Continuação dos comentários ao Evangelho Mt 4, 12-23 – 3º Domingo do Tempo Comum – Ano A – 2014
Mons. João Scognamiglio Clá Dias, E.P.
O povo que jazia nas trevas viu
uma grande luz
14b Cumprindo-se o que tinha sido anunciado
pelo profeta Isaías, quando disse: “Terra de Zabulão e terra de Neftali, terra
que confina com o mar, país além do Jordão, Galiléia dos gentios! Este povo,
que jazia nas trevas, viu uma grande luz, e uma luz levantou-se para os que
jaziam na sombra da morte.”
A
citação de Isaías feita por São Mateus nestes versículos é retirada do texto
hebraico e por isso não são transcritas algumas palavras como constam em nossas
traduções mais correntes:
“No
tempo passado foi levemente combatida a terra de Zabulon, e a terra de Neftali,
e no tempo futuro serão cobertas de glória a costa do mar, além-Jordão, a
Galiléia das nações. Este povo, que andava nas trevas, viu uma grande luz; aos
que habitavam na região da sombra da morte nasceu-lhes o dia” (Is 9, 1-2).
Trata-se
de uma belíssima profecia que se cumpre ao estabelecer-Se o Senhor em
Cafarnaum. De fato, segundo nos é descrito pelo segundo livro dos Reis (15,
29), Teglatfalasar, rei dos Assírios, invadiu várias regiões, entre as quais as
terras de Zabulon e Neftali, ou seja, a porção citada nesses versículos de
Mateus. Isto se deu por um castigo de Deus. Foi assim devastada a Galiléia e
tomada pelos gentios, e daí seu nome: “Galiléia dos Gentios”, localizada na
zona limítrofe da Síria e da Fenícia, coalhada de pagãos.
Essa
era a principal razão de se terem constituído seus habitantes em objeto de
desprezo da parte do resto da nação, pois grande era a infiltração de gentios
arameus, itureus, fenícios e gregos, que inevitavelmente se mesclavam com os
judeus de raça, conforme vem narrado no primeiro livro dos Macabeus (5, 15): “E
toda a Galiléia estava cheia de estrangeiros, com o fim de nos perderem”. Tratava-se,
como já dissemos, de uma região rica em comércio e por isso atraente para os
vários povos.
Ora,
torna-se compreensível o quanto se corromperam as doutrinas e os bons costumes
religiosos do povo eleito naquelas paragens, devido à forte e diversificada
influência pagã, bem como o motivo pelo qual ele “andava nas trevas” e na
“sombra da morte”.
“Estavam
os gentios sentados na região da sombra da morte — diz Crisóstomo — porque não
tinham sequer uma partícula de luz divina que os iluminasse. Os judeus, que
faziam as obras da lei, mas não conheciam a justiça do Evangelho, estavam nas
trevas. Todas elas são dissipadas pela ‘grande luz’ do Messias. Não pode haver
luz mais intensa e fixa, porque Jesus é a luz substancial: ‘Eu sou a luz do
mundo’ (Jo 8, 12). Não desconfiemos jamais de sua eficácia para chegar ao fundo
dos espíritos mais cobertos de trevas pela infidelidade, pela heresia, pela
ignorância, pela indiferença; e façamo-nos sempre, por nossa pregação e nossas
obras, filhos dessa luz e colaboradores de sua ação iluminativa” 6.
A pregação do Reino dos Céus
17 Desde então, começou Jesus a pregar:
“Fazei penitência porque está próximo o Reino dos Céus”.
São
Marcos também nos deixou o mesmo relato nestes termos: “Completou-se o tempo, e
aproximase o Reino de Deus; fazei penitência, e crede no Evangelho” (Mc 1, 15).
Enquanto um evangelista costuma falar em “Reino dos Céus”, o outro se refere ao
“Reino de Deus”. Discutem os autores sobre este particular, mas para nossos
objetivos não nos convém discorrer sobre ele e, por isso, tomemos as duas
expressões como sinônimas.
Já na
famosa conversa noturna com Nicodemos, Jesus fizera menção ao Reino de Deus
(cf. Jo 3, 3-5). Agora começa propriamente Sua pregação pública sobre o tema.
É
sabido o quanto os judeus esperavam por um reino político-social todo feito de
glória para o povo eleito. Essa seria, para eles, a realização do Reino de Deus
sobre a Terra. É em Cafarnaum que Jesus começa a retificar esse equívoco
nacionalista, o que Ele fará progressivamente por meio de pregações, parábolas
e polêmicas, com uma insuperável força didática e de lógica.
Natureza espiritual e caráter
universal do Reino
O
método processivo para o estabelecimento do Reino anunciado pelo Divino Mestre
se chocava com a concepção judaica de uma intervenção intempestiva do
Todo-Poderoso, alçando aos píncaros a nação eleita. Figuras como as da semente,
do grão de mostarda e do fermento (cf. Mt 13, 24-33) demonstravam o lento passo
a passo da evolução do Reino anunciado e trazido por Ele.
Ademais,
o verdadeiro Reino é, sobretudo, religioso, sem possuir um fim político segundo
o acentuado anseio da opinião pública daqueles tempos. Esse Reino se estabelece
em oposição ao de Satanás. “Se Eu, porém, lanço fora os demônios pela virtude
do Espírito de Deus, é chegado a vós o Reino de Deus” (Mt 12, 28). Não fará,
portanto, uma oposição a César (cf. Mt 22, 21) e, por outro lado, não será
nacional, mas universal: “Digo-vos, porém, que virão muitos do Oriente e do
Ocidente e se sentarão com Abraão, Isaac e Jacó no Reino dos Céus ...” (Mt 8,
11).
Sobre o
versículo em questão, assim se exprime o grande exegeta Fillion: “Podia-se,
pois, compreender o Salvador quando Ele fez ecoar através da Galiléia o
‘Evangelho do Reino’, já que esta boa nova fora anunciada há muito tempo, e
que, recentemente, o Precursor a tinha proclamado com ardente zelo. Mas era
preciso corrigir o que havia tomado uma má direção no espírito do povo,
aperfeiçoar o que era bom, erguer às esferas superiores o que ainda não fora
revelado em toda a sua extensão e, assim, retornar ao magnífico ideal dos
profetas e até ultrapassá-lo. É por isso que — rejeitando com vigor as concepções
mesquinhas e vulgares da maior parte dos seus compatriotas, desvinculando a
noção de Reino de Deus das quimeras da escatologia judaica, protestando
especialmente contra a pretensão dos fariseus e dos escribas de dar às
esperanças messiânicas um aspecto puramente exterior e político, de maneira a
fazer disso o monopólio de sua nação — Jesus insistiu incansavelmente na
natureza espiritual e no caráter universal desse Reino” 7.
A penitência abre as portas do
Reino dos Céus
O Reino
está próximo e, para nele penetrar, é preciso fazer penitência, humilhar-se,
purificar-se. É a via segura para se obter a paz com Deus e consigo mesmo. Essa
foi a condição colocada por Jesus, e por isso, “não começou — diz o mesmo
Crisóstomo — pregando as altas coisas da justiça da nova lei, mas as coisas
íntimas da retificação da vontade pela penitência. Por aí se entra no Reino dos
Céus: abandonando os maus hábitos, retificando intenções e inclinações erradas,
concebendo desejos de viver bem e tendo pesar de haver feito o mal. É então que
se pode já vislumbrar o gozo do cumprimento da perfeita justiça: ‘Fazei
penitência…’ ‘Aproximouse o Reino dos Céus…’” 8.
Vocação dos primeiros discípulos
18 Caminhando ao longo do mar da Galiléia,
viu dois irmãos, Simão, chamado Pedro, e André, seu irmão, que lançavam a rede
ao mar, pois eram pescadores. “Segui-Me, disse-lhes, e Eu vos farei pescadores de
homens.” E eles, imediatamente, deixando as redes, O seguiram. Passando
adiante, viu outros dois irmãos, Tiago, filho de Zebedeu, e João, seu irmão,
que estavam numa barca, juntamente com seu pai Zebedeu, consertando as suas
redes. E chamou-os. Eles, deixando imediatamente a barca e o pai, seguiram-no.
Pela
narração de São João, tudo leva a crer que esses quatro apóstolos já conheciam
Jesus. Os outros três evangelistas não fazem menção a esse prévio
relacionamento.
O
precursor apontara a André e João a figura do Messias e, por isso, ambos O
seguiram e, logo após, aproximaram Pedro e Tiago. Um dia depois, fora chamado
pelo próprio Jesus o apóstolo Filipe, o qual, por sua vez, atraiu Bartolomeu
(cf. Jo 1, 35-51). Portanto, de certo modo, eles já eram discípulos do Salvador
quando se desenrolam os fatos descritos nos versículos acima.
Pedro e
André lavavam as redes provavelmente depois de uma pesca infrutífera, caso
Lucas se refira à mesma cena (cf. Lc 5, 1-11). A eles dirige o Mestre o convite
em tom quase imperativo, o que faz prever conversas anteriores preparatórias a
esse momento no qual se concretizava uma antiga promessa de fazê-los pescadores
de homens.
A mesma
determinação será usada com os outros dois irmãos, filhos de Zebedeu, pelo
Divino Mestre.
A
prontidão com a qual a dupla de irmãos abandona tudo, os dois últimos até ao
próprio pai, indica bem o grau de intimidade existente entre eles e o Mestre, e
o teor das conversas havidas até então. Jesus trabalhava com divina sabedoria e
zeloso cuidado, cada um para o exercício dessa robusta fé e arrojada decisão.
Alheias
a essa tomada de atitude não deviam estar as orações silenciosas de Maria
Santíssima. Ausente também não estava o esforço e o fogo de alma do Batista.
Ele foi quem os congregara e os entregara ao Messias. Esses fatores todos
conjugados levaram os quatro primeiros discípulos a, com espírito inflamado,
dar as costas a este mundo e lançar, não mais as redes, mas a si próprios, não
nas águas, e sim no Reino dos Céus.
O
mencionado Pe. Luís María Jiménez Font, faz um excelente comentário sobre essa
passagem: “Parece que a vocação dos apóstolos se passou da seguinte maneira:
Cristo recebeu espontaneamente os que a Ele se juntaram, procedentes do
discipulado do Batista — André e Pedro, João e Tiago —, e no primeiro retorno à
Galiléia, Filipe e Natanael, aos quais permitiu Jesus retomar suas atividades
depois da cura do filho do régulo, acabada a primeira pregação na Judéia, pois
o primeiro ministério do Senhor na Galiléia, parece que Ele o fez completamente
só. Quando já era conhecido na região, decidiu formalizar o ponto da
colaboração alheia, e chamou novamente aqueles que no início O tinham
acompanhado por devoção, para que O seguissem de modo definitivo e
profissional, no dia da pesca milagrosa” 9.
Continua no próximo post.
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