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sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Comentário ao Evangelho – XXVIII Domingo do Tempo Comum Mc 10, 17-30

Final dos comentários ao Evangelho Mc 10, 17-30

O cêntuplo já neste mundo
“Pedro começou a dizer-Lhe: ‘Eis que deixamos tudo e Te seguimos’. 29 Respondeu-lhe Jesus: ‘Em verdade vos digo: ninguém há que tenha deixado casa ou irmãos, ou irmãs, ou pai, ou mãe, ou filhos, ou terras por causa de Mim e por causa do Evangelho 30 que não receba, já neste século, cem vezes mais casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e terras, com perseguições e no século vindouro a vida eterna’”.
Talvez pelo fato de se sentirem apanhados, São Pedro, impulsivo porta-voz de todas as perplexidades dos Apóstolos, formula uma frase que, no dizer de Lagrange, “resume todo o episódio precedente, do ponto de vista dos discípulos”.17
Segundo Maldonado — o qual segue a opinião de Orígenes, São Jerônimo e São João Crisóstomo — quis Pedro, com sua afirmação, lembrar a Cristo o fato de terem os Apóstolos já cumprido anteriormente aquilo que era agora pedido ao jovem rico.18 No mesmo sentido se pronuncia Lagrange, observando que a afirmação do Príncipe dos Apóstolos foi feita “com uma certa satisfação que parece solicitar uma aprovação”.19 Mas caberia perguntar, com Maldonado: “Por que, então, duvidava? Por que não creu firmemente que também para eles havia um tesouro no Céu?”. Ao que ele próprio responde: “Talvez porque pensassem que Cristo prometia tão grande recompensa àquele jovem por causa das muitas riquezas que este devia abandonar; ora, como os Apóstolos possuíam apenas coisas de pouco valor, esperavam receber algo, sim, mas não se atreviam a esperar tanto; por isso perguntam como e quanto será”.20
No fundo da afirmação de Pedro havia uma desconfiança e uma objeção. Jesus, entretanto, não os repreende. Sendo a Bondade em essência, Ele os trata com carinho e acrescenta, ao prêmio da vida eterna no Céu, uma recompensa ainda aqui na terra.
Comentam certos autores que o Senhor, fazendo essa promessa, quis afirmar que quem por causa dEle deixar os bens desta terra, receberá em troca bens de valor infinito. Ou seja: quem por Ele abandonar aquilo que é “carnal”, receberá em troca o prêmio do bem “espiritual”.
Parece-nos, entretanto, que as palavras do versículo 30 — “já neste século” — tornam claro o caráter terreno dessa recompensa, cuja efetivação concreta na era apostólica é assim assinalada por Fillion: “Nos primórdios da Igreja, quando tão amiúde os neófitos precisavam romper os mais estreitos laços de família para se alistarem no serviço de Cristo, encontravam eles na grande comunidade cristã irmãos e irmãs, pais e mães que lhes suavizavam os padecimentos causados por uma violenta separação e enchiam de consolo seus doloridos corações”.21
Sob uma perspectiva mais atemporal, assinala o padre Didon que o Espírito divino “não só traz a todos aqueles que invisivelmente O recebem o antegozo dos bens celestiais, eternos, infinitos, mas, além disso, exalta ainda a vida deste mundo, aumenta seus recursos, harmoniza as suas energias, transfigura todos os seus atos. Entre os seres eleitos que este Espírito aproxima, formam-se laços mais íntimos, mais profundos, mais doces que entre aqueles que são parentes do mesmo sangue”.22
E o padre Fernández Truyols, referindo-se especificamente às pessoas que correspondem à vocação religiosa e fazem a entrega completa de si mesmas, comenta: “O sacrifício dos bens terrenos terá sua recompensa já nesta vida. E não só em vantagens exclusivamente espirituais, mas também em bens temporais, embora num plano superior ao puramente material. Quem se despoja de tudo para seguir Cristo Jesus receberá da Divina Providência, quiçá com acréscimo e superabundantemente, o quanto necessitar para sua subsistência. Deixa seu pai e sua mãe, e Deus dá-lhe pais e mães que o adotam como um filho muito querido. Donzelas na flor da juventude renunciam à maternidade, e Deus as faz mães não de alguns, mas de inumeráveis filhos, nos quais derramam todas as ternuras de um coração verdadeiramente maternal”.23
Uma pergunta decisiva para nossa vida espiritual
Somos todos “participantes da vocação celestial” (Hb 3, 1). Contudo, enquanto Jesus nos chama a segui-Lo a caminho do Reino de Deus, as nossas tendências desordenadas em consequência do pecado original nos arrastam para aquilo que é inferior.
Exemplo paradigmático dessa dicotomia é o episódio do Evangelho que acabamos de comentar. O jovem rico era bom. Praticava os Mandamentos a ponto de Nosso Senhor o fitar com amor. Quando, porém, o Mestre o convidou a ser um dos Seus discípulos, afastou-se triste e abatido, pois sempre que alguém recusa um convite da graça, é pervadido pela tristeza e pelo remorso. O padre Duquesne descreve com notável clareza essa lamentável situação de alma: “Ninguém renuncia à sua vocação sem uma dor de coração, sem uma secreta tristeza que increpa sua covardia, tristeza que difunde amargura ao longo de todo o curso da vida e aumenta na hora da morte”.24
A liturgia deste domingo nos coloca, assim, diante de uma pergunta decisiva para nossa vida espiritual: a que distância se encontra nossa alma da atitude do moço rico? Se Cristo nos convidasse hoje a segui-Lo, como Lhe responderíamos? Bradaríamos com alegria, como Samuel: “Præsto sum” (I Sm 3, 16) – “Eis-me aqui”? Ou, tomados pela tristeza, recusaríamos o convite de nosso Salvador?
Quando chegar esse chamado — e ele pode vir em hora inesperada —, seremos muito mais capazes de dar resposta afirmativa se nos tivermos preparado previamente. Para isso, é necessário que, em todas as circunstâncias da vida, nosso coração esteja à procura do Divino Mestre, combatendo o apego aos bens terrenos, aumentando sem cessar o fogo do amor a Deus e fazendo a pergunta de São Paulo no caminho de Damasco: “Senhor, que quereis que eu faça?” (At 9, 6).
A isto nos incita o Príncipe dos Apóstolos: “Irmãos, cuidai cada vez mais em assegurar a vossa vocação e eleição. Procedendo deste modo, não tropeçareis jamais. Assim vos será aberta largamente a entrada no Reino eterno de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo” (II Pd 1, 10-11).
1AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica. III q. 24, a. 1, resp. “A predestinação propriamente dita é a eterna pré-ordenação divina com relação às coisas que, pela graça de Deus, devem realizar-se no tempo. Ora, pela graça da união, Deus fez com que, no tempo, o homem fosse Deus e Deus fosse homem. E não se pode afirmar que Deus não tenha pré-ordenado desde a eternidade que Ele faria isso no tempo, porque daí se seguiria que algo de novo poderia acontecer para o entendimento divino. Por isso é preciso afirmar que a união das naturezas na pessoa de Cristo entra na predestinação eterna de Deus”.
2JOÃO PAULO II. Encíclica Redemptoris Mater, n. 8. “No mistério de Cristo, Maria está presente já ‘antes da criação do mundo’, como aquela a quem o Pai ‘escolheu’ para Mãe do seu Filho na Encarnação — e, conjuntamente ao Pai, escolheu-a também o Filho, confiando-a eternamente ao Espírito de santidade. Maria está unida a Cristo, de um modo absolutamente especial e excepcional; e é amada neste ‘Filho muito amado’ desde toda a eternidade, neste Filho consubstancial ao Pai, no qual se concentra toda ‘a magnificência da graça’”.
3DIDON, OP, Pe. Henri. Jesus Christo. Porto: Chardron, 1895, p. 381.
4LAGRANGE, OP, Pe. M.J. Évangile selon Saint Marc. Paris: Lecoffre, 1929, p. 264.
5FILLION, Louis-Claude. Vida de Nuestro Señor Jesucristo. Madrid: Rialp, v. 2, p. 429.
6DUQUESNE. L’Évangile médité. Paris-Lyon: Perisse Frères, 1849, p. 266.
7SAN EFRÉN DE NISIBE, Comentario al Diatessaron, 15, 210 apud ODEN, Thomas C. e HALL, Cristopher A. La Biblia comentada por los Padres de la Iglesia – Nuevo Testamento 2 San Marcos. Madrid: Ciudad Nueva, 2000, p. 199.
8DUQUESNE. Op. cit., p. 267.
9FILLION. Op. cit., p. 431.
10MALDONADO, SJ, Pe. Juan de. Comentarios a los cuatro evangelios – I Evangelio d
11LAGRANGE, OP. Op. cit., p. 266.
12DUQUESNE. Op. cit., p. 273.
13FILLION. Op. cit., p. 431.
14CLEMENTE DE ALEJANDRÍA. Quis dives salvetur? c. XXVII.e San Mateo. Madrid: BAC, 1950, p. 692.
15CESÁREO DE ARLES, Sermo 153, 156 apud ODEN e HALL. Op. cit., p. 202.
16MALDONADO, SJ. Op. cit., p. 695.
17LAGRANGE, OP. Op. cit., p. 271.
18Cf. MALDONADO, SJ. Op. cit., p. 695.
19LAGRANGE, OP. Op. cit., p. 271.
20MALDONADO, SJ. Op. cit., p. 695.
21FILLION. Op. cit., p. 433.
22DIDON, OP. Op. cit., p. 385.
23FERNÁNDEZ TRUYOLS, SJ, Andrés. Vida de Nuestro Señor Jesucristo. Madrid: BAC, 1954, p. 482.
24DUQUESNE. Op. cit., p. 270-271.

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Comentário ao Evangelho – XXVIII Domingo do Tempo Comum Mc 10, 17-30

Continuação dos comentários ao Evangelho Mc 10, 17-30
A causa mais profunda da recusa
22 “Ele entristeceu-se com estas palavras e foi-se todo abatido, porque possuía muitos bens”.
Entretanto, o mesmo que chegara correndo e se ajoelhara sôfrego diante de Nosso Senhor, retirou-se triste e “abatido”, porque “possuía muitos bens” e preferiu conservá-los a seguir sua vocação, desprezando o “tesouro no Céu” que o próprio Messias lhe oferecera. Fato inédito, pois os Evangelistas não narram recusa semelhante a esta.
Não pensemos, entretanto, ter sido o apego às riquezas a principal causa de sua defecção. O jovem rico praticara os Mandamentos desde sua infância, mas não na perfeição. Negligenciara, sobretudo, o primeiro e mais fundamental: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todas as tuas forças” (Dt 6, 5). Como bem observa o conhecido biblista M. J. Lagrange, os preceitos mencionados a ele por Nosso Senhor “bem podem ser observados sem heroísmo. Se Jesus lhe tivesse perguntado se amava a Deus de todo o coração, teria ficado bem mais incomodado”.11
O grande pecado desse homem não foi, portanto, de avareza, mas sim de orgulho. Ao ser convidado a seguir Nosso Senhor e sentir em si a própria debilidade e insuficiência, deveria ter dito: “Senhor, não tenho forças para seguir-vos. Tenho apego a minhas riquezas e, sobretudo, faltame amor exclusivo por Vós”.
 Perante esse ato de humildade, Jesus lhe teria dado graças superabundantes para corresponder ao chamado. E bem poderíamos ter hoje no Calendário Romano uma festa dedicada ao jovem rico, que se tornou pobre para adquirir uma riqueza muito maior: o décimo terceiro Apóstolo!
Entretanto, faltou-lhe reconhecer que, se praticava os Mandamentos, não era por suas próprias forças, mas pela graça divina. E que, portanto, sem o auxílio da graça, não conseguiria desprezar as riquezas e seguir Jesus.
Só os pobres de espírito entrarão no reino dos céus
23“E, olhando Jesus em derredor, disse a Seus discípulos: ‘Quão dificilmente entrarão no Reino de Deus os ricos!’. 24 Os discípulos ficaram assombrados com Suas palavras. Mas Jesus replicou: ‘Filhinhos, quão difícil é entrarem no Reino de Deus os que põem a sua confiança nas riquezas! 25 É mais fácil passar o camelo pelo buraco de uma agulha do que entrar o rico no Reino de Deus’”.
Neste último versículo, Nosso Senhor Se serve de um provérbio utilizado pelos judeus para expressar algo extremamente difícil e quase impossível. Recorre propositalmente a essa comparação na aparência exagerada — “é mais fácil passar o camelo pelo buraco de uma agulha...” — para mostrar a gravidade da “desordem própria dessa paixão, consistente em apegar o coração à terra, endurecê-lo no que diz respeito a Deus e ao próximo, torná-lo insensível às coisas do Céu”.12
Para bem analisar essas palavras de Jesus, é preciso começar por evitar a interpretação errada, segundo a qual todo rico estaria condenado e todo pobre, ao contrário, estaria no caminho certo para a salvação. Pois o Mestre não se refere aqui à riqueza material, mas sim ao desvio que leva o homem a depositar sua confiança nos bens terrenos, antepondo-os aos bens superiores.
Sobre este particular, esclarece Fillion: “Não se trata aqui dos ricos enquanto tais, pois a posse dos bens temporais não é, de si, um estado de pecado nem causa de condenação, embora ofereça sérios perigos. Jesus não exclui de Seu Reino senão aqueles ricos que se apegam às suas riquezas e nelas põem — digamos assim — sua finalidade e todo o seu afeto”.13
Como valer-se da riqueza para alcançar a vida eterna
A finalidade última do homem está no Céu. O dinheiro e as riquezas podem ser apenas meios — efêmeros, instáveis e dispensáveis — para alcançar esse supremo fim. Assim, é legítimo acumular bens e deles usufruir, desde que sejam adquiridos de forma lícita e seu uso esteja subordinado à glória de Deus.
Nesta linha se insere o comentário feito por São Clemente de Alexandria a esta passagem do Evangelho: “A parábola ensina aos ricos que não devem descuidar-se de sua salvação eterna, como se de antemão dela se desesperassem, não que seja preciso jogar ao mar a riqueza, nem condená-la como insidiosa e inimiga da vida eterna. O que importa é saber qual a maneira de valer-se dela para possuir a vida eterna”.14
Com efeito, quantos reis, príncipes ou simples pessoas abastadas que, administrando o que tinham com inteiro desprendimento, encontramse hoje no Céu como atesta o catálogo dos santos?
Por outro lado, quantos pobres há que se recusam a praticar a virtude! Bem fariam estes em ouvir a conclamação de São Cesário de Arles: “Ricos e pobres, escutai o que diz Cristo. Falo ao povo de Deus. Em vossa maioria, sois pobres ou deveis aprender a sê-lo. No entanto, escutai, pois podemos inclusive nos vangloriarmos de ser pobres; tende cuidado com a soberba, não aconteça que os ricos humildes vos superem; acautelai-vos contra a impiedade, não aconteça que os ricos piedosos vos deixem para trás”.15
O problema não está, portanto, na quantidade de bens materiais possuídos por alguém, mas no uso que deles se faz. Para poder entrar no Reino dos Céus, é preciso não ter apego algum a eles. A pobreza de espírito consiste em nos compenetrarmos que somos criaturas contingentes, que dependem de Deus. Pode-se lutar para se ter recursos, mas com vistas a espalhar o Reino de Deus, e fazer com que Ele reine de fato em todos os corações.
Por nosso simples esforço, jamais conquistaremos o Céu
26“Eles ainda mais se admiravam, dizendo a si próprios: ‘Quem pode então salvar-se?’. 27 Olhando Jesus para eles, disse: ‘Aos homens isto é impossível, mas não a Deus; pois a Deus tudo é possível’”.
Não é de estranhar o espanto dos discípulos perante a força da comparação usada por Nosso Senhor. Mas essa mesma perplexidade os leva a considerar melhor a própria contingência e a fixar no espírito o duplo ensinamento do Divino Mestre: pelos seus simples esforços, o homem jamais conseguirá conquistar o Céu; mas aquilo que para o homem é impossível, não o é para Deus.
Deus é onipotente, ama-nos desde toda a eternidade e está desejoso de abrir-nos as portas do Céu. Para nele entrar, é preciso apenas que sejamos humildes e reconheçamos nossas misérias, pedindo o auxílio divino, sem desanimar.
A salvação, como a própria vida, é uma dádiva de Deus. É Sua graça que nos dá forças para praticar os Mandamentos e nos torna dignos de entrar no Seu Reino. Não façamos, pois, como o moço rico, mas confiemos humildemente na Sua bondade, como ensina São Paulo na segunda leitura deste domingo: “Aproximemo-nos confiadamente do trono da graça, a fim de alcançar misericórdia e achar a graça de um auxílio oportuno” (Hb 4, 16).
Ainda sobre estes dois versículos, convém notar, com Maldonado, que a pergunta “quem pode então salvar-se?”, os Apóstolos a fizeram “a si próprios”, isto é, somente eles puderam ouvi-la. Cristo, entretanto, olhou para eles e deu-lhes a resposta, mostrando assim que “lia seus pensamentos e ouvia suas conversas, por mais reservadas que fossem”.16
Continua no próximo post

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Comentário ao Evangelho – XXVIII Domingo do Tempo Comum Mc 10, 17-30

Continuação do post anterior 

O episódio do jovem rico
São Marcos, tão sintético em outras passagens, mostra-se minucioso ao narrar o episódio do jovem rico. Já o primeiro versículo contém interessantes pormenores dignos de especial atenção.
17“Tendo Ele saído para Se pôr a caminho, veio alguém correndo e, dobrando os joelhos diante dEle, suplicou-Lhe: ‘Bom Mestre, que farei para alcançar a vida eterna?’”.
Procura sôfrega do caminho da salvação
Pelo fato de vir “correndo” ao encontro de Nosso Senhor, podemos supor o quanto esse “alguém” estava sôfrego de obter aquilo que ia pedir. Certamente ouvira a pregação de Jesus e, sob o impulso de uma graça sensível, deixou-se arrebatar por Seus divinos ensinamentos. Almejando, de um lado, alcançar a vida eterna e, de outro, não tendo a certeza de merecê-la, sentiu no fundo da alma ser Jesus capaz de mostrar-lhe com segurança o caminho da salvação.
A própria pergunta feita por ele ao Salvador, fala neste sentido, pois, como aponta Didon, ela “revelava uma natureza superior e uma alma sincera. As doutrinas da escola sobre o mérito das obras legais, sobre a santidade pela virtude dos ritos, não satisfaziam sua consciência; certamente ouviu o Mestre falar da vida eterna com uma acentuação que o tinha penetrado”.3
Daí o fato de ele correr até Jesus, ajoelhar-se e chamá-Lo de “Bom Mestre”, um qualificativo alheio aos costumes e gentilezas correntes na época. “Não se conhece exemplo de que alguém tenha chamado assim um rabino”, comenta Lagrange, acrescentando que essa saudação “ultrapassava os hábitos de cortesia então vigentes”.4
É também interessante destacar o teor da pergunta, tão diferente dos temas sobre os quais se conversa hoje em dia. Naquela época, as pessoas se preocupavam em saber como ganhar o Reino dos Céus. E nos dias de hoje?...
Sobre a pressa do jovem, observa Fillion: “Corria para não perder aquela ocasião de fazer ao Salvador uma pergunta que muito o preocupava”.5 Duquesne elogia essa atitude e a propõe como exemplo: “É com este fervor de espírito e esta rapidez de corpo, esta presteza e esta alegria espiritual que se deve ir a Jesus”.6
Jesus o ama e faz-lhe um convite: “Vem e segue-Me”
18“Jesus disse-lhe: ‘Por que Me chamas bom? Só Deus é bom’”.
Esta resposta causa perplexidade à primeira vista, mas logo se compreendem as divinas razões que levaram Nosso Senhor a dá-la.
Não visava o Messias repreendê-lo, mas sim chamar sua atenção para esta realidade: só Deus é a Bondade e, portanto, bondade absoluta só há em Deus. Santo Efrém ensina a este respeito que Cristo “recusa o título de ‘bom’, dado por um homem, para indicar que Ele tinha essa bondade adquirida do Pai, por natureza e geração, que não a tinha simplesmente de nome”.7
Ao chamá-Lo de “Bom Mestre”, o jovem rico mostrava ver principalmente o lado humano do Messias: sua inteligência, capacidade e sabedoria naturais. Ora, Jesus quer que ele O considere não só como homem, mas sobretudo como Deus. E por isso o interpela: “Por que Me chamas bom?”.
Com essa pergunta, o convida a dar um passo a mais, como quem diz: “Estás vendo só o meu lado humano, contempla também o divino. No fundo, sem te dar conta, estás Me atribuindo uma divindade que de fato tenho, porque sou Deus. Mas toma consciência disto, compreende esta realidade com clareza e, compreendendo, ama-a ainda mais”.
Este convite é suave e altamente didático, como afirma o padre Duquesne: “Jesus apenas insinua-lhe que ele não tem a Seu respeito a noção inteira que deveria ter; e, dizendo-lhe que tal título convém somente a Deus, leva-o a entender que deveria considerar como Filho de Deus Aquele a quem ele o dá, e não como um mestre simplesmente humano”.8
19“‘Conheces os Mandamentos: não mates; não cometas adultério; não furtes; não digas falso testemunho; não cometas fraudes; honra pai e mãe’. 20 Ele respondeu-lhe: ‘Mestre, tudo isto tenho observado desde a minha mocidade’”.
Nova mostra da divindade de Jesus nos dá este versículo. Ele não pergunta ao jovem se conhece os Mandamentos, mas o afirma com certeza. A quem agora via com Seus olhos humanos, já conhecia, enquanto Deus, desde toda a eternidade. E sabia que ele praticava a virtude, observando a Lei.
21 “Jesus fixou nele o olhar, amou-o e disse-lhe: ‘Uma só coisa te falta; vai, vende tudo o que tens e dá-o aos pobres e terás um tesouro no Céu. Depois, vem e segue-Me’”.
Cristo olhou-o com amor e fez-lhe o mesmo convite que fizera aos Apóstolos: “Vem e segueMe”. Comenta Fillion: “Portanto, estava Jesus disposto a admitir esse jovem entre os Seus discípulos íntimos, com os quais, seguindo-O por toda parte e em companhia do melhor e mais santo dos mestres, poderia adquirir sem tardança a perfeição pela qual conseguiria facilmente o Céu”.9 E Maldonado corrobora essa opinião: “Que entende Cristo por ‘vem e segue-Me’? A palavra ‘vem’ parece exprimir, mais do que a simples imitação, o seguimento material: convida-o a fazer parte de seus Apóstolos e familiares”.10
Àquele homem, que praticava os Mandamentos, havia Deus reservado desde toda a eternidade a altíssima vocação de seguir Jesus. Para cumpri-la, era-lhe pedida uma renúncia: “Vai, vende tudo o que tens e dá-o aos pobres”; e oferecida uma recompensa infinita: “terás um tesouro no Céu”. Cabia-lhe responder a esse chamado com inteira alegria e prontidão, como haviam feito Simão, Levi e tantos outros.
Continua no próximo post.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Comentário ao Evangelho – XXVIII Domingo do Tempo Comum Mc 10, 17-30


“Tendo Ele saído para Se pôr a caminho, veio alguém correndo e, dobrando os joelhos diante d'Ele, suplicou-Lhe: ‘Bom Mestre, que farei para alcançar a vida eterna?’. 18 Jesus disse-lhe: ‘Por que Me chamas bom? Só Deus é bom. 19 Conheces os Mandamentos: não mates; não cometas adultério; não furtes; não digas falso testemunho; não cometas fraudes; honra pai e mãe’. 20 Ele respondeu-Lhe: ‘Mestre, tudo isto tenho observado desde a minha mocidade’. 21 Jesus fixou nele o olhar, amou-o e disse-lhe: ‘Uma só coisa te falta; vai, vende tudo o que tens e dá-o aos pobres e terás um tesouro no Céu. Depois, vem e segue-Me’. 22 Ele entristeceu-se com estas palavras e foi-se todo abatido, porque possuía muitos bens. 23 E, olhando Jesus em derredor, disse a seus discípulos: ‘Quão dificilmente entrarão no Reino de Deus os ricos!’. 24 Os discípulos ficaram assombrados com Suas palavras. Mas Jesus replicou: ‘Filhinhos, quão difícil é entrarem no Reino de Deus os que põem a sua confiança nas riquezas! 25 É mais fácil passar o camelo pelo buraco de uma agulha do que entrar o rico no Reino de Deus’. 26 Eles ainda mais se admiravam, dizendo a si próprios: ‘Quem pode então salvar-se?’. 27 Olhando Jesus para eles, disse: ‘Aos homens isto é impossível, mas não a Deus; pois a Deus tudo é possível’. 28 Pedro começou a dizer-Lhe: ‘Eis que deixamos tudo e Te seguimos’. 29 Respondeu-lhe Jesus. ‘Em verdade vos digo: ninguém há que tenha deixado casa ou irmãos, ou irmãs, ou pai, ou mãe, ou filhos, ou terras por causa de Mim e por causa do Evangelho 30 que não receba, já neste século, cem vezes mais casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e terras, com perseguições e no século vindouro a vida eterna’” (Mc 10, 17-30).

Fomos criados com uma vocação

Desde toda a eternidade, esteve prevista na mente divina a criação, no tempo, de Nosso Senhor Jesus Cristo, enquanto homem, e de Sua Mãe, Maria Santíssima.
Mas Deus não concebeu ambos isoladamente. Queria Ele que, à maneira de uma corte, houvesse quem os servisse. Todos nós estávamos incluídos nesse ato de pensamento e fomos amados por Ele como foi revelado a Jeremias: “Eu amo-te com eterno amor, e por isso a ti estendi o meu favor” (Jr 31, 3).
Nosso Senhor é o modelo tomado por Deus para a nossa criação, é Ele a nossa causa exemplar. Havendo de tornar possível, por Seus méritos, a nossa existência enquanto filhos de Deus, pois “todos nós recebemos da sua plenitude graça sobre graça” (Jo 1, 16), constitui-Se em nossa causa eficiente. E, por termos sido criados para servi-Lo e adorá-Lo, é também a nossa causa final.
Fomos, em suma, concebidos em, por e para Jesus, pois “nEle foram criadas todas as coisas nos Céus e na terra, as criaturas visíveis e as invisíveis. Tronos, dominações, principados, potestades: tudo foi criado por Ele e para Ele” (Cl 1, 16).
Isto configura um chamado feito a nós desde todo o sempre, tal como afirma o Apóstolo: “Deus nos salvou e chamou para a santidade, não em atenção às nossas obras, mas em virtude do seu desígnio, da graça que desde a eternidade nos destinou em Cristo Jesus” (II Tm 1, 9). Deus nos convida a fazer parte da Santa Igreja, e nos chama à santidade. Mas, junto com esse apelo genérico, somos chamados a exercer uma função específica dentro do Corpo Místico de Cristo. É uma missão que cada um tem particularmente e não será dada a mais ninguém.
O Novo Testamento nos apresenta inúmeros exemplos no chamado feito pelo próprio Jesus aos escolhidos para serem Seus Apóstolos: vê Mateus na coletoria de impostos e lhe diz: “Segue-Me” (Mt 9, 9); no caminho de Damasco, São Paulo é lançado por terra e, ao ouvir a voz que o interpelava, responde: “Senhor, que quereis que eu faça?” (At 9, 6); cheio de pasmo após a pesca milagrosa, Pedro se prosterna diante do Mestre, exclamando: “Retira-Te de mim, Senhor, porque sou um homem pecador”, e escuta a divina promessa: “Doravante, serás pescador de homens” (cf. Lc 5, 8-10).
Tal como Mateus, Paulo ou Pedro, que tudo abandonaram imediatamente para seguir o Mestre, precisamos responder com prontidão, generosidade e alegria ao chamado que Jesus faz a cada um de nós.
Este é o ensinamento contido no Evangelho do 28º Domingo do Tempo Comum, como veremos nos próximos posts.