Continuação dos comentários ao Evangelho 32º Domingo do Tempo Comum – Ano C – 2013 - Lc 20, 27-38
A cilada dos
Saduceus
Essa é a
maravilhosa realidade — revelada por Cristo Jesus e explicitada
pela Igreja infalível — que nossa fé católica nos faz aguardar
com fortalecida esperança. Mas, na Antiguidade nem de longe essa
doutrina era assim conhecida. Sobretudo era ignorada entre os pagãos
e mais especialmente em meio a certas correntes filosóficas da
Grécia. Não é difícil compreender a razão pela qual se tinha
criado obstáculos contra a possibilidade de haver ressurreição.
Antes de tudo
devemos considerar a constatação histórica, no dia-adia, sobre os
mortos: quais deles retornam à vida? Porém, indo mais ao fundo do
problema, encontramos a luta que se estabelece no interior de todo
homem entre suas más inclinações e sua consciência. Sendo a
criatura humana um monolito de lógica, se admite ela a ressurreição
dos corpos como um prêmio ou castigo eternos em proporção aos
méritos ou culpas, ver-se-á na obrigação de cumprir as leis
morais contra sua própria concupiscência. Sem a graça de Deus,
essa batalha sempre termina mal. Ora, foi bem exatamente esse o
resultado obtido pelos povos da Antiguidade, chegando alguns
filósofos a defender a tese da materialidade da alma e de sua morte
concomitante à do corpo.
Origem
do partido dos saduceus
Sob o império de
Alexandre Magno (356 – 323 a.C.) houve um enorme empenho na
helenização e colonização do território pertencente aos hebreus.
Do povo eleito, a classe mais abastada foi a mais atingida pela
influência estrangeira e, aos poucos, transformou-se numa espécie
de aristocracia sacerdotal, dando origem ao partido dos saduceus.
Cumpridores exatos
das formalidades da Lei, os membros desse partido eram, na realidade,
incrédulos e relativistas em matéria moral. Reduziam ao mínimo as
exigências dogmáticas e não receavam professar erros crassos
hauridos do mundo pagão, como por exemplo chegavam a se opor à
existência dos anjos e, pior ainda, não aceitavam a própria
existência das almas separadas dos corpos. Negavam inclusive a
providência de Deus, como também Sua ação sobre os
acontecimentos. Eram ateus-práticos e apesar de se revestirem dos
cerimoniais do culto da religião judaica, não passavam de
semipagãos. Não é difícil concebê-lo pois, ainda nos dias de
hoje esbarramos não poucas vezes com pessoas dessa mentalidade e
submersas nas mesmas convicções.
Apesar do número
dos saduceus ser proporcionalmente muito reduzido, a péssima
influência por eles exercida sobre o povo, era bem considerável,
devido à sua situação social. Seu nome tem origem na palavra
hebraica ṣadiq ( ,)צדיקou
seja, justo. Talvez por arrogância própria, eles mesmos escolheram
esse nome, ou por debique lhes foi conferido por outros.
Os saduceus
constituíam uma forte corrente, em oposição os fariseus. Os dois
partidos compunham o quadro político social e religioso vigente
durante a vida pública do Divino Mestre. Apesar do caráter
inteiramente pacífico, ordeiro e caritativo em extremo da atuação
de Jesus, essas correntes — acrescentemos ademais o sinédrio, os
escribas e os herodianos — se alternavam para de maneira
encarniçada Lhe armar alguma cilada da qual pudesse resultar sua
prisão e condenação à morte. Eis a vez dos saduceus com seu
deboche feito de ceticismo.
A
objeção levantada pelos saduceus
Aproximaram-se
depois alguns saduceus, que negam a ressurreição, e fizeram-Lhe a
seguinte pergunta: “Mestre, Moisés deixou-nos escrito: ‘Se
morrer o irmão de algum homem, tendo mulher, e não deixar filhos,
case-se com ela o seu irmão, para dar descendência ao irmão.’
Ora, havia sete irmãos. O primeiro casou, e morreu sem filhos. Casou
também o segundo com a viúva, e morreu sem filhos. Casou depois com
ela o terceiro. E assim sucessivamente todos os sete; e morreram sem
deixar filhos. Morreu enfim também a mulher. Na ressurreição, de
qual deles será ela mulher, pois que o foi de todos os sete?”.
Sobre esses
versículos, afirma Filion: “A citação dos saduceus era exata
quanto ao sentido. Esta prescrição, que não era particular dos
judeus, pois também é encontrada em vários povos antigos, como os
egípcios, os persas e os hindus, e ainda hoje entre os circasianos,
é conhecida com o nome de lei do Levirado, que seria a lei que
regula o matrimônio entre cunhados e cunhadas. Tinha por objetivo
conservar o ramo primogênito de cada família e impedir a excessiva
transmissão dos bens a outrem. Não estava limitada aos irmãos do
marido morto sem filhos, mas se estendia também aos parentes
próximos, como sabemos pelo livro de Ruth (3, 9-13). Não era
estritamente obrigatória, mas o que se recusasse cumpri-la tinha que
se submeter a uma cerimônia humilhante (Dt 25, 7-10; Rt 4, 1-11).
Apesar de que no tempo de Nosso Senhor já havia caído em
descrédito, que irá aumentando com os anos, não havia cessado de
estar em vigor na Palestina. […]
“Esta breve
narração, picante e rápida, é um modelo de casuística refinada.
Seus autores davam por seguro que a questão que acabavam de propor a
Jesus lhe co- locaria seguramente em um grande apuro. Como poderá
responder esta deductio in absurdum? Não parece que fere de morte o
dogma da ressurreição dos corpos, provando que deste nascem
dificuldades insolúveis? Ainda que não tivesse havido mais do que
dois matrimônios, a questão se apresentaria do mesmo modo (a bem da
verdade, a propuseram alguns rabinos e estes a haviam resolvido
dizendo que neste caso a mulher pertenceria, na outra vida, ao
primeiro dos dois maridos. Zohar Gen. 24, 96); mas, multiplicando-os
desta maneira, os saduceus conseguem ressaltar mais a objeção”
12.
Entretanto,
poderíamos, com segurança, afirmar ser característica evidente de
inteligência superficial e sem substância, o julgar os
acontecimentos e o próprio ser humano pelas simples aparências
sensíveis, sem nunca se elevar ao invisível. Para esse tipo de
gente, Deus lhes é semelhante e a eternidade não é senão um
prolongamento do mundo atual se é que ela existe. Não se poderia
esperar outro tipo de objeção de um libertino para justificar seu
relativismo.
É incrível a
semelhança do discurso dos saduceus com o raciocínio de certos
filósofos atuais e de outros tempos. São tão numerosas as
oposições ao dogma da ressurreição surgidas ao longo da História
que se fôssemos catalogá-las todas, seria intérmina sua coleção.
Resposta
do Divino Mestre
Jesus
disse-lhes: “Os filhos deste mundo casam e são dados em casamento,
mas os que forem julgados dignos do mundo futuro e da ressurreição
dos mortos, não desposarão mulheres, nem as mulheres desposarão
homens, porque não poderão jamais morrer; porquanto são
semelhantes aos anjos e são filhos de Deus, visto serem filhos da
ressurreição”.
Em nossa vida
terrena, devido à mortalidade, a existência da sucessão é
indispensável para perpetuar-se a humanidade, e por consequência o
matrimônio será uma exigência até se completar o número dos
eleitos.
Ora, a eternidade,
enquanto excelente imagem de Deus, não comportará a morte, e os
bem-aventurados viverão exclusivamente nas leis do Espírito, no
conhecimento e amor de Deus, vendo-O face a face. Os corações e as
inteligências estarão unidos nas castas delícias da caridade
perfeita, sem nenhuma necessidade do matrimônio. “Porque os
casamentos são feitos para se ter filhos; os filhos vêm para a
sucessão; e a sucessão chega pela morte; portanto, onde não há
morte não há casamentos” 13.
Não é demais
insistirmos que erraríamos se julgássemos ser a ressurreição um
acontecimento exclusivo aos corpos dos justos. Não se deve crer “que
unicamente ressuscitarão os que sejam dignos ou os que não se
casam, mas também ressuscitarão todos os pecadores, e não se
casarão na outra vida. Além do mais, o Senhor, para estimular
nossas almas a buscar a ressurreição gloriosa, quis falar somente
dos eleitos” 14.
Depois da
ressurreição, os corpos dos eleitos serão “angelizados” e já
não estarão sujeitos às leis da matéria e nem às da animalidade,
conforme anteriormente dissemos. Torna-se patente, assim, o quanto
devemos evitar o pecado pois, “se viverdes segundo a carne,
morrereis [ressuscitar para ser lançado em corpo e alma no
inferno, é morte eterna], mas se, pelo Espírito, fizerdes morrer
as obras da carne, vivereis” (Rm 8, 13).
Deus não cria
nossos corpos diretamente como o faz com nossas almas. Nesse sentido,
somos filhos dos homens, expostos a todas as contingências inerentes
à nossa natureza, até a morte. Como “filhos da ressurreição”,
seremos filhos da onipotência divina, a qual restaurará nossos
corpos de forma imediata, sem o concurso nem sequer de nossos pais
terrenos.
Eis o quanto estavam
errados os saduceus com seus falsos e infundados argumentos. Quando
se afasta de Deus e de sua Revelação, o homem sempre cria sistemas
de pensamento obscuros, estreitos e obtusos.
A
imortalidade da alma
“Que
os mortos hajam de ressuscitar, o mostrou também Moisés no episódio
da sarça, quando chamou ao Senhor o Deus de Abraão, o Deus de
Isaac, e o Deus de Jacó. Ora Deus não é Deus de mortos, mas de
vivos, porque para ele todos são vivos.”
Nesses versículos,
claramente defende o Divino Mestre a imortalidade da alma, depois de
ter revelado a ressurreição dos corpos. As Escrituras têm outras
passagens ainda mais explícitas sobre a ressurreição (Dn 12, 2; Is
26, 19) que bem poderiam ter sido enunciadas por Jesus. Mas Ele
lançou mão do exemplo ocorrido na vida de Moisés, para refutar a
citação feita pelos próprios saduceus ao Levirato (Dt 25, 5-6).
Se o homem, ao
morrer, se precipitasse no vazio, aniquilando-se em seu ser, todas as
promessas da Escritura cairiam também no vazio. Deus jamais reduz ao
nada qualquer de suas criaturas. As formas podem ser mutáveis, mas
as substâncias permanecem. Nossos corpos são como que invólucros
de nossas almas. Estas podem se desprender daqueles, cessando de
emitir aos nossos sentidos as manifestações de sua existência, mas
continuarão a viver na vingança ou no amor de Deus, nas trevas ou
na Luz eternas.
“Se Deus se define
como ‘Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacó’ e é um Deus
de vivos, não de mortos, então quer dizer que Abraão, Isaac e Jacó
vivem em alguma parte; se bem que, no momento em que Deus fala a
Moisés, eles já haviam desaparecido há séculos. Se existe Deus,
existe também a vida além do túmulo. Uma coisa não pode estar sem
a outra. Seria absurdo chamar a Deus de ‘o Deus dos vivos’ se, no
final, Ele se encontrasse só para reinar sobre um imenso cemitério
de mortos. Não entendo as pessoas (parece que existem) que dizem
crer em Deus, mas não em uma vida ultra-terrena.
“A pesar disso,
não é necessário pensar que a vida além da morte começa só com
a ressurreição final. Aquele será o momento em que Deus, também,
tornará a dar vida aos nossos corpos mortais” 15.
Conclusão
Frustradamente vive
o mundo, hoje em dia, à busca de novos prazeres, a fim satisfazer a
sede de infinito que arde no âmago da alma humana. Se pudessem os
homens ouvir um acorde da música celeste que arrebatou em êxtase a
São Francisco, ou contemplar por um rápido momento a face de Deus
que levou a São Silvano ter repugnância às faces dos homens,
compreenderiam o quanto as delícias do Céu são puríssimas,
eternas e opostas às da Terra.
Sêneca comentando o
suicídio de Catão, concretizado com o auxílio de um punhal, para
fugir das considerações de uma Roma que perdera a liberdade, afirma
que o motivo principal de sua morte estava centrado na doutrina
elaborada por Platão em sua obra Fedon, na qual explana longamente a
imortalidade da alma. Em sua genialidade, Sêneca resume o ato com
esta frase: “Ferrum fecit ut mori posset, Plato ut vellet”: O
ferro (aço) fez que pudesse morrer, Platão que quisesse.” Se os
próprios pagãos quando fiéis à razão chegavam a essas
conclusões, por que nós batizados haveremos de seguir os equívocos
dos saduceus?
1) Suma contra Gent.
4, 84. 2) Idem, ibidem, 4, 86 3 ) Idem, ibidem. 4 ) Idem, ibidem. 5 )
Idem, ibidem. 6 ) Idem, ibidem. 7 ) Suma contra Gent. 4, 89. 8 )
Idem, ibidem. 9 ) Idem, ibidem. 10 ) Idem, ibidem. 11 ) Idem, ibidem.
12 ) L.–Cl. FILLION. Vida de Nuestro Señor Jesucristo. Madrid:
Editorial Voluntad, 1927. T. IV, p. 95-96. 13) SANTO AGOSTINHO apud
S. Tomás de Aquino, Catena Aurea.14) BEDA apud Ibidem. 15)
CANTALAMESSA, Raniero. Echad las Redes. Ciclo C. EDICEPI C.B., 2001,
p. 346.
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