Continuação dos comentários ao Evangelho Solenidade da Assunção de Nossa Senhora – Lc 1, 39-56
Cristo ressuscitado, fundamento de nossa fé
Já na segunda leitura
escutamos a voz de São Paulo, o arauto da Ressurreição, dirigindo-se aos
Coríntios (I Cor 15, 20-27a).
Quis a Providência
que ele desenvolvesse boa parte de seu apostolado entre os gregos, povo que não
admitia a ressurreição dos corpos no último dia, porque se a aceitassem
tornar-se-ia forçoso reconhecer a existência de uma vida post mortem, em função da qual deveriam seguir a moral. Como eles
não estavam dispostos a assumir um comportamento íntegro, deixaram-se rolar
precipício abaixo impelidos pelo vício da impureza. Sua depravação de costumes
ficou conhecida na História. A eles São Paulo declara em um versículo anterior:
“Se Cristo não ressuscitou, vã é nossa pregação e vã é também vossa fé” (I Cor
15, 14).
Dada a firme
convicção que caracteriza sua doutrina acerca deste mistério, somos levados a
crer que o Apóstolo tenha tratado com o próprio Nosso Senhor a respeito disto,
que lhe terá fornecido elementos claríssimos para sustentar tal verdade. Por
isso, diz importar-se pouco com o sofrimento, a alegria ou com qualquer
circunstância adversa, pois nada pode separá-lo de Cristo (cf. Rm 8, 35), considerando
a morte como um lucro (cf. Fl 1, 21) e um meio para unir-se ainda mais ao
Salvador. De fato, São Paulo deposita uma esperança extraordinária na ressurreição,
do que dão testemunho suas epístolas, nas quais encontramos a cada passo alguma
referência a este grandioso acontecimento.
Precedidos por um membro eminente do Corpo Místico
O ensinamento paulino
a respeito da ressurreição, que procura nos estimular à esperança — “Cristo
ressuscitou dos mortos como primícias dos que morreram” (I Cor 15, 20) —, pode
ser aplicado com propriedade também a Nossa Senhora. A partir do momento em que
o Redentor constituiu seu Corpo Místico, do qual Ele é a Cabeça, não se
compreenderia que só Ele ressuscitasse, pois seu desígnio consiste em abrir o
caminho para o Corpo inteiro gozar do mesmo benefício. Caso Nosso Senhor
ressurgisse dos mortos e todos os membros da Igreja triunfante permanecessem no
Céu apenas em alma, mesmo após o Juízo Final, esta seria uma obra disforme,
pouco condizente com o seu modo divino de proceder.
Por isso, continua
São Paulo: “Com efeito, por um homem veio a morte e é também por um homem que
vem a ressurreição dos mortos. Como em Adão todos morrem, assim também em Cristo
todos reviverão” (I Cor 15, 21-22). Ao traçar um paralelo entre Cristo e Adão,
o Apóstolo mostra que não conheceríamos a morte se não fosse o pecado do
primeiro homem, sendo necessário que outro homem triunfasse sobre ele. Nossas
almas já foram purificadas da mancha original pelo Batismo, mas falta-nos ainda
vencer a morte com os nossos corpos ressurrectos. “Porém, cada qual segundo uma
ordem determinada: em primeiro lugar, Cristo, como primícias; depois os que pertencem
a Cristo, por ocasião da sua vinda” (I Cor 15, 23). Entre os que são d’Ele
destaca-Se Nossa Senhora, a mais excelsa criatura humana, que adquire corpo glorioso
e ocupa no Céu um lugar especial por ser a Mãe de Deus.
Embora a Igreja não
tenha definido se Maria morreu ou não, é dogma de Fé que Ela transpôs os
umbrais da eternidade em corpo e alma, realizando o plano de Deus. Sua Assunção
oferece-nos um penhor de esperança, que em certo sentido pode ser considerado
maior que o da Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo. Esta ousada afirmação
prende-se a que Ela, enquanto pura criatura, é a Filha primogênita da Igreja, o
membro de máxima elevação do Corpo Místico de Cristo, e Se encontra, portanto,
mais próxima de nossa contingência humana que seu Divino Filho, que é Homem mas
também é Deus.
A exemplo de Maria
Na passagem de Maria
Santíssima deste mundo para a eternidade vislumbramos desde já o que nos
acontecerá no Juízo Final, caso venhamos a morrer em estado de graça. Todos nós
— esta é uma profecia que qualquer um pode fazer, sem risco de incorrer em erro
— partiremos desta vida. E quanto tempo mediará entre a morte e a ressurreição?
Não importa, pois para Deus nada é impossível. Nossa alma foi por Ele criada a
partir do nada e o corpo, embora tenha origem humana nos pais, foi constituído
por Ele. Adão, o mais belo ser de toda a obra da criação, foi modelado como um
boneco de barro por um artista chamado Deus, e também o barro foi criado sem
qualquer matéria preexistente, como o resto do universo. Isto nos mostra que Deus,
sendo onipotente, pode criar e recriar todos os seres. Assim como nos formou
individualmente e infunde a alma em cada criança recém-concebida, pode mandar
que os restos mortais de homens falecidos — alguns há milhares de anos, como
nossos pais Adão e Eva — sejam reunidos e seus corpos reconstituídos em estado
glorioso. Em última análise, a ressurreição certifica a onipotência divina.
Pela simples lembrança de que morreremos, seremos sepultados e esperaremos até
sermos recompostos de forma gloriosa, a ponto de adquirirmos um corpo
espiritualizado, já antegozamos esse momento de extraordinária beleza em que
triunfaremos, como Nossa Senhora no dia da Assunção.
Maria não podia conter mais graça
É edificante
considerar que, independentemente de Maria Santíssima ter morrido ou não, pelo
fato de ser imaculada nunca sofreu Ela nenhuma enfermidade, não envelheceu ou
padeceu a menor mazela decorrente do pecado, e seu corpo não esteve sujeito à
decomposição, sendo esta uma das razões de sua Assunção ao Céu. Levantemos, porém,
algumas hipóteses a respeito de outros motivos que terão levado Nossa Senhora a
passar desta vida para a eternidade com seu corpo glorioso.
Ensina a doutrina
católica ser a caridade uma virtude que se radica na vontade.7 Quando é muito
forte, o amor impele quem ama a unir-se a quem é amado. Todo cristão, no dia do
Juízo, deve apresentar seu progresso na caridade, por ser ela imprescindível
para entrar no Céu. Ora, houve alguém que partiu desta vida não com amor, mas por
amor: Nossa Senhora. Afirma Santo Alberto Magno que “mais obrigação tem de amar
aquele a quem se dá mais. A Beatíssima Virgem foi dado mais que a todas as
criaturas; logo, estava obrigada a amar mais do que qualquer outra”.8 E assim o
fez, conclui o santo doutor. N’Ela, a caridade intensificou-se de tal maneira
que o corpo não mais podia sustentar a alma, e o desejo de contemplar a Deus
face a face para unir-Se a Ele fez com que a alma de Maria Santíssima, ao subir,
levasse também o corpo. A par disso, é certo que n’Ela a graça, embora plena
desde sua concepção, aumentou incessantemente ao longo da vida a ponto de mais
não comportar quando ocorreu a Assunção. Eis a maravilha de uma criatura humana
que, de plenitude em plenitude, de perfeição em perfeição, havia chegado ao
extremo limite de todas as medidas, até quase não existir diferença entre a sua
compreensão do universo e a própria visão de Deus. O que Lhe faltava? Apenas a
Assunção. Sua alma atingiu tal sublimidade, alcandoramento e esplendor, que o
véu de separação entre a natureza humana e a visão beatífica tornou-se tênue,
se desfez, e — sem necessidade de passar por qualquer julgamento — Ela viu a
Deus. Em consequência, seu corpo tornou-se glorioso e Ela elevou-Se ao Céu.
Subindo ao Céu por força da graça
Em função disso é
indispensável corrigir certa visualização oferecida por algumas obras de arte,
até piedosas, em que Maria aparece en volta numa nuvem, elevada ao Céu por uns
anjinhos, representados na maioria das vezes como se fizessem esforço para
conduzi-La.
Na verdade, por ter a
alma na visão beatifica, seu corpo glorificado já gozava da agilidade, uma das
qualidades deste estado. Ela deslocava-Se com extraordinária facilidade,
com
a rapidez do pensamento podendo subir ao Céu por Si mesma, Os Anjos A teriam
acompanhado? Sim, mas por veneração, sem precisar transportá-La, uma vez que
Ela possuía mais glória que todos eles juntos.
Em que consiste,
então, a diferença entre a Assunção de Maria e a Ascensão do Senhor? Ele subiu
aos Céus tanto por seu poder divino — pois é o próprio Deus — quanto pela
virtude de sua Alma glorificada, que movia seu Corpo.9 E a Assunção de sua Mãe
Virginal teve como causa apenas a glória de seu corpo, submisso à sua alma
bem-aventurada.
A humanidade divinizada entra na glória
Outra razão da
conveniência deste magnífico acontecimento é a restituição prestada a Deus por
todos os benefícios concedidos ao gênero humano. Uma vez que a Segunda Pessoa
da Santíssima Trindade desceu dos Céus, para Se encarnar, trazendo ao mundo a
divindade humanizada, seria justo que uma pessoa humana fizesse um oferecimento
harmonicamente contrário e levasse para o Céu o melhor da santidade, o que de
mais belo, excelente e extraordinário pudesse existir na Terra: a humanidade divinizada.
Tal missão foi reservada a Maria. Por outro lado, Ela foi o sacrário do Filho
de Deus durante os nove meses nos quais gerou a humanidade santíssima de
Cristo. Era compreensível que havendo-O recebido como tabernáculo na Terra,
também Ele A recebesse em seu Santuário Celeste.
Continua no próximo post.
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