Tríduo Pascal

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Evangelho XXXII Domingo do Tempo Comum – Ano C – 2013 - Lc 20, 27-38

Continuação dos comentários ao Evangelho 32º Domingo do Tempo Comum – Ano C – 2013 - Lc 20, 27-38

 A cilada dos Saduceus
Essa é a maravilhosa realidade — revelada por Cristo Jesus e explicitada pela Igreja infalível — que nossa fé católica nos faz aguardar com fortalecida esperança. Mas, na Antiguidade nem de longe essa doutrina era assim conhecida. Sobretudo era ignorada entre os pagãos e mais especialmente em meio a certas correntes filosóficas da Grécia. Não é difícil compreender a razão pela qual se tinha criado obstáculos contra a possibilidade de haver ressurreição.
Antes de tudo devemos considerar a constatação histórica, no dia-adia, sobre os mortos: quais deles retornam à vida? Porém, indo mais ao fundo do problema, encontramos a luta que se estabelece no interior de todo homem entre suas más inclinações e sua consciência. Sendo a criatura humana um monolito de lógica, se admite ela a ressurreição dos corpos como um prêmio ou castigo eternos em proporção aos méritos ou culpas, ver-se-á na obrigação de cumprir as leis morais contra sua própria concupiscência. Sem a graça de Deus, essa batalha sempre termina mal. Ora, foi bem exatamente esse o resultado obtido pelos povos da Antiguidade, chegando alguns filósofos a defender a tese da materialidade da alma e de sua morte concomitante à do corpo.
Origem do partido dos saduceus
Sob o império de Alexandre Magno (356 – 323 a.C.) houve um enorme empenho na helenização e colonização do território pertencente aos hebreus. Do povo eleito, a classe mais abastada foi a mais atingida pela influência estrangeira e, aos poucos, transformou-se numa espécie de aristocracia sacerdotal, dando origem ao partido dos saduceus.
Cumpridores exatos das formalidades da Lei, os membros desse partido eram, na realidade, incrédulos e relativistas em matéria moral. Reduziam ao mínimo as exigências dogmáticas e não receavam professar erros crassos hauridos do mundo pagão, como por exemplo chegavam a se opor à existência dos anjos e, pior ainda, não aceitavam a própria existência das almas separadas dos corpos. Negavam inclusive a providência de Deus, como também Sua ação sobre os acontecimentos. Eram ateus-práticos e apesar de se revestirem dos cerimoniais do culto da religião judaica, não passavam de semipagãos. Não é difícil concebê-lo pois, ainda nos dias de hoje esbarramos não poucas vezes com pessoas dessa mentalidade e submersas nas mesmas convicções.
Apesar do número dos saduceus ser proporcionalmente muito reduzido, a péssima influência por eles exercida sobre o povo, era bem considerável, devido à sua situação social. Seu nome tem origem na palavra hebraica ṣadiq (‫ ,)צדיק‬ou seja, justo. Talvez por arrogância própria, eles mesmos escolheram esse nome, ou por debique lhes foi conferido por outros.
Os saduceus constituíam uma forte corrente, em oposição os fariseus. Os dois partidos compunham o quadro político social e religioso vigente durante a vida pública do Divino Mestre. Apesar do caráter inteiramente pacífico, ordeiro e caritativo em extremo da atuação de Jesus, essas correntes — acrescentemos ademais o sinédrio, os escribas e os herodianos — se alternavam para de maneira encarniçada Lhe armar alguma cilada da qual pudesse resultar sua prisão e condenação à morte. Eis a vez dos saduceus com seu deboche feito de ceticismo.
A objeção levantada pelos saduceus
Aproximaram-se depois alguns saduceus, que negam a ressurreição, e fizeram-Lhe a seguinte pergunta: “Mestre, Moisés deixou-nos escrito: ‘Se morrer o irmão de algum homem, tendo mulher, e não deixar filhos, case-se com ela o seu irmão, para dar descendência ao irmão.’ Ora, havia sete irmãos. O primeiro casou, e morreu sem filhos. Casou também o segundo com a viúva, e morreu sem filhos. Casou depois com ela o terceiro. E assim sucessivamente todos os sete; e morreram sem deixar filhos. Morreu enfim também a mulher. Na ressurreição, de qual deles será ela mulher, pois que o foi de todos os sete?”.
Sobre esses versículos, afirma Filion: “A citação dos saduceus era exata quanto ao sentido. Esta prescrição, que não era particular dos judeus, pois também é encontrada em vários povos antigos, como os egípcios, os persas e os hindus, e ainda hoje entre os circasianos, é conhecida com o nome de lei do Levirado, que seria a lei que regula o matrimônio entre cunhados e cunhadas. Tinha por objetivo conservar o ramo primogênito de cada família e impedir a excessiva transmissão dos bens a outrem. Não estava limitada aos irmãos do marido morto sem filhos, mas se estendia também aos parentes próximos, como sabemos pelo livro de Ruth (3, 9-13). Não era estritamente obrigatória, mas o que se recusasse cumpri-la tinha que se submeter a uma cerimônia humilhante (Dt 25, 7-10; Rt 4, 1-11). Apesar de que no tempo de Nosso Senhor já havia caído em descrédito, que irá aumentando com os anos, não havia cessado de estar em vigor na Palestina. […]
Esta breve narração, picante e rápida, é um modelo de casuística refinada. Seus autores davam por seguro que a questão que acabavam de propor a Jesus lhe co- locaria seguramente em um grande apuro. Como poderá responder esta deductio in absurdum? Não parece que fere de morte o dogma da ressurreição dos corpos, provando que deste nascem dificuldades insolúveis? Ainda que não tivesse havido mais do que dois matrimônios, a questão se apresentaria do mesmo modo (a bem da verdade, a propuseram alguns rabinos e estes a haviam resolvido dizendo que neste caso a mulher pertenceria, na outra vida, ao primeiro dos dois maridos. Zohar Gen. 24, 96); mas, multiplicando-os desta maneira, os saduceus conseguem ressaltar mais a objeção” 12.
Entretanto, poderíamos, com segurança, afirmar ser característica evidente de inteligência superficial e sem substância, o julgar os acontecimentos e o próprio ser humano pelas simples aparências sensíveis, sem nunca se elevar ao invisível. Para esse tipo de gente, Deus lhes é semelhante e a eternidade não é senão um prolongamento do mundo atual se é que ela existe. Não se poderia esperar outro tipo de objeção de um libertino para justificar seu relativismo.
É incrível a semelhança do discurso dos saduceus com o raciocínio de certos filósofos atuais e de outros tempos. São tão numerosas as oposições ao dogma da ressurreição surgidas ao longo da História que se fôssemos catalogá-las todas, seria intérmina sua coleção.
Resposta do Divino Mestre
Jesus disse-lhes: “Os filhos deste mundo casam e são dados em casamento, mas os que forem julgados dignos do mundo futuro e da ressurreição dos mortos, não desposarão mulheres, nem as mulheres desposarão homens, porque não poderão jamais morrer; porquanto são semelhantes aos anjos e são filhos de Deus, visto serem filhos da ressurreição”.
Em nossa vida terrena, devido à mortalidade, a existência da sucessão é indispensável para perpetuar-se a humanidade, e por consequência o matrimônio será uma exigência até se completar o número dos eleitos.
Ora, a eternidade, enquanto excelente imagem de Deus, não comportará a morte, e os bem-aventurados viverão exclusivamente nas leis do Espírito, no conhecimento e amor de Deus, vendo-O face a face. Os corações e as inteligências estarão unidos nas castas delícias da caridade perfeita, sem nenhuma necessidade do matrimônio. “Porque os casamentos são feitos para se ter filhos; os filhos vêm para a sucessão; e a sucessão chega pela morte; portanto, onde não há morte não há casamentos” 13.
Não é demais insistirmos que erraríamos se julgássemos ser a ressurreição um acontecimento exclusivo aos corpos dos justos. Não se deve crer “que unicamente ressuscitarão os que sejam dignos ou os que não se casam, mas também ressuscitarão todos os pecadores, e não se casarão na outra vida. Além do mais, o Senhor, para estimular nossas almas a buscar a ressurreição gloriosa, quis falar somente dos eleitos” 14.
Depois da ressurreição, os corpos dos eleitos serão “angelizados” e já não estarão sujeitos às leis da matéria e nem às da animalidade, conforme anteriormente dissemos. Torna-se patente, assim, o quanto devemos evitar o pecado pois, “se viverdes segundo a carne, morrereis [ressuscitar para ser lançado em corpo e alma no inferno, é morte eterna], mas se, pelo Espírito, fizerdes morrer as obras da carne, vivereis” (Rm 8, 13).
Deus não cria nossos corpos diretamente como o faz com nossas almas. Nesse sentido, somos filhos dos homens, expostos a todas as contingências inerentes à nossa natureza, até a morte. Como “filhos da ressurreição”, seremos filhos da onipotência divina, a qual restaurará nossos corpos de forma imediata, sem o concurso nem sequer de nossos pais terrenos.
Eis o quanto estavam errados os saduceus com seus falsos e infundados argumentos. Quando se afasta de Deus e de sua Revelação, o homem sempre cria sistemas de pensamento obscuros, estreitos e obtusos.
A imortalidade da alma
Que os mortos hajam de ressuscitar, o mostrou também Moisés no episódio da sarça, quando chamou ao Senhor o Deus de Abraão, o Deus de Isaac, e o Deus de Jacó. Ora Deus não é Deus de mortos, mas de vivos, porque para ele todos são vivos.”
Nesses versículos, claramente defende o Divino Mestre a imortalidade da alma, depois de ter revelado a ressurreição dos corpos. As Escrituras têm outras passagens ainda mais explícitas sobre a ressurreição (Dn 12, 2; Is 26, 19) que bem poderiam ter sido enunciadas por Jesus. Mas Ele lançou mão do exemplo ocorrido na vida de Moisés, para refutar a citação feita pelos próprios saduceus ao Levirato (Dt 25, 5-6).
Se o homem, ao morrer, se precipitasse no vazio, aniquilando-se em seu ser, todas as promessas da Escritura cairiam também no vazio. Deus jamais reduz ao nada qualquer de suas criaturas. As formas podem ser mutáveis, mas as substâncias permanecem. Nossos corpos são como que invólucros de nossas almas. Estas podem se desprender daqueles, cessando de emitir aos nossos sentidos as manifestações de sua existência, mas continuarão a viver na vingança ou no amor de Deus, nas trevas ou na Luz eternas.
Se Deus se define como ‘Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacó’ e é um Deus de vivos, não de mortos, então quer dizer que Abraão, Isaac e Jacó vivem em alguma parte; se bem que, no momento em que Deus fala a Moisés, eles já haviam desaparecido há séculos. Se existe Deus, existe também a vida além do túmulo. Uma coisa não pode estar sem a outra. Seria absurdo chamar a Deus de ‘o Deus dos vivos’ se, no final, Ele se encontrasse só para reinar sobre um imenso cemitério de mortos. Não entendo as pessoas (parece que existem) que dizem crer em Deus, mas não em uma vida ultra-terrena.
A pesar disso, não é necessário pensar que a vida além da morte começa só com a ressurreição final. Aquele será o momento em que Deus, também, tornará a dar vida aos nossos corpos mortais” 15.
Conclusão
Frustradamente vive o mundo, hoje em dia, à busca de novos prazeres, a fim satisfazer a sede de infinito que arde no âmago da alma humana. Se pudessem os homens ouvir um acorde da música celeste que arrebatou em êxtase a São Francisco, ou contemplar por um rápido momento a face de Deus que levou a São Silvano ter repugnância às faces dos homens, compreenderiam o quanto as delícias do Céu são puríssimas, eternas e opostas às da Terra.
Sêneca comentando o suicídio de Catão, concretizado com o auxílio de um punhal, para fugir das considerações de uma Roma que perdera a liberdade, afirma que o motivo principal de sua morte estava centrado na doutrina elaborada por Platão em sua obra Fedon, na qual explana longamente a imortalidade da alma. Em sua genialidade, Sêneca resume o ato com esta frase: “Ferrum fecit ut mori posset, Plato ut vellet”: O ferro (aço) fez que pudesse morrer, Platão que quisesse.” Se os próprios pagãos quando fiéis à razão chegavam a essas conclusões, por que nós batizados haveremos de seguir os equívocos dos saduceus?
1) Suma contra Gent. 4, 84. 2) Idem, ibidem, 4, 86 3 ) Idem, ibidem. 4 ) Idem, ibidem. 5 ) Idem, ibidem. 6 ) Idem, ibidem. 7 ) Suma contra Gent. 4, 89. 8 ) Idem, ibidem. 9 ) Idem, ibidem. 10 ) Idem, ibidem. 11 ) Idem, ibidem. 12 ) L.–Cl. FILLION. Vida de Nuestro Señor Jesucristo. Madrid: Editorial Voluntad, 1927. T. IV, p. 95-96. 13) SANTO AGOSTINHO apud S. Tomás de Aquino, Catena Aurea.14) BEDA apud Ibidem. 15) CANTALAMESSA, Raniero. Echad las Redes. Ciclo C. EDICEPI C.B., 2001, p. 346.


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