Continuação dos comentários ao Evangelho da Solenidade de Jesus Cristo, Rei do Universo - (Jo 18,33b-37)
III - JESUS DECLARA SUA REALEZA
Na primeira leitura (Dn 7,
13-14) desta Liturgia, a visão de Daniel mostra-nos Nosso Senhor Jesus Cristo
na manifestação de sua grandeza régia: “Foram-Lhe dados poder, glória e
realeza, e todos os povos, nações e línguas O serviam” (Dn 7, 14a).
Com efeito, Ele é o Rei glorioso,
coroado na eternidade e detentor da autoridade sobre toda a criação. Mas,
paradoxalmente, o Evangelho de São João apresenta a figura deste Rei em
situação de humilhação, com as mãos amarradas, prestes a ser flagelado, coroado
de espinhos, condenado por seu próprio povo, morto e crucificado. E, então,
inicia-se um dos mais belos diálogos de toda a Escritura.
O governador interroga o Todo-Poderoso
Naquele tempo, 33b pilatos chamou Jesus e perguntou-lhe: “Tu és o Rei
dos judeus?”
Pela pergunta, percebe-se que o
governador já ouvira as denúncias dos membros do Sinédrio contra o Divino
Prisioneiro (cf. Mc 15, 3; Jo 18, 28-30) e desejava conhecer suas intenções.
Pretenderia Ele subir ao trono de Israel e sublevar os judeus contra o domínio
de Roma (cf. Lc 23, 1-2)? Ter-Se-ia arrogado, de fato, o título de Messias,
quando foi aclamado pela multidão como Filho de Davi, ao entrar em Jerusalém
poucos dias antes (cf. Mc 11, 9-10)? Contudo, o romano via diante de si um
Varão tão respeitável, virtuoso, equilibrado e submisso! Tratava-se realmente
de um revolucionário? Jesus respondeu: Estás dizendo Isto por ti mesmo, ou
outros te disseram isto de Mim?”
A interrogação com a qual Jesus
replica à de Pilatos é cheia de simbolismo. Este último se coloca como senhor
absoluto em relação a Ele, uma vez que vai julgá-Lo. Ora, Jesus é o
Todo-Poderoso e, se quisesse, faria seu interlocutor voltar ao nada, ou
inclusive poderia apagá-lo da memória dos homens. Ele sabe que os judeus O
caluniaram e que o governador age pressionado por eles, temendo ser prejudicado
pelas suas intrigas junto ao imperador. Então responde-lhe calmamente, pondo-o
diante do problema, como a admoestá-lo: “Isto vendo teu interior ou tens medo
das calúnias que farão contra ti?”.
“Com estas palavras” — comenta
Teofilato — “Jesus insinua que Pilatos é um juiz parcial, como se dissesse: ‘Se
dizes isto por ti mesmo, apresenta os sinais de minha rebelião; se, todavia, ouviste
isto de outros, abre um inquérito ordinário”.4 E Santo Agostinho ressalta:
“Jesus conhecia muito bem tanto a pergunta quanto a resposta que Lhe daria
Pilatos. Quis, porém, que esta fosse expressa em palavras, não para que Ele a
conhecesse, mas para que ficasse escrito o que desejava que nós soubéssemos”.
Jesus, sinal de contradição
35 Pilatos falou: “Por acaso, sou judeu? O teu povo e os sumos sacerdotes
Te entregaram a mim. Que fizeste?”
O governador ainda vai
argumentar, alegando não estar concernido à prisão de Nosso Senhor, que a ele
foi entregue pelos próprios judeus. Era esta a ocasião escolhida por Jesus para
Se declarar Rei, apesar de estar em circunstâncias que sugeriam o oposto. Ele
havia entrado em Jerusalém aclamado como Rei, mas tal aclamação correspondia a
uma concepção baixa, naturalista e terrena da realeza. A nação queria carregar
em triunfo um potentado deste mundo, um messias político, o qual, auxiliado por
milagres, deveria obter-lhe uma salvação estritamente humana: a eliminação dos
impostos e a supremacia sobre os romanos.
Em relação a esta mentalidade
materialista, Nosso Senhor será pedra de escândalo e sinal de contradição (cf.
Lc 2, 34).
Diante de Pilatos, representante
do poder supremo da época, Ele dará de Si mesmo e de sua autoridade régia uma
visão muito diferente — a única válida —, toda sobrenatural, que será odiada e
perseguida por não poucos no decurso de toda a História, mas permanecerá como
signo do Cristianismo até o fim dos tempos.
A onipotência da verdade
36 Jesus respondeu: “O meu Reino não é deste mundo. Se o meu Reino fosse
deste mundo, os meus guardas lutariam para que Eu não fosse entregue aos
judeus. Mas o meu Reino não é daqui”.
Poderia alguém talvez concluir
que, com esta revelação, Jesus havia renunciado ao seu domínio sobre o mundo.
Carece de sentido tal afirmação sendo Ele o Onipotente, a quem está sujeito o
universo inteiro. Ao contrário, quer lembrar que Ele é antes de tudo o Homem-Deus,
como explica São Tomás, mencionando o pensamento de São João Crisóstomo sobre
esta passagem do Evangelho: “Tu perguntas se sou Rei e Eu te digo que sim. Mas
o sou por um poder divino, pois para isso nasci do Pai, de uma natividade
eterna, como Deus de Deus, bem como Rei de Rei”.6
Portanto, o verdadeiro alcance
da sua declaração é este: “Meu Reino não é como os governos deste mundo, nem de
acordo com as máximas dele”. Mais ainda: como Autor da graça e, de maneira
especial, pela Redenção que irá operar, Jesus é o Rei dos corações. Ele veio
oferecer aos homens a filiação sobre natural, a qual não consistirá numa adoção
segundo o conceito humano, mas na participação real em sua natureza divina,
como dirá mais tarde o Apóstolo São João: “Considerai com que amor nos amou o
Pai, para que sejamos chamados filhos de Deus. E nós o somos de fato” (I Jo 3,
1). Sim, filhos de Deus, herdeiros do trono celeste e príncipes de uma casa
eterna!
Algo entendeu Pilatos do
significado da resposta de Jesus.
Inseguro e assustado, talvez tenha
recebido uma graça dada pelo próprio Salvador. Então manifestou a inquietação
que o invadia diante daquele majestoso e incomparável Acusado, que Se proclamava
Rei da eternidade.
Pilatos disse a Jesus: “Então, Tu
és Rei?”
Mais uma vez Jesus não negará a
sua realeza, e sobre ela fará a última e mais sublime das afirmações: o
Unigênito do Pai não veio governar pela força, mas pela onipotência da verdade.
Ele trazia a explicação e o
sentido de toda a ordem da criação, iniciando assim o “Reino da verdade e da
vida, Reino da santidade e da graça”.7
37Jesus respondeu: “Tu o dizes: Eu sou Rei. Eu nasci e vim ao mundo para
isto: para dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade escuta a
minha voz”.
E ao encerrar o diálogo —
registrado em cada um dos seus pormenores pelo Discípulo Amado —, como extremo
convite “tencionava persuadir Pilatos a unir-se àqueles que eram receptivos aos
seus ensinamentos”.8 Como se lhe perguntasse: “E tu, Pilatos, ouvirás a minha
voz?”, O governador romano, todavia, não quis atender àquele chamado e condenou
o Justo, movido pelo apego a seu cargo. Ouçamos nós a voz da Verdade e adoremos
o Divino Rei que hoje nos incita, através da Liturgia, a meditar sobre os
fundamentos da sua realeza.
V - O TRÍPLICE FUNDAMENTO DA REALEZA DE JESUS
Rei por natureza divina
Deus é Rei e Se vestiu de
majestade, revestiu-Se de poder e de esplendor! Vós firmastes o universo inabalável,
Vós firmastes vosso trono desde a origem, desde sempre, á Senhor, Vós existis!”
(51 92, 1-2), canta o Salmo Responsorial desta Solenidade de Cristo Rei. Com
efeito, enquanto Filho Unigênito do Pai e Segunda Pessoa da Santíssima Trindade,
Ele existiu desde toda a eternidade e criou o universo como seu Reino, sobre o
qual tem o direito de governar, sendo o Senhor absoluto dos Anjos e dos homens,
e o Dominador dos infernos, entre outros títulos. Por conseguinte, a primeira
razão do poder régio de Jesus é a sua natureza divina. Antes de tudo Ele é Rei
por ser Deus.
Entretanto, não é atribuída a
realeza às outras duas Pessoas da Trindade, nem há na Liturgia Católica uma
festa para cultuar o Pai ou o Espírito Santo como Reis, embora Eles tenham
estado associados ao Filho em toda a obra da criação. Por quê?
Rei enquanto Homem
Para alguém ser rei — no
estrito sentido do termo — é indispensável ter a mesma natureza dos súditos.
Ora, entre as Pessoas Divinas esta característica só se encontra no Filho, uma vez
que foi o único a Se encarnar, conservando na sua humanidade a plenitude da
natureza divina. E a partir de então, além de Criador e Senhor, Ele passou a
ser nossa Cabeça.
E qual foi o primeiro trono de
sua realeza? Maria Santíssima! No claustro materno e virginal d’Ela o
Todo-Poderoso tomou configuração humana, tornou-Se de fato Rei e começou seu
reinado.
Mas era necessário que a glória
de Nosso Senhor Jesus Cristo, enquanto Filho do Homem, fosse total e, para
isso, embora
tivesse recebido o título de Rei pela Encarnação, convinha que Ele também o
conquistasse através da Redenção.
Rei por direito de conquista
Criados em graça e gozando da
amizade de Deus no Paraíso Terrestre, Adão e Eva, no entanto, pecaram,
abandonando as maravilhas da participação na natureza divina. Em consequência,
os Céus se fecharam e os homens passaram a ser concebidos em pecado, privados
da vida sobrenatural. Toda a humanidade, escravizada e condenada à morte espiritual,
se encontrava nas malhas de satanás.
Não obstante, desde que o Verbo
de Deus resolveu encarnar-Se, o seu Coração Sagrado, divino e humano, cheio de
bondade, misericórdia e amor, moveu-Se pelo afeto para com cada um de nós como
se fosse um filho único. Derrotando o demônio, Ele reparou a ofensa causada
pela transgressão de nossos primeiros pais, libertou-nos da mancha original e
abriu-nos as portas da bem-aventurança; reconquistou e devolveu-nos, em alto
grau, aquilo que fora perdido no Paraíso, trazendo-nos o extraordinário prêmio
dos Sacramentos, sobretudo o Batismo e o perdão dos pecados, bens insuperáveis porque
eternos, os quais nos santificam e nos elevam até a sua natureza.
Ademais, em vez de Se encarnar
em estado glorioso, Ele assumiu um corpo padecente, a ponto de sofrer
necessidades, angústias e penúrias por nós, em toda a sua existência terrena. Tendo
o poder de operar a Redenção do gênero humano com um simples ato de vontade —
apenas um sorriso ao nascer, dirigido a sua Mãe Santíssima! —, quis cumprir a
sua missão varando os tormentos inenarráveis da Paixão e entregando a própria vida.
Permitiu que fosse descarregado sobre Ele todo o ódio que há contra Deus, aceitou
ser condenado num juízo totalmente injusto e deixou-Se levar pelos algozes à
morte de Cruz, quando tinha poder para destroçá-los e aniquilá-los num
instante. Por fim, com a sua Ressurreição conquistou a nossa e, tendo subido ao
Céu, sem cessar oferece o seu sacrifício ao Pai, ao longo da eternidade. Assim,
Ele que já era Rei, por natureza divina e por todas as prerrogativas inerentes
à Encarnação, adquiriu ainda mais autenticamente o título da realeza como
Redentor, por direito de conquista.
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