Saint Luc. 4.ed. Paris: J. Gabalda, 1927, p.266.
17) CORREA DE OLIVEIRA, Plinio. A “Carta Circular
aos amigos da Cruz” — I. Enlevo e holocausto. In: Dr Plinio. São Paulo. Ano X.
N.112 (Jul., 2007); p.12.
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