Continuação dos comentários ao Evangelho 2º Domingo da Quaresma Lc 9, 28b-36 - Ano C - 2013
A esperança da vida eterna
“Nós, porém, somos cidadãos do Céu. De lá aguardamos o nosso
Salvador, o Senhor Jesus Cristo. Ele transformará o nosso corpo humilhado e o
tornará semelhante ao seu Corpo glorioso, com o poder que tem de sujeitar a Si todas
as coisas” (Fl 3, 20-21). Após invectivar desvios disseminados com tanta
astúcia, denunciando a malícia dos falsos conversos, São Paulo oferece uma
verdadeira síntese da Liturgia de hoje ao relembrar o chamado dos batizados a
serem cidadãos do Céu. Eis aqui uma realização insuperável — e quiçá nem sequer
concebida pelo próprio Abraão — da promessa feita por Deus: descendência
numerosa, terra e bênção. Tais bens são efêmeros se comparados à eterna
bem-aventurança e ao corpo glorioso que, deixando para trás as contingências da
nossa natureza mortal, assumirá as características da glória. O Apóstolo
empenha-se em elevar as vistas daquela comunidade para a recompensa que a
aguarda, certo de que, ao fixá-la na esperança de bens maiores, criaria
condições para que não se contaminasse com a influência dos perversos.
Com tal intuito deixa ele consignada a doutrina dos corpos
gloriosos, matéria amplamente tratada em seus escritos. Fala de nosso corpo
humilhado pelos efeitos do pecado original e aponta para a transformação a que
será submetido quando, ao ressuscitar, for reunido à alma que estiver na visão
beatífica, tendo adquirido a plenitude da liberdade e a impossibilidade de pecar
e tornando-se isenta das inclinações para o mal. Com efeito, esse estado de
máxima perfeição espiritual está na origem da sublimação do nosso ser material,
como ensina São Tomás:
“Segundo a relação natural que há entre a alma e o corpo, da
glória da alma redunda a glória sobre o corpo”.6 Ao divinizar-se, a alma não se adapta mais a um corpo
padecente, por ter atingido o termo final da vida da graça: a glória.
O início da vida sobrenatural nos é dado pela fé, a qual nos
leva a crer naquilo que não vemos, e pela esperança, que nos leva a desejar
aquilo que ainda não possuímos, mas um dia receberemos. Ora, a glória é a
realização do objeto da fé e a obtenção do objeto da esperança, conforme
recorda o padre Garrigou-Lagrange: “Se o próprio Deus, que é o Bem infinito, Se
manifestasse a nós, imediata e claramente face a face, não poderíamos não
amá-Lo. Ele preencheria inteiramente nossa capacidade afetiva, a qual seria
atraída por Ele de modo irresistível. Ela não conservaria nenhuma energia que
se subtraísse à sua atração; não poderia encontrar nenhum motivo para
desviar-se d’Ele ou até mesmo para suspender seu ato de amor. E a razão pela
qual quem vê a Deus face a face não pode mais pecar. [...1 Só Deus, visto face
a face, pode cativar invencivelmente nossa vontade” .
Nessa situação o corpo se torna glorioso por acompanhar a
alma, pois não pode ficar aquém de sua felicidade, além de assumir as quatro
características enunciadas pelo Doutor Angélico: claridade, impassibilidade, agilidade
e sutileza.8 A primeira delas
reflete no corpo a luz da visão beatífica, tornando-o fulgurante em virtude da
claridade da qual goza o espírito. A impassibilidade diz respeito à imortalidade
e à isenção de qualquer dor, pois o corpo torna-se objeto apenas de bem-estar,
como fruto de sua perfeita submissão à alma: “Deus tirará toda lágrima de seus
olhos; não haverá mais morte, nem luto, nem gemidos, nem dor” (Ap 21, 4). Por
fim, a agilidade e a sutileza confirmam a supremacia do espírito sobre a matéria,
uma vez que os corpos dos Santos não estarão mais sujeitos às presentes
contingências ou aos efeitos físicos impostos pelos outros corpos. Poderão
mover-se com máxima rapidez e transpor os obstáculos com toda facilidade.9
Afirma Santo Agostinho que “a natureza, ferida pelo pecado,
gera os cidadãos da cidade terrena, e a graça, que liberta do pecado, gera os
cidadãos da cidade celestial”.1° A segunda leitura, de igual maneira, confirma
a indispensabilidade da graça na obtenção da vida eterna e centra-se — como
também a primeira — na necessidade de termos os olhos postos no Céu, com uma
inteira confiança na realização das promessas feitas por Deus. Ambas as passagens
constituem um adequado preâmbulo para a mensagem do Evangelho, cuja insuperável
grandeza passaremos a considerar.
Promessa, fé e luta
Ao longo de todo o período da vida pública de Nosso Senhor
transcorrido até o episódio narrado neste Evangelho, os Apóstolos estavam acostumados
a vê-Lo realizar os mais estrondosos milagres. Tais prodígios atestavam, de forma
clara, a divindade de Cristo,11 e sua onipotência seria manifestada ainda com
maior esplendor na instituição da Eucaristia. Ao mesmo tempo, Ele acabava de
revelar sua próxima Paixão, que traria uma terrível prova: depois de comungarem
pela primeira vez, os Apóstolos O veriam preso, julgado, flagelado, coroado de
espinhos, carregando a Cruz às costas e crucificado. Como seria possível aos
mais próximos seguidores do Divino Mestre que, presenciando esses padecimentos,
continuassem a crer na ressurreição ao terceiro dia? Que faria Ele, em sua infinita
sabedoria, para manter acesa a fé dos Doze em meio à tormenta que já se
delineava no horizonte?
Continua no proximo post.
1)
6) SÃO TOMÁS DE
AQUINO. Suma Teológica. III, q.14, al, ad 2.
2)
7)
GARRIGOU-LAGRANGE, OP. Réginald. L’Etemelle vie et la profondeur de l’âme.
Paris: Desclée de Brouwer, 1953, p.25.
3)
8) Cf. SAO TOMAS
DE AQUINO. In Symbolum Apostoloruni. Art.11.
4)
9) Cf.
GARRIGOU-LAGRANGE, op. cit., p.332-333.
5) 10) SANTO AGOSTINHO. De Civitate Dei. L.XV, c.2. In: Obras. Madrid:
BAC, 1958, v.XVI-XVII, p.998.
6)
11) Cf. SÃO TOMAS
DE AQUINO. Suma Teológica. III, q.43, a.4.
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