Tríduo Pascal

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Evangelho 2º Domingo da Quaresma Lc 9, 28b-36 - Ano C - 2013


Comentários à Liturgia do  2º Domingo da Quaresma Evangelho Lc 9, 28b-36 - Ano C - 2013

Naquele tempo, 28b Jesus levou consigo Pedro, João e Tiago, e subiu à montanha para rezar. 29 Enquanto rezava, seu rosto mudou de aparência e sua roupa ficou muito branca e brilhante.
30 Eis que dois homens estavam conversando com Jesus: eram Moisés e Elias. Eles apareceram revestidos de glória e conversavam sobre a morte que Jesus iria sofrer em Jerusalém.
32 Pedro e os companheiros estavam com muito sono. Ao despertarem, viram a glória de Jesus e os dois homens que estavam com ele.
33 E quando estes homens se iam afastando, Pedro disse a Jesus: “Mestre, é bom estarmos aqui. Vamos fazer três tendas: uma para Ti, outra para Moisés e outra para Elias”. Pedro não sabia o que estava dizendo. 34 Ele estava ainda falando, quando apareceu uma nuvem que os cobriu com sua sombra. Os discípulos ficaram com medo ao encontrarem dentro da nuvem.  35 Da nuvem, porém, saiu uma voz que dizia: “Este é o meu Filho, o Escolhido. Escutai o que Ele diz!”
36 Enquanto a voz ressoava, Jesus encontrou-Se sozinho. Os discípulos ficaram calados e naqueles dias não contaram a ninguém nada do que tinham visto (Lc 9, 28b-36).

Luta e glória nos são oferecidas por Deus

A vida do homem transcorre num vale de lágrimas, no qual o sofrimento sempre está presente. Para nos sustentar em meio à luta, Deus nos aponta, através de graças sensíveis, o grandioso fim ao qual estamos destinados.

Somos chamados “ad maiora

Ao formar o homem à sua imagem e semelhança (cf. Gn 1, 26), Deus destinou-o a ocupar um elevado lugar na criação, inferior apenas ao dos Anjos. O ser humano, como única criatura dotada de inteligência em todo o universo material, possui uma notável superioridade sobre as outras, além da capacidade de dominá-las, transformá-las e utilizar-se delas com sabedoria, tornando mais perfeita a obra do Criador. É ele o protagonista da História, conforme ressalta a Escritura: “Vosso saber o ser humano modelou, para ser rei da criação, que é vossa obra” (Sb 9, 2). Além dessa prerrogativa de ordem natural, há outro privilégio que lhe confere a mais excelsa dignidade: a filiação divina, concedida pelo Batismo. Com efeito, ao receber este Sacramento, a pessoa torna-se filha adotiva de Deus, participante da natureza divina, membro de Cristo e coerdeira com Ele e templo da Santíssima Trindade.

Devido ao pecado original e ao estado de prova em que nos encontramos, esses benefícios da natureza e da graça preparam-nos para as horas em que nos cabe dar mostras de fidelidade a Deus, de modo especial quando se abatem sobre nós as tentações, os dramas e as dificuldades. Se alimentarmos um desejo equivocado — quiçá, subconsciente — de fazer com que a glória terrena ou os gozos espirituais sensíveis se tornem uma constante em nossa existência, admitiremos o princípio de que a vida perfeita é a da estabilidade na consolação, sem a menor fímbria de sofrimento. Por seu divino exemplo, Nosso Senhor Jesus Cristo ensinou como o caminho para a felicidade difere daquele que conceberíamos com base em critérios humanos. Na verdade, só encontramos a perfeita alegria quando abraçamos a santidade, o que implica em transpor a porta estreita e carregar a cruz, por meio da qual se chega à luz.

A esse propósito, é legítimo perguntarmos: como se explica que na luta e no enfrentamento de toda espécie de empecilhos, em favor da glória de Deus, encontremos o sentido de nossa vida? Ou será possível experimentar neste mundo uma situação de fruição completa, tal como pedem as nossas inclinações? A resposta nos é oferecida pela Liturgia do 2º Domingo da Quaresma no conjunto de suas leituras, numa harmonia que se sintetiza em rumar para a bem-aventurança eterna passando pelas provações, pelo combate espiritual e pela dor.

A promessa de um grandioso futuro

Na primeira leitura é relatado o momento histórico em que Deus sela com Abraão uma aliança, na qual lhe faz grandes promessas. Tendo caído a noite nas longínquas paragens de Canaã, onde armara sua tenda, o patriarca já se havia recolhido quando o Senhor o chamou para fora a fim de contemplar o firmamento. Este, límpido, assemelhava-se a um manto iluminado por uma infinitude de astros reluzentes (cf. Gn 15, 5-12.17-18). Tudo nos leva a crer que ali se podia observar um cenário feérico, configurado pelo Divino Artífice com vistas a emoldurar uma das mais belas comunicações da história da salvação. Era o momento em que Deus reconhecia a retidão de Abraão e o considerava digno de acolher seu plano salvífico, para receber a fé que seria transmitida a toda a humanidade. Num diálogo cheio de poesia, Ele prometeu àquele varão avançado em anos o que as possibilidades humanas lhe haviam negado: descendência, terra e bênção.

Embora Abraão houvesse conservado, ao longo das décadas, o desejo de possuir herdeiros e pôr um fim às incertezas da vida errante, foi somente após uma longa espera que Deus determinou o cumprimento desses anseios com uma superabundância acima de qualquer expectativa. O patriarca, apesar de todas as aparências contrárias, aceitou e creu na promessa — “Levanta os olhos para os céus e conta as estrelas, se és capaz... Pois bem, assim será a tua descendência” (Gn 15, 5) —, e recebeu, por esse ato, uma recompensa muito maior do que esperava e podia conceber. “Deus, em seu modo de prometer, na certeza que possui de jamais decepcionar, revela sua grandeza única: ‘Deus não é homem para mentir, nem filho de Adão para Se retratar’ (Nm 23, 19). Para Ele, prometer já é dar, mas em primeiro lugar é dar a fé capaz de esperar que venha o dom; e é tornar, mediante esta graça, quem recebe capaz da ação de graças (cf. Rm 2, 20) e de reconhecer, no dom, o coração do doador”.1

Às almas eleitas, Deus pede oferecimentos

A partir daquela noite a conduta de Deus para com Abraão distinguiu-se por uma nova característica: ao sustentá-lo com a promessa, passou a pedir dele constantes provas de reciprocidade e entrega, com a intenção de experimentá-lo e de modelar sua existência em função da aliança: “Anda em minha presença e sê íntegro” (Gn 17, 1). Em um perplexitante paradoxo, transcorreriam ainda longos anos até o nascimento de Isaac (cf. Gn 21, 5), e só na quarta geração os descendentes de Abraão voltariam a ocupar a Terra Prometida (cf. Gn 15, 16). Contudo, mesmo caminhando nessa aparente contradição, até se tornar um homem centenário, ele creu firmemente que a promessa de Deus era ainda mais verdadeira que a própria obtenção dos frutos esperados: “não vacilou, não desconfiou, mas conservou-se forte na fé e deu glória a Deus” (Rm 4, 20). Era indispensável tal adesão de fundo de alma para que o povo eleito tivesse em suas origens um ato de fé tão excelente que o tornasse digno, na pessoa de seu patriarca, da predestinação que lhe estava reservada.

A circunstância que marcou o auge do período de prova de Abraão foi o holocausto de Isaac, pois a fé amadurecida deve ser “purificada pela prova do sacrifício”.2 Entretanto, outros oferecimentos o precederam, tendo sido um deles realizado logo no dia seguinte à cena acima recordada. Respeitando os costumes daqueles tempos, Deus determinou que Abraão fizesse a oblação de diversos animais cortados ao meio, com as metades postas umas defronte às outras. O versículo 11 denota um importante aspecto dessa passagem e mesmo do conjunto de leituras litúrgicas de hoje: “Aves de rapina se precipitaram sobre os cadáveres, mas Abraão as enxotou” (Gn 15, 11). A presença de animais ávidos por arrebatar as oferendas simboliza as lutas exigidas pela fidelidade à aliança. Para quem abraça o caminho da justiça, logo surge o inimigo infernal semeando tentações e obstáculos, sendo necessário combatê-lo para que não roube o mérito de nossas boas obras. A luta veio a ser uma constante na trajetória do povo de Israel, um elemento essencial dos episódios da História Sagrada, onde não existe vitória que não seja obtida senão pela peleja. Deus agradou-Se com a firmeza de Abraão, pois fez passar pelo meio das vítimas uma chama e uma tocha — símbolos, no Antigo Testamento, da sua presença  —, em sinal de aceitação da oferta. Esse combate, como veremos, se estende também ao Novo Testamento e pede dos cristãos uma vigilância que “deve exercitar-se dia após dia na luta contra o maligno; exige do discípulo oração e sobriedade contínua”.4

O combate do Apóstolo contra os falsos conversos

A segunda leitura (cf. Fl 3, 17-21; 4, 1) recolhe um importante trecho da epístola de São Paulo aos filipenses, em cuja comunidade alguns judeus, havia pouco convertidos, ainda se mantinham vinculados às tradições e concepções próprias ao culto antigo, propagando doutrinas erradas com o objetivo de fazer o que bem podemos qualificar de pseudoapostolado antipaulino. Enquanto São Paulo pregava o Redentor, a Boa-nova, os Sacramentos e as maravilhas da graça, os judaizantes queriam, a todo custo, fazer prevalecer os costumes mosaicos: “Eles se ocupam em exercitar sua inimizade contra a Cruz de Cristo, afirmando que ninguém pode salvar-se a não ser por meio das observâncias legais, e com isso reduzem a nada o poder ‘da Cruz de Cristo”.5 Um dos motivos que levou o Apóstolo a redigir essa carta foi a necessidade de alertar contra tal corrente nefanda, intenção bastante perceptível nos versículos hoje considerados: “Sede meus imitadores, irmãos, e observai os que vivem de acordo com o exemplo que nós damos. Já vos disse muitas vezes, e agora o repito, chorando: há muitos por aí que se comportam como inimigos da Cruz de Cristo. O fim deles é a perdição, o deus deles é o estômago, a glória deles está no que é vergonhoso e só pensam nas coisas terrenas” (Fi 3, 17-19).

Diante dos nocivos ensinamentos dos judaizantes, São Paulo não hesita em colocar-se como exemplo para aqueles que ele conduzira ao Salvador, recriminando-os, com autoridade, pelo fato de seguirem outros que não foram chamados a ser modelo na prática da Fé. Suas palavras denotam o sofrimento e a indignação causados pela controvérsia, a ponto de lhe correrem lágrimas pela face enquanto escrevia. A reação é compreensível em alguém de temperamento tão fogoso, impedido pelas circunstâncias de agir pessoalmente com a eficácia desejada, e que percebe o quanto a astúcia dos maus punha em risco a perseverança dos bons.

Por isso, ele também não vacila em denunciar os hipócritas que, por apreço a tradições antigas, insistiam no mero culto exterior já extinto, enquanto menosprezavam a vida da graça. É importante ressaltar que São Paulo, ao apontar para a divinização do estômago por eles propugnada, não se refere ao vício da gula, mas sim ao apego que tinham à Lei mosaica e aos costumes farisaicos a esse respeito. Afirma que o deus deles é o ventre porque a prática religiosa desses judaizantes resumia-se no controle de tudo quanto pudesse ser ingerido e sua glória naquilo que é vergonhoso, por concederem a primazia à circuncisão, outrora sinal precursor da fé na Paixão de Cristo e já então uma prescrição abolida. Ao praticar com exagerado rigorismo tais costumes, sentiam-se desobrigados de purificar o seu interior, no entanto tão corrompido. A linguagem utilizada por São Paulo é extremamente ousada, pois afronta os que se vangloriavam de seus odres velhos, a ponto de fazê-los rasgar as vestes e de se tornar, para eles, merecedor de um ódio de morte.

A esperança da vida eterna

Continua no próximo post



1)       RAMLOT, OP, Marie-Léon; GUILLET, SJ, Jacques. Promesas. In: LÉON-DUFOUR, SJ, Xavier (Org.). Vocabulario de teología bíblica. Barcelona: Herder, 1996, p.731.
2)       CCE 1819.
3)        Cf. COLUNGA, OP, Alberto; GARCÍA CORDERO, OP, Maximiliano. Biblia Comentada. Pentateuco. Madrid: BAC, 1960, v.1, p.192.
4)        MOLLAT, SJ, Donatien. Velar. In: LEON-DUFOUR, op. cit., p.925.
5)        SAO TOMAS DE AQUINO. Epistolam Sancti PauliApostoli ad Philippenses expositio. C.III, lect.3.

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