Comentários ao Evangelho Quarta-feira de Cinzas
Naquele tempo, disse Jesus aos seus
discípulos: 1“Ficai atentos para não praticar a vossa justiça na frente dos
homens, só para serdes vistos por eles. Caso contrário, não recebereis a
recompensa do vosso Pai que está nos céus.
2Por isso, quando deres esmola, não toques
a trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas,
para serem elogiados pelos homens. Em verdade vos digo: eles já receberam a sua
recompensa. 3Ao contrário, quando deres esmola, que a tua mão esquerda não
saiba o que faz a tua mão direita, 4de modo que a tua esmola fique oculta. E o
teu Pai, que vê o que está oculto, te dará a recompensa.
5Quando orardes, não sejais como os
hipócritas, que gostam de rezar de pé, nas sinagogas e nas esquinas das praças,
para serem vistos pelos homens. Em verdade vos digo: eles já receberam a sua
recompensa. 6Ao contrário, quando orares, entra no teu quarto, fecha a porta, e
reza ao teu Pai que está oculto. E o teu Pai, que vê o que está escondido, te
dará a recompensa.
16Quando jejuardes, não fiqueis com o rosto
triste como os hipócritas. Eles desfiguram o rosto, para que os homens vejam
que estão jejuando. Em verdade vos digo: eles já receberam a sua recompensa.
17Tu, porém, quando jejuares, perfuma a cabeça e lava o rosto, 18para que os
homens não vejam que tu estás jejuando, mas somente teu Pai, que está oculto. E
o teu Pai, que vê o que está escondido, te dará a recompensa”. (Mt 6,
1-6.16-18).
No jejum, na oração ou na prática de qualquer boa obra, não se
pode erigir como fim último o benefício que daí possa nos advir, mas sim a
glória d'Aquele que nos criou. Pois tudo quanto é nosso - exceção feita das
imperfeições, misérias e pecados - pertence a Deus.
Mons.
João Clá Dias, EP
I - Tempo de
penitência e reconciliação
Por
meio do Ciclo Litúrgico, com sabedoria e didática, rememora a Igreja ao longo
do ano os mais importantes episódios da existência terrena do Verbo Encarnado.
As solenidades da Anunciação e do Natal, as comemorações do Tríduo Pascal e da
Ascensão de Nosso Senhor aos Céus, entre outras, compõem um variado
caleidoscópio, apresentando à piedade dos fiéis diferentes aspectos da infinita
perfeição de nosso Redentor. As graças dispensadas pela Providência em cada um
desses momentos históricos revivem, de certo modo, e se derramam sobre aqueles
que devotamente participam dessas festividades.
Precedendo
as solenidades mais importantes - o Nascimento do Salvador e sua Paixão, Morte
e Ressurreição - a Igreja destina dois períodos de preparação: o Advento e a
Quaresma, pois convém que, para celebrar tão elevados e sublimes mistérios, os
fiéis purifiquem suas almas das misérias e apegos, tornando-as mais aptas a
receber as dádivas celestes.
Na
Quarta-Feira de Cinzas têm início os quarenta dias que antecedem a Semana Santa.
As três leituras desse dia - uma passagem do Profeta Joel, um trecho de uma
epístola de São Paulo e outro do Evangelho - nos falam da necessidade do jejum
e da penitência como meios de melhor combater os vícios, pela mortificação do
corpo, e propiciar a elevação da mente a Deus. Pois, segundo nos ensina o Papa
São Leão Magno, "nós nos mortificamos para extinguir em nós a
concupiscência. E o resultado da mortificação deve ser o abandono das ações
desonestas e dos desejos injustos".1
Como
mais adiante veremos, os textos litúrgicos em questão fazem referência,
sobretudo, a um tipo de penitência que agrada especialmente a Deus e q ue é
essencial para nossa vida espiritual. Trata-se de evitar os exageros do amor
próprio, procurando não atrair as atenções dos outros sobre si mesmo, de
maneira que a alma, limpa e ornada da virtude da humildade, ofereça ao Senhor
um sacrifício de agradável perfume.
"Lembra-te,
homem, de que és pó"
De
forma cogente, a liturgia da Quarta-Feira de Cinzas recorda-nos também nossa condição
de mortais: "Memento homo quia pulvis es et in pulverem reverteris -
Lembra-te, homem, de que és pó e ao pó hás de voltar", diz, de modo
categórico, uma das duas fórmulas usadas pela Igreja para a imposição das
cinzas.2 Após a cerimônia, a fronte dos fiéis fica marcada por um traço escuro
cujo aspecto trágico e carente de beleza parece proclamar: "De uma hora
para outra, podemos ser levados pela morte, retornando ao pó!".
A
consideração da árdua passagem desta vida para a eternidade muitas vezes nos
inquieta. Entretanto, tal pensamento é altamente benfazejo para compenetrar-nos
da necessidade de evitar o pecado que, sem o arrependimento e o imerecido
perdão, poderá fechar-nos, para sempre, as portas do Céu: "Lembra-te de
teu fim, e jamais pecarás" (Eclo 7, 40). A esse propósito, com
propriedade, Dom Próspero Gueranger recomenda: "Se quisermos perseverar no
bem, onde a graça de Deus nos restabeleceu, sejamos humildes, aceitemos a
sentença, e não consideremos a vida senão como uma caminhada mais ou menos
longa que termina no túmulo".3
"Deixai-vos
reconciliar com Deus"
Na
própria primeira leitura de hoje, incentiva- nos São Paulo a vivermos na graça
de Deus: "Em nome de Cristo, vos rogamos: reconciliai-vos com Deus!"
(II Cor, 5, 20). E com toda razão, pois o pecado nos afasta de Deus, tornando
necessária a reconciliação. A Doutrina Católica nos ensina que nem mesmo os
incomensuráveis méritos de Nossa Senhora somados aos dos Anjos e dos
Bemaventurados, e aos de todos aqueles que poderiam ter sido criados e não o
foram, seriam suficientes para reparar a ofensa de um só pecado venial. Quanto
mais em se tratando de uma falta grave!
Só
mesmo o Adorabilíssimo Sangue de Deus teria mérito infinito para redimir as
ofensas cometidas pelos homens , desde Adão e Eva, como, com a elevação de
linguagem de sempre, mostra-nos São Paulo: "Aquele que não conheceu o
pecado, Deus O fez pecado por nós, para que n'Ele nós nos tornássemos justiça
de Deus" (II Cor 5, 21). A Encarnação da Segunda Pessoa da Santíssima Trindade,
com sua Paixão e Morte na cruz, foi o meio escolhido para restituir à
humanidade transviada a plena amizade com Deus. E, por serem insuperáveis as
operações divinas, tal foi a superabundância de graça conquistada pelo
sacrifício do Calvário que, mesmo a soma de todas as possíveis faltas dos
homens jamais tornará insuficientes os méritos infinitos do Preciosíssimo
Sangue de Cristo.4
Se
Jesus não tivesse assumido sobre Si a dívida contraída por nossos primeiros
pais, por meio da oblação de seu Corpo, impossível seria nossa reconciliação
com Deus5 e teríamos para sempre fechadas as portas do Céu.
II - Amor
próprio, oração e jejum
Na
passagem do Evangelho que hoje analisamos, vemos o Divino Mestre tomar como
exemplo didático uma cena característica daqueles tempos. Sob uma perspectiva
histórica, Ele censura uma atitude corrente, sobretudo entre os fariseus. Mas,
sendo eterna a palavra de Deus, contém ela uma lição para os homens de todos os
séculos.
O principal
sorvedouro por onde se escoam os méritos
1“Ficai atentos para não praticar a vossa
justiça na frente dos homens, só para serdes vistos por eles. Caso contrário,
não recebereis a recompensa do vosso Pai que está nos céus.
Difícil
era fariseus serem alheios à hipocrisia.
Levados por um supino orgulho, voltavam-se para si mesmos a ponto de se
esquecer de Deus, fazendo suas boas obras com o intuito de angariar prestígio
"diante dos homens".
O
defeito apontado por Nosso Senhor neste versículo era comum entre eles, e
infelizmente não é raro também em nossos dias. Trasbordam das Sagradas
Escrituras conselhos sobre esse pecado capital, raiz de muitos vícios,
principalmente no livro do Eclesiastes: "Vaidade das vaidades, tudo é
vaidade" (Ecl 1, 2). É essa a preocupação do Divino Mestre.
A
respeito dos atos humanos podemos afirmar que alguns são neutros, como por
exemplo, cantar ou pintar. A substância e o mérito lhes advêm da intenção e da
finalidade com as quais os executamos. Outros são bons de per se, por estarem
ordenados pela razão a um objetivo honesto. Mas, segundo o Doutor Angélico,
"pode acontecer que um ato em si mesmo virtuoso se torne, eventualmente,
vicioso, devido a certas circunstâncias".6
Ora,
a vaidade macula muitas vezes nossos atos de virtude e nos rouba os méritos.
Pois, como sublinha o Cardeal Gomá, ela é "um perniciosíssimo inimigo das
boas obras: praticá-las com o escopo de ser visto e admirado pelos outros, é
perder a recompensa que lhes corresponde quando são feitas com reta
intenção".7
Afirmam
os mestres da vida espiritual ser a vaidade um vício tão arraigado no homem
que, por assim dizer, somente o abandona meia hora depois de sua morte. Para
vencêlo, requer-se muita oração, paciência e esforço.
Oração,
porque por meio dela se obtêm as graças para combatê-lo. Paciência e esforço,
porque devemos lutar contra ele dia e noite, impedindo-o de instalar-se em
nossa alma, como recomenda São João Crisóstomo: "É necessário prestar
muita atenção em sua entrada, do mesmo modo como alguém põe-se em guarda contra
uma fera prestes a atacar quem não está vigilante".8
Poderíamos,
então, usar uma expressão forte, mas muito verdadeira: a vaidade é o principal
sorvedouro por onde se escoam os méritos das nossas orações e boas obras. Ela é
também um veneno para a alma, porque a deixa desprovida de forças para
enfrentar as tentações e, portanto, exposta a toda espécie de fraquezas e
capitulações.
Convém
notar, de outro lado, que ao dizernos: 1“Ficai
atentos para não praticar a vossa justiça na frente dos homens, só para serdes
vistos por eles, não nos convida o Mestre a sempre nos ocultarmos para
fazer o bem, pois praticar a justiça diante dos homens pode ser motivo de
edificação para o próximo e de glória para o Criador, como sublinha o grande
Bossuet: "Ele não nos proíbe de praticar a justiça cristã em todas as oportunidades,
para edificação do próximo; pelo contrário, disse Ele: ‘Brilhe vossa luz diante
dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem vosso Pai que
está nos Céus'. [...] Edificai o próximo, por vossas ações externas, e tudo em
vós, até mesmo um piscar de olhos, seja ordenado, mas tudo se faça com
naturalidade e simplicidade, visando dar glória a Deus".9
Dar esmola
visando o aplauso
2Por isso, quando deres esmola, não toques
a trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas,
para serem elogiados pelos homens. Em verdade vos digo: eles já receberam a sua
recompensa. 3Ao contrário, quando deres esmola, que a tua mão esquerda não
saiba o que faz a tua mão direita, 4de modo que a tua esmola fique oculta. E o
teu Pai, que vê o que está oculto, te dará a recompensa.
Não tendo recebido ainda a seiva regeneradora
do Cristianismo, na humanidade daquela época imperava de tal modo
o egoísmo, que o dar esmola era prática incomum. Quem o fazia, julgava-se
merecedor do aplauso dos demais, por sua pretensa bondade. Daí ser costume dar
esmola "com muita ostentação".
10
Mais ainda: "Parece que, para excitar a generosidade, estabeleceu-se o
hábito de proclamar o nome dos doadores [...] e chegava-se mesmo a honrá-los,
oferecendo-lhes os primeiros lugares na sinagoga".11
Ora,
ensina Nosso Senhor, nesta passagem do Evangelho, que quem dá esmola para obter
a aprovação dos outros pode considerar- se bem pago pelos elogios assim obtidos.
Não lhe cabe esperar um prêmio sobrenatural, pois, conforme acentua o padre
Tuya, "Deus recompensa em justiça sobrenatural somente aquilo que se faz
sobrenaturalmente por amor a Ele, assim como repugna-Lhe esse censurável
procedimento que é a hipocrisia farisaica".12
Quem,
entretanto, dá esmola discretamente, apenas diante de Deus e por amor a Deus,
este sim, d'Ele receberá a recompensa.
O prêmio, devemos
esperá-lo apenas de Deus
3Ao contrário, quando deres esmola, que a
tua mão esquerda não saiba o que faz a tua mão direita, 4de modo que a tua
esmola fique oculta. E o teu Pai, que vê o que está oculto, te dará a
recompensa.
No
versículo anterior, Nosso Senhor recrimina aqueles que visam a vanglória na
prática da esmola; neste, censura-nos o comprazimento vaidoso ao realizarmos as
boas obras. Para combater esse defeito, precisamos esforçar-nos para não deter
nossa atenção naquilo que fazemos de bom. "Se fosse possível - comenta
Bossuet -, seria necessário esconder de vós mesmos o bem que fazeis; procurai
ocultar a vossos olhos pelo menos o seu mérito; [...] empenhai-vos na prática
da boa obra a ponto de jamais vos preocupar com o que dela vos resultará:
deixai tudo por conta de Deus, assim só Ele vos verá, vos ocultareis de vós
mesmos".13
Na
mesma linha opina o Cardeal Gomá: "Se possível fosse, até nós deveríamos
ignorar nossas esmolas. A recompensa, devemos esperá-la somente de
Deus".14
Complementando
essas afirmações, esclarece Maldonado: "Não há culpa em ser visto pelos
outros quando se faz o bem, mas sim em desejar ser visto. Também não há culpa
em querer ser visto, desde que não seja para conseguir o elogio dos homens.
‘Brilhe vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e
glorifiquem vosso Pai que está nos Céus'".15
É vã a oração de
quem visa as exterioridades
5Quando orardes, não sejais como os
hipócritas, que gostam de rezar de pé, nas sinagogas e nas esquinas das praças,
para serem vistos pelos homens. Em verdade vos digo: eles já receberam a sua
recompensa.
Naquela
época, era dever de todo varão judeu rezar três vezes por dia: de manhã,
coincidindo com o sacrifício matutino, ao meio-dia e na hora do sacrifício
vespertino. As preces eram feitas geralmente de pé, com os braços erguidos para
o Céu, como a simbolizar o dom que se esperava receber.16
As
pessoas costumavam orar no interior das próprias casas. Os fariseus, porém,
escolhiam para tal os lugares mais visíveis nas sinagogas ou nas praças
públicas. Ali gesticulavam e repetiam de cor grande número de orações, de forma
a impressionar quem por lá passava. Inútil dizer que eram vãs essas preces,
pois eles já tinham obtido o que almejavam: o aplauso dos transeuntes.
Não
caiamos, entretanto, no erro de pensar que Nosso Senhor condena toda oração
feita em público. O Divino Mestre recrimina neste versículo apenas a preocupação
com as exterioridades, tão frequente nos homens daquele tempo, e a atitude
genérica das pessoas que rezam com ostentação ou procurando unicamente o louvor
dos semelhantes.
Na nossa vida de piedade,
devemos procurar ser discretos
6Ao contrário, quando orares, entra no teu
quarto, fecha a porta, e reza ao teu Pai que está oculto. E o teu Pai, que vê o
que está escondido, te dará a recompensa.
A
essência da oração, ensina o Catecismo, é a "elevação da mente a
Deus".17 Assim, é possível a qualquer um permanecer em oração inclusive
durante os atos comuns da vida, realizando-os com o espírito voltado para o Céu.
Portanto,
para rezar não é preciso tomar a atitude espalhafatosa dos fariseus. Devemos,
pelo contrário, ser discretos nas manifestações externas de nossa piedade
particular, evitando gestos ou palavras que ponham em realce nossa própria
pessoa.
Mas
se, apesar disso, nossa devoção for notada pelos outros, não devemos nos
perturbar, tranquilizemo-nos com este ensinamento de Santo Agostinho: "Não
há pecado em ser visto pelos homens, mas sim em proceder com a finalidade de
por eles ser visto".18
O jejum
transformado em um ato de caráter social
16Quando jejuardes, não fiqueis com o rosto
triste como os hipócritas. Eles desfiguram o rosto, para que os homens vejam
que estão jejuando. Em verdade vos digo: eles já receberam a sua recompensa.
O
espírito oriental, em sua riqueza de expressividade, é propenso a atitudes
dramáticas, por vezes bonitas, mas que, nas práticas religiosas, podem
extrapolar os padrões normais. Assim acontecia com os fariseus que, ao jejuar,
colocavam cinza na cabeça, não penteavam a barba e até pintavam o rosto para
dar ideia de tristeza, ostentando uma fisionomia de tragédia.19 Tinham
transformado o jejum em um ato de caráter social, uma encenação, para convencer
os outros de sua pretendida virtude. E não receavam recorrer a todos os meios
disponíveis para atingir esse objetivo.
Uma
vez mais, Nosso Senhor os reprova por se servirem da aparência de justiça para
impressionar os outros, e afirma terem sido já recompensados pelo seu jejum.
A
propósito deste versículo, cabe uma aplicação a nós: ao fazermos algo difícil,
nunca procuremos atrair a atenção dos demais, mendigando alguns elogios. Assim
procediam muitos santos que, ao praticar severos jejuns, mortificações e
austeridades assustadoras, apresentavam-se, por meio de uma santa dissimulação,
com uma aparência exterior alegre e jovial.
Alegria e asseio
ao praticar a virtude
17Tu, porém, quando jejuares, perfuma a
cabeça e lava o rosto, 18para que os homens não vejam que tu estás jejuando,
mas somente teu Pai, que está oculto. E o teu Pai, que vê o que está escondido,
te dará a recompensa”.
Além
de tornar claro o quanto todas as nossas ações devem ser realizadas em função
de Deus, Jesus ressalta aqui a fundamental importância da limpeza para a
criatura humana. Devemos primar pelo asseio corporal como reflexo da pureza que
desejamos para nosso espírito. E aliando uma apresentação impecável às boas
ações, ajudaremos a manifestar que a verdadeira felicidade se encontra na
prática da virtude.
Quanto
ao conselho de ungir a cabeça, explica São Jerônimo: "Trata-se aqui do
costume que havia na Palestina, de se ungir a cabeça nos dias de festa". E
acrescenta que assim, "o Senhor nos ordena que nos manifestemos contentes
e alegres quando jejuarmos".20
III - A quaresma
nos convida a crescer em humildade
O
Evangelho da Quarta-Feira de Cinzas nos apresenta o espírito com que se deve
viver a Quaresma: não fazer boas obras com vistas a obter a aprovação dos
outros, não ceder ao orgulho nem à vaidade, mas procurar em tudo agradar
somente a Deus.
No
jejum, na oração ou na prática de qualquer boa obra, não se pode erigir como
fim último o benefício que daí possa nos advir, mas sim a glória d'Aquele que
nos criou. Pois tudo quanto é nosso - exceção feita das imperfeições, misérias
e pecados - pertence a Deus. E também nossos méritos, pois é o próprio Jesus
quem afirma: "Sem Mim, nada podeis fazer"! (Jo 15, 5).
Assim,
se tivermos a graça de praticar um ato bom, devemos imediatamente reportá-lo ao
Criador, restituindo-Lhe os méritos, pois estes Lhe pertencem, e não a nós.
"Quem se gloria, glorie-se no Senhor" (I Cor 1, 31), adverte-nos o
Apóstolo.
Pelo
sacerdócio comum a todos os batizados, 21 cada fiel é chamado, em determinadas
circunstâncias, a atuar como mediador das graças que vêm de Deus para benefício
dos outros, e dos louvores que deles se elevam ao trono do Altíssimo. Nessa
ocasião, cuidemos de não nos apropriarmos de nada, pois tudo quanto possuímos
de virtude, bondade ou beleza - tanto as faculdades da alma quanto as
qualidades corporais e o desenvolvimento de nosso ser físico, intelectual e
moral -, tudo isso provém de Deus.
Santa
Teresa de Jesus assim define a humildade: "Deus é a suma verdade, e a
humildade consiste em andar na verdade, pois de grande importância é não ver
coisa boa em si mesmo, mas sim a miséria e o nada".22
Reconheçamos
os benefícios que Deus nos dá e por eles rendamos-Lhe graças, não nos colocando
jamais como objeto desse louvor, julgando sermos nós a fonte de qualquer
virtude ou qualidade.
Neste
início de Quaresma, procuremos, mais ainda do que a mortificação corporal,
aceitar o convite que a Liturgia sabiamente nos faz, combatendo o amor próprio
com todas as nossas forças. "Procurai o mérito, procurai a causa, procurai
a justiça; e vede se encontrais outra coisa que não seja a graça de
Deus".23
Só
estarão à direita de Nosso Senhor Jesus Cristo, no dia do Juízo Final, aqueles
que tiverem vencido o orgulho e o egocentrismo, reconhecendo que "todo dom
precioso e toda dádiva perfeita vêm do alto" (Tg 1, 17). Pois o homem tem
diante de si apenas dois caminhos: ou amar a Deus sobre todas as coisas, até o
esquecimento de si; ou amar-se a si próprio sobre todas as coisas, até o
esquecimento de Deus.24 Não existe um terceiro amor.
Saibamos,
portanto, aproveitar este Tempo da Quaresma para crescermos na humildade e
tomarmos consciência clara da nossa limitação, uma vez que "o homem não
pode receber coisa alguma, se não lhe for dada do Céu" (Jo 3, 27).
Sirvam-nos
de estímulo estas confortadoras palavras de um célebre guia espiritual, o padre
Reginald Garrigou-Lagrange, OP: "Quanto mais nossa alma progredir na vida
divina da graça, mais ela será uma imagem viva da Santíssima Trindade. No
início de nossa existência, o egoísmo nos faz pensar especialmente em nós e a
nos amarmos, atribuindo tudo a nós.
Se,
porém, formos dóceis às inspirações do Alto, chegará o dia em que pensaremos
sobretudo, não em nós mesmos, mas em Deus, e em que, a propósito de todas as
coisas, agradáveis ou penosas, O amaremos mais do que a nós e quereremos
constantemente levar as almas para Ele".25
1 SÃO
LEÃO MAGNO. In sermone 6 de Quadragesima, 2.
2
Missale Romanum. 3.ed. Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2002, p.198.
3
GUERANGER, Prosper. L'Année liturgique. Le temps de la Septuagésime. Tours:
Maison Alfred Mame et fils, 1921, p.240.
4 Cf.
SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, III, q.48, a.2.
5 Cf.
Idem, q.1, a.2, ad 2.
6 SÃO
TOMÁS DE AQUINO.
Suma
Teológica, II-II, q.147, a.1, ad.1.
7 GOMÁ
Y TOMÁS, Isidro. El Evangelio explicado. Barcelona: Casulleras, 1930, v.II,
p.185.
8 SÃO
JOÃO CRISÓSTOMO. Homiliae in Matthaeum. Hom. 19,1.
9
BOSSUET, Jácques-Bénigne. OEuvres Choisies de Bossuet. Versailles: Lebel, 1821,
v.II, p.47-48.
10
TUYA, OP, Manuel de. Biblia comentada. Madrid: BAC, 1964, v.II, p.127.
11
Idem, ibidem.
12
Idem, p.126.
13
BOSSUET, op. cit., p.48.
14 GOMÁ
Y TOMÁS, op. cit., p.186.
15
MALDONADO, SJ, Juan de. Comentarios a los cuatro Evangelios - I Evangelio de
San Mateo. Madrid: BAC, 1950, p.282.
16 Cf.
TUYA, OP, op. cit., p.129. Muito interessante é a proposta que fazem os
professores de Salamanca, de traduzir a palavra grega hestótes por "com
pose" (em lugar de "de pé"), observando, acertadamente, que
"com pose" estaria mais de acordo com o contexto desta passagem.
17
Catecismo da Igreja Católica, n.2559.
18
SANTO AGOSTINHO. De sermone Domini, 2, 3.
19 Cf. TUYA, OP, op. cit., p.151- 152; GOMÁ Y TOMÁS,
op.cit., p.191.
20 SÃO
JERONIMO, apud SÃO TOMÁS DE AQUINO, Catena Aurea.
21 Pelo
Batismo, participamos "do sacerdócio de Cristo, de sua missão profética e
régia" (Catecismo da Igreja Católica, n.1268).
22 Cf.
SANTA TERESA DE JESUS. Las Moradas. Morada sexta, c.10, § 6-7.
23
SANTO AGOSTINHO. Sermo 185: PL 38,999. In: Liturgia das Horas I. Segunda
Leitura do dia 24 de dezembro.
24
SANTO AGOSTINHO. De Civitate Dei, XIV, 28: "Dois amores geraram duas
cidades: a terrena, o amor de si até ao desprezo de Deus; a celeste, o amor de
Deus até ao desprezo de si".
25
Garrigou -Lagrange , OP, Reginald. La Sainte Trinité et le don de soi. In: Vie
Spirituelle n.265, maio, 1942.
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