Comentários à Liturgia do 2º Domingo da Quaresma Evangelho Lc 9, 28b-36 - Ano C - 2013
Naquele
tempo, 28b Jesus levou consigo Pedro, João e Tiago, e subiu à montanha para
rezar. 29 Enquanto rezava, seu rosto mudou de aparência e sua roupa ficou muito
branca e brilhante.
30 Eis
que dois homens estavam conversando com Jesus: eram Moisés e Elias. Eles
apareceram revestidos de glória e conversavam sobre a morte que Jesus iria
sofrer em Jerusalém.
32 Pedro
e os companheiros estavam com muito sono. Ao despertarem, viram a glória de
Jesus e os dois homens que estavam com ele.
33 E
quando estes homens se iam afastando, Pedro disse a Jesus: “Mestre, é bom
estarmos aqui. Vamos fazer três tendas: uma para Ti, outra para Moisés e outra
para Elias”. Pedro não sabia o que estava dizendo. 34 Ele estava ainda falando, quando apareceu uma
nuvem que os cobriu com sua sombra. Os discípulos ficaram com medo ao
encontrarem dentro da nuvem. 35 Da nuvem,
porém, saiu uma voz que dizia: “Este é o meu Filho, o Escolhido. Escutai o que
Ele diz!”
36
Enquanto a voz ressoava, Jesus encontrou-Se sozinho. Os discípulos ficaram
calados e naqueles dias não contaram a ninguém nada do que tinham visto (Lc 9,
28b-36).
Luta e glória nos são oferecidas por Deus
A vida do homem transcorre num vale de
lágrimas, no qual o sofrimento sempre está presente. Para nos sustentar em meio
à luta, Deus nos aponta, através de graças sensíveis, o grandioso fim ao qual
estamos destinados.
Somos chamados “ad maiora”
Ao formar o homem à sua imagem e semelhança
(cf. Gn 1, 26), Deus destinou-o a ocupar um elevado lugar na criação, inferior
apenas ao dos Anjos. O ser humano, como única criatura dotada de inteligência
em todo o universo material, possui uma notável superioridade sobre as outras,
além da capacidade de dominá-las, transformá-las e utilizar-se delas com
sabedoria, tornando mais perfeita a obra do Criador. É ele o protagonista da
História, conforme ressalta a Escritura: “Vosso saber o ser humano modelou,
para ser rei da criação, que é vossa obra” (Sb 9, 2). Além dessa prerrogativa
de ordem natural, há outro privilégio que lhe confere a mais excelsa dignidade:
a filiação divina, concedida pelo Batismo. Com efeito, ao receber este
Sacramento, a pessoa torna-se filha adotiva de Deus, participante da natureza
divina, membro de Cristo e coerdeira com Ele e templo da Santíssima Trindade.
Devido ao pecado original e ao estado de
prova em que nos encontramos, esses benefícios da natureza e da graça preparam-nos
para as horas em que nos cabe dar mostras de fidelidade a Deus, de modo
especial quando se abatem sobre nós as tentações, os dramas e as dificuldades.
Se alimentarmos um desejo equivocado — quiçá, subconsciente — de fazer com que a
glória terrena ou os gozos espirituais sensíveis se tornem uma constante em
nossa existência, admitiremos o princípio de que a vida perfeita é a da
estabilidade na consolação, sem a menor fímbria de sofrimento. Por seu divino
exemplo, Nosso Senhor Jesus Cristo ensinou como o caminho para a felicidade
difere daquele que conceberíamos com base em critérios humanos. Na verdade, só
encontramos a perfeita alegria quando abraçamos a santidade, o que implica em
transpor a porta estreita e carregar a cruz, por meio da qual se chega à luz.
A esse propósito, é legítimo perguntarmos:
como se explica que na luta e no enfrentamento de toda espécie de empecilhos,
em favor da glória de Deus, encontremos o sentido de nossa vida? Ou será possível
experimentar neste mundo uma situação de fruição completa, tal como pedem as
nossas inclinações? A resposta nos é oferecida pela Liturgia do 2º Domingo da Quaresma no conjunto de suas leituras,
numa harmonia que se sintetiza em rumar para a bem-aventurança eterna passando pelas
provações, pelo combate espiritual e pela dor.
A promessa de um
grandioso futuro
Na primeira leitura é relatado o momento
histórico em que Deus sela com Abraão uma aliança, na qual lhe faz grandes
promessas. Tendo caído a noite nas longínquas paragens de Canaã, onde armara
sua tenda, o patriarca já se havia recolhido quando o Senhor o chamou para fora
a fim de contemplar o firmamento. Este, límpido, assemelhava-se a um manto
iluminado por uma infinitude de astros reluzentes (cf. Gn 15, 5-12.17-18). Tudo
nos leva a crer que ali se podia observar um cenário feérico, configurado pelo
Divino Artífice com vistas a emoldurar uma das mais belas comunicações da
história da salvação. Era o momento em que Deus reconhecia a retidão de Abraão
e o considerava digno de acolher seu plano salvífico, para receber a fé que
seria transmitida a toda a humanidade. Num diálogo cheio de poesia, Ele
prometeu àquele varão avançado em anos o que as possibilidades humanas lhe
haviam negado: descendência, terra e bênção.
Embora Abraão houvesse conservado, ao longo
das décadas, o desejo de possuir herdeiros e pôr um fim às incertezas da vida
errante, foi somente após uma longa espera que Deus determinou o cumprimento desses
anseios com uma superabundância acima de qualquer expectativa. O patriarca,
apesar de todas as aparências contrárias, aceitou e creu na promessa — “Levanta
os olhos para os céus e conta as estrelas, se és capaz... Pois bem, assim será
a tua descendência” (Gn 15, 5) —, e recebeu, por esse ato, uma recompensa muito
maior do que esperava e podia conceber. “Deus, em seu modo de prometer, na
certeza que possui de jamais decepcionar, revela sua grandeza única: ‘Deus não
é homem para mentir, nem filho de Adão para Se retratar’ (Nm 23, 19). Para Ele,
prometer já é dar, mas em primeiro lugar é dar a fé capaz de esperar que venha
o dom; e é tornar, mediante esta graça, quem recebe capaz da ação de graças
(cf. Rm 2, 20) e de reconhecer, no dom, o coração do doador”.1
Às almas eleitas, Deus
pede oferecimentos
A partir daquela noite a conduta de Deus
para com Abraão distinguiu-se por uma nova característica: ao sustentá-lo com a
promessa, passou a pedir dele constantes provas de reciprocidade e entrega, com
a intenção de experimentá-lo e de modelar sua existência em função da aliança:
“Anda em minha presença e sê íntegro” (Gn 17, 1). Em um perplexitante paradoxo,
transcorreriam ainda longos anos até o nascimento de Isaac (cf. Gn 21, 5), e só
na quarta geração os descendentes de Abraão voltariam a ocupar a Terra Prometida
(cf. Gn 15, 16). Contudo, mesmo caminhando nessa aparente contradição, até se
tornar um homem centenário, ele creu firmemente que a promessa de Deus era
ainda mais verdadeira que a própria obtenção dos frutos esperados: “não
vacilou, não desconfiou, mas conservou-se forte na fé e deu glória a Deus” (Rm
4, 20). Era indispensável tal adesão de fundo de alma para que o povo eleito
tivesse em suas origens um ato de fé tão excelente que o tornasse digno, na pessoa
de seu patriarca, da predestinação que lhe estava reservada.
A circunstância que marcou o auge do
período de prova de Abraão foi o holocausto de Isaac, pois a fé amadurecida deve
ser “purificada pela prova do sacrifício”.2 Entretanto, outros oferecimentos o
precederam, tendo sido um deles realizado logo no dia seguinte à cena acima
recordada. Respeitando os costumes daqueles tempos, Deus determinou que Abraão
fizesse a oblação de diversos animais cortados ao meio, com as metades postas
umas defronte às outras. O versículo 11 denota um importante aspecto dessa
passagem e mesmo do conjunto de leituras litúrgicas de hoje: “Aves de rapina se
precipitaram sobre os cadáveres, mas Abraão as enxotou” (Gn 15, 11). A presença
de animais ávidos por arrebatar as oferendas simboliza as lutas exigidas pela
fidelidade à aliança. Para quem abraça o caminho da justiça, logo surge o inimigo
infernal semeando tentações e obstáculos, sendo necessário combatê-lo para que
não roube o mérito de nossas boas obras. A luta veio a ser uma constante na trajetória
do povo de Israel, um elemento essencial dos episódios da História Sagrada, onde
não existe vitória que não seja obtida senão pela peleja. Deus agradou-Se com a
firmeza de Abraão, pois fez passar pelo meio das vítimas uma chama e uma tocha
— símbolos, no Antigo Testamento, da sua presença —, em sinal de aceitação da oferta. Esse combate,
como veremos, se estende também ao Novo Testamento e pede dos cristãos uma
vigilância que “deve exercitar-se dia após dia na luta contra o maligno; exige
do discípulo oração e sobriedade contínua”.4
O combate do Apóstolo
contra os falsos conversos
A segunda leitura (cf. Fl 3, 17-21; 4, 1)
recolhe um importante trecho da epístola de São Paulo aos filipenses, em cuja
comunidade alguns judeus, havia pouco convertidos, ainda se mantinham
vinculados às tradições e concepções próprias ao culto antigo, propagando
doutrinas erradas com o objetivo de fazer o que bem podemos qualificar de
pseudoapostolado antipaulino. Enquanto São Paulo pregava o Redentor, a Boa-nova,
os Sacramentos e as maravilhas da graça, os judaizantes queriam, a todo custo,
fazer prevalecer os costumes mosaicos: “Eles se ocupam em exercitar sua
inimizade contra a Cruz de Cristo, afirmando que ninguém pode salvar-se a não
ser por meio das observâncias legais, e com isso reduzem a nada o poder ‘da
Cruz de Cristo”.5 Um dos motivos que levou o Apóstolo a redigir essa carta foi a
necessidade de alertar contra tal corrente nefanda, intenção bastante
perceptível nos versículos hoje considerados: “Sede meus imitadores, irmãos, e
observai os que vivem de acordo com o exemplo que nós damos. Já vos disse
muitas vezes, e agora o repito, chorando: há muitos por aí que se comportam
como inimigos da Cruz de Cristo. O fim deles é a perdição, o deus deles é o
estômago, a glória deles está no que é vergonhoso e só pensam nas coisas
terrenas” (Fi 3, 17-19).
Diante dos nocivos ensinamentos dos
judaizantes, São Paulo não hesita em colocar-se como exemplo para aqueles que ele
conduzira ao Salvador, recriminando-os, com autoridade, pelo fato de seguirem
outros que não foram chamados a ser modelo na prática da Fé. Suas palavras
denotam o sofrimento e a indignação causados pela controvérsia, a ponto de lhe
correrem lágrimas pela face enquanto escrevia. A reação é compreensível em
alguém de temperamento tão fogoso, impedido pelas circunstâncias de agir
pessoalmente com a eficácia desejada, e que percebe o quanto a astúcia dos maus
punha em risco a perseverança dos bons.
Por isso, ele também não vacila em
denunciar os hipócritas que, por apreço a tradições antigas, insistiam no mero
culto exterior já extinto, enquanto menosprezavam a vida da graça. É importante
ressaltar que São Paulo, ao apontar para a divinização do estômago por eles
propugnada, não se refere ao vício da gula, mas sim ao apego que tinham à Lei
mosaica e aos costumes farisaicos a esse respeito. Afirma que o deus deles é o
ventre porque a prática religiosa desses judaizantes resumia-se no controle de
tudo quanto pudesse ser ingerido e sua glória naquilo que é vergonhoso, por
concederem a primazia à circuncisão, outrora sinal precursor da fé na Paixão de
Cristo e já então uma prescrição abolida. Ao praticar com exagerado rigorismo
tais costumes, sentiam-se desobrigados de purificar o seu interior, no entanto
tão corrompido. A linguagem utilizada por São Paulo é extremamente ousada, pois
afronta os que se vangloriavam de seus odres velhos, a ponto de fazê-los rasgar
as vestes e de se tornar, para eles, merecedor de um ódio de morte.
A esperança da vida
eterna
Continua no próximo post
1) RAMLOT, OP,
Marie-Léon; GUILLET, SJ, Jacques. Promesas. In: LÉON-DUFOUR, SJ, Xavier (Org.).
Vocabulario
de teología bíblica. Barcelona: Herder, 1996, p.731.
2) CCE 1819.
3) Cf. COLUNGA, OP, Alberto; GARCÍA CORDERO, OP,
Maximiliano. Biblia Comentada. Pentateuco. Madrid: BAC, 1960, v.1, p.192.
4) MOLLAT, SJ, Donatien. Velar. In: LEON-DUFOUR,
op. cit., p.925.
5)
SAO TOMAS DE
AQUINO. Epistolam Sancti PauliApostoli ad Philippenses expositio. C.III,
lect.3.
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