-->

sábado, 29 de outubro de 2011

A morte, fim de todas as quimeras

26Não os temais, pois, porque nada há encoberto que não se venha a descobrir, nem oculto que não se venha a saber. 27

Vivemos nesta terra em estado de prova e de passagem. Tão precária é nossa situação que nos enganamos facilmente mesmo a propósito do tempo, vivendo como se nossa permanência neste mundo fosse eterna. Não é raro cruzar pela nossa mente aquele sonho da possível descoberta do elixir da longa vida, ou do elixir da própria imortalidade. Muitos prefeririam estender ao infinito os limites de sua existência terrena, transformando-a numa espécie de Limbo perpétuo, quer dizer, um tipo de vida no qual pudessem ter felicidade natural, sem nenhum vôo de espírito. Esses participam, consciente ou inconscientemente, de um culto implícito que poderia muito bem ser rotulado de limbolatria.
A morte, com sua implacabilidade e trágica realidade, põe fim a essas quimeras, e retira de nossos olhos os óculos que falseiam a visão do universo criado e do relacionamento de cada um de nós com o próximo e com Deus. Ademais, a morte traz consigo o Juízo divino: “Nada há encoberto que não se venha a descobrir” (v. 26).
Aqueles de nós que se entregam ao pecado, fazem-no muitas vezes às escondidas, longe da vista alheia, por causa do sentimento de vergonha, esquecendo-se de que não podem se esconder da vista de Deus, pois n’Ele fomos criados, n’Ele existimos e n’Ele nos movemos, segundo ensina São Paulo (2). Nada escapa à lembrança de Deus. Pensamentos, desejos, palavras, silêncios, atos e omissões de cada um de nós, segundo por segundo, são conhecidos por Deus: “Até os próprios cabelos de vossa cabeça estão todos contados” (v. 30).
É sobre isso que Jesus nos fala no Evangelho de hoje: tudo quanto houver de mais oculto será descoberto, e todos conhecerão tudo de todos.
Dois serão os momentos da verdade: o do Juízo Particular e o do Final. Não haverá contradição entre um e outro, nem sequer será um a revisão do outro, mas, sim, uma confirmação. Nossas ilusões, como também nossas faltas ou virtudes, sempre têm não só uma repercussão social, mas até mesmo efeitos correlacionados com a ordem do universo. Desse modo, ao homem como indivíduo cabe um juízo particular e, enquanto membro de uma sociedade, um juízo universal.
O Juízo Particular
Não estaremos a sós nem sequer no Juízo Particular, pois Deus, a Verdade em sua essência, estará presente. Nessa ocasião reveremos todas as nossas impressões, apreços, ânsias, raciocínios, etc., pelo prisma da Verdade, que se apresentará majestosa diante de nós. Nessa hora, de que nos adiantarão as honras, as riquezas, os prazeres, os romantismos e coisas do gênero? Terrível será comparecer a esse Juízo em estado de pecado, sem o devido arrependimento e sem ter recebido o Sacramento da Reconciliação. Terrível, porque não haverá mais tempo para implorar perdão.
Que Deus não nos permita cair em tal situação. Quem tivesse essa desventura, veria até mesmo os méritos da Paixão e Morte de Cristo — entretanto colocados à nossa disposição para salvar-nos — levantando-se contra si para condenar. O bom e misericordioso Jesus, todo feito de suavidade, estaria a invocar o seu Preciosíssimo Sangue, derramado todo na Cruz, como motivo de condenação, para lançar o infeliz imediatamente no inferno.
Aqueles que um dia clamaram: “Caia o seu sangue sobre nós e sobre nossos filhos” (Mt 27, 25), assistiram anos depois à tremenda catástrofe da destruição de sua amada Jerusalém. Castigo análogo e infinito se precipitaria sobre nós se caminhássemos ao encontro de Jesus sem estarmos devidamente em ordem. Ah! se tivéssemos sempre claro aos nossos olhos que, com nossos pecados, preparamos o dia da cólera divina, seríamos santos. Quanto mais pecamos, mais ira acumulamos sobre nossa cabeça e mais implacável será nosso Juízo. O versículo 26 do Evangelho de hoje nos traz uma advertência no sentido de jamais cometermos pecado, e, se por desgraça cairmos, de procurarmos sem tardança a reconciliação com Deus. Hodie si vocem eius audieritis, nolite obdurare corda vestra — “Se hoje ouvirdes a sua voz, não endureçais os vossos corações” (Hb 3, 15).
O Juízo Final
Sob o prisma da repercussão social do pecado, é indispensável até mesmo para a plenitude do triunfo de Cristo a realização de um juízo universal.
Jesus fez-se Homem com uma doçura insuperável; é impossível haver maior manifestação de humildade, pobreza e misericórdia do que a d’Ele. Seu desejo de derramar todo o seu sangue para salvar a humanidade, elevá-la a um plano divino e, assim, abrir-lhe um caminho seguro, feliz e santo para a eternidade, realizou-se com perfeição.
Indo em sentido oposto, a maior parte da humanidade pisou sobre esse sangue, preferindo as vias do pecado e dos prazeres ilícitos. Por isso, o valor infinito dos méritos do sacrifício do Calvário impõe a realização de um juízo universal, a fim de “recapitular todas as coisas em Cristo” (Ef 1, 10). Se Cristo foi publicamente ofendido, é indispensável que também de maneira pública sejam proclamados seu poder, honra e glória. Antes de se iniciar uma nova “era histórica” — a da eternidade, na qual todos viverão ressurrectos, em corpo e alma, alguns na glória, outros condenados ao inferno — será necessário ficar claro para todos o quanto o livre arbítrio não significa a liberdade de praticar o mal, de pensar e abraçar o erro e de cultuar o feio. Todos devem ver também com toda a evidência que o prêmio dos bons vem do fato de submeterem sua vontade a Cristo, motivo pelo qual são chamados a reinar com Ele nos Céus.
O Juízo Final tem, ademais, um importante papel no tocante à vida social, pois facilmente nos equivocamos julgando que a morte encerra de maneira cabal a presença e a ação do homem sobre a terra. Tanto uma como a outra continuam de um modo indireto.
Assim, não é raro acontecer que a boa ou má fama de um falecido contrária à verdade, permaneça na lembrança de eras históricas inteiras. Às vezes, filhos maus de pais bons tornam equívoca a interpretação dos atos de seus progenitores, e vice-versa. Por mais que haja um violento corte entre a vida no tempo e a passagem para a eternidade, não poucas vezes os efeitos das obras boas ou más realizadas aqui, continuam a repercutir por longos anos.

Continua no próximo post com um exemplo

Nenhum comentário: