COMENTÁRIOS AO EVANGELHO IV DOMINGO DA
PÁSCOA - Jo 10, 27-30 - ANO C
27 “As minhas ovelhas ouvem a minha voz, Eu as conheço, e elas Me
seguem. 28 Eu lhes dou a vida eterna; elas jamais hão de perecer, e ninguém as
roubará de minha mão. 29 Meu Pai, que mas deu, é maior que todas as coisas; e
ninguém pode arrebatá-las da mão de meu Pai. 30 Eu e o Pai somos um” (Jo 10,
27-30).
SOMOS TODOS OVELHAS DE JESUS?
Assim como outrora Jesus, o Bom Pastor, procurou atrair todos para
seu Rebanho, sua voz continua hoje a ressoar nos corações, apelando para que
nos deixemos apascentar por Ele. Os fariseus O recusaram decididamente. Que
atitude tomará este nosso mundo?
I - O simbolismo na obra da Criação
Do nada, Deus criou
todas as coisas, e de forma instantânea; não transformou seres pré-existentes,
mas agiu por um ato exclusivo de sua onipotência, incomunicável a qualquer
outro ser, mesmo por milagre (1). Ele tornou realidade o universo tendo em
vista sua própria glória: "Dele, por Ele e para Ele são todas as coisas. A
Ele a glória por toda a eternidade!" (Rm 11, 36). O Concílio Vaticano I é
categórico neste particular: "Se alguém negar que o mundo foi criado para
a glória de Deus, seja anátema" (2).
Deus é modelo de todos os seres criados
Poucos dogmas de nossa
fé tiveram tão numerosos adversários como o da criação do mundo, claramente
afirmado na primeira frase do Gênesis: "No princípio, Deus criou os céus e
a terra" (Gn 1, 1). A variedade de objeções e heresias contra essa verdade
que atribui a Deus a causa eficiente da origem do universo é grande. Por outro
lado, embora a doutrina de que Deus é causa exemplar de todos os seres de sua
obra dos seis dias quase não levante inimigos frontais e explícitos, são muito
difundidos costumes, modos de ser, gostos, etc., pervadidos de erros larvados a
esse respeito.
Na quarta via das provas
da existência de Deus, explicitadas por São Tomás de Aquino, encontramos
também, além do Criador como o Pulchrum (o Belo) por essência, todas as belezas
esparsas pelo universo como participações e decorrências dessa fonte infinita.
Mais claramente, em sua Suma Teológica, o Doutor Angélico define Deus enquanto
modelo de todos os seres criados: "Deus é a primeira causa exemplar de todas
as coisas (...); existem na sabedoria divina as razões de todas as coisas, às
quais chamamos ‘idéias', ou seja, ‘formas exemplares' existentes na mente
divina. Essas idéias (...) não são, contudo, algo realmente distinto da
essência divina (...) Assim, pois, Deus é o primeiro exemplar de todas as
coisas" (3).
Uma nota de altíssima beleza na Criação
A mente divina é
infinitamente rica de seres possíveis e, se bem que Deus os possa criar todos,
somente alguns Ele torna realidade. Assim, cada um de nós existiu como um
possível na consideração de Deus, desde toda a eternidade (4). Apesar d'Ele não
ter querido criar todos os seres possíveis, é enorme a quantidade de criaturas
vindas à existência pelo seu poder divino. Essa superabundância, como ocorre
com todos os atos de Deus, foi intencional; entre outras razões, procedeu Ele
dessa forma para evitar a sensação de monotonia que poderia facilmente se
produzir na alma humana. Nessa imensa obra que O levou a descansar no sétimo
dia, o Criador quis colocar uma nota de altíssima beleza: o simbolismo.
Claro está que a beleza
estética pura e simples tem grande valor, mas a intelecção desse valor não
atingirá sua plenitude enquanto não remeta, de alguma forma, através de seu
simbolismo, para o próprio Deus. A beleza simbólica tem uma categoria muito
superior à estritamente física. Daí o terrível castigo de Deus aos que se negam
a conhecê-Lo através dos símbolos e, em conseqüência, a adorá-Lo (5).
A rica simbologia do relacionamento entre o pastor e as ovelhas
Portanto, para nós, é
uma obrigação moral ascender a Deus, e para isso nos servem as criaturas. No
cumprimento desse dever através delas, encontraremos uma verdadeira hierarquia,
pois umas nos serão mais ricas de conteúdo simbólico e, outras, menos. Por
exemplo, no relacionamento com seus pais, uma criança, praticamente no todo de
seu ser, sentir- se-á apoiada, compreendida e até afagada pela simples presença
deles. Bastará vê-los afastar-se para julgar-se naufragando. Esse fenômeno,
apesar de guardar características próprias, também se verifica entre adultos,
pois todos necessitamos de receber as influências de nossos semelhantes, devido
aos impulsos de nosso instinto de sociabilidade. Ora, o homem tem maior adesão
às influências recebidas da parte daqueles que se constituem em seus modelos.
Por isso, deixar-se enlevar, influenciar e mesmo formar pelos modelos que nos
aproximam de Deus e a Ele nos assemelham não é um defeito, mas, muito pelo
contrário, uma grande virtude e até obrigação.
Por outro lado, às vezes
entende-se mais facilmente o protótipo de uma certa categoria analisando-se as
relações entre seres inferiores a ela. Por exemplo, para nós nunca houve nem
haverá modelo igual e, menos ainda, superior a Jesus Cristo; porém, comove- nos
até a última fímbria de nossa sensibilidade vê-Lo refletido na figura do Bom
Pastor que cuida carinhosamente de suas ovelhas. De fato, como anteriormente
vimos, o universo existe, entre outros motivos, para nos auxiliar a melhor
compreender a Deus, e nessa perspectiva está uma substanciosa condição para a
prática do primeiro Mandamento. Amar a Deus sobre todas as coisas, como uma de
suas vias, consiste em conhecê-Lo através de todas as coisas, para assim poder
adorá-Lo e entregar- se inteiramente a Ele.
É na rica simbologia do
relacionamento entre pastor e ovelhas que se situa a perspectiva do Evangelho
deste domingo.
O pensamento de Platão
É interessante notar que Platão - em quem a Escolástica sorveu
muitos ensinamentos, purificando-os do que havia de panteísmo -, ao desenvolver
seu pensamento sobre a dialética do amor, diz que esta chega à sua plenitude ao
contemplar "essa beleza isenta de acréscimo e de diminuição, beleza que não
é bela numa parte e feia noutra, bela só em tal tempo e não em tal outro, bela
em certo sentido e feia em tal outro, bela num lugar e feia noutro, bela para
uns e feia para outros... Beleza que não reside num ser diferente de si mesma,
num animal, por exemplo, ou na terra ou no céu ou em qualquer outra coisa, mas
que existe eterna e absolutamente por si mesma e em si mesma; da qual
participam todas as demais belezas, sem que o nascimento ou a destruição delas
lhe ocasione a menor diminuição ou o menor acréscimo, nem a modifique em coisa alguma"
(Banquete, 211 C).
II - Ambientação da cena de hoje
Antes de entrarmos na
análise dos quatro versículos que constituem o Evangelho deste quarto Domingo
da Páscoa, relembremos em rápidos traços o contexto histórico de onde eles
surgem.
Anualmente, cerca de
dois meses após o término da festa dos Tabernáculos, por volta do fim de
dezembro do nosso calendário, os judeus celebravam outra festa, a da Dedicação.
Desde o ano 165 a.C. havia sido ela estabelecida, a partir da purificação do
Templo levada a cabo por Judas Macabeu, após as profanações promovidas por
Antíoco Epifanes (cf. 1 Mac 4, 36-59).
Nessa época, o Salvador
contava seus trinta e dois anos de idade. Estaria Ele portanto, ingressando no
último período de sua vida pública. Era uma manhã de inverno e já bem cedo Se
encontrava Ele no Pórtico de Salomão, edificado com alvíssimas pedras. Nessa
parte exterior do Templo, na face oriental, Jesus estava à espera de
constituir-se uma assembléia de ouvintes. Em pouco tempo juntouse em torno
d'Ele uma grande multidão. Desta não podiam estar ausentes seus inimigos.
A fama de Jesus se
espalhara rapidamente, sobretudo por causa dos numerosos milagres e da
magnitude deles. Talvez pelo fato de, bem naqueles dias, ter Ele curado dez
leprosos, os fariseus imploravam uma declaração taxativa sobre sua identidade:
era ou não o Messias? À primeira vista, o pedido deles parece, não só razoável,
mas até mesmo afetuoso. Entretanto, a Jesus ninguém engana. Quantas vezes, ao
longo da História da Igreja, ímpios e hereges se serviram dos mesmos pretextos
daqueles fariseus! Não era de clareza nem de evidência que necessitavam, mas,
sim, de boa fé, docilidade e humildade.
Os fariseus se obstinavam na rejeição a Jesus
Temos tornado claro, em
anteriores comentários, o quanto os judeus - especialmente os fariseus -
concebiam o Messias de forma equivocada. Viam-No como um conquistador político
e militar, um libertador do domínio, até mesmo sob o aspecto financeiro, do
Império ao qual estavam subjugados; ademais, deveria Ele conferir aos seus
co-nacionais toda a glória e a supremacia universal. Os que consideravam no
Messias a exclusividade dos aspectos religiosos, d'Ele esperavam a força para obrigar
à conversão e à prática da Lei (na qual, segundo seus fanáticos critérios,
encontrava-se a mais alta santidade) todas as outras nações.
Ora, Jesus era, sim, o
Messias esperado, mas muito diferente dessa distorcida concepção. Ele é o Filho
Unigênito do Pai, Deus e Homem verdadeiro; seu Reino não é deste mundo...
"Veio para o que era seu, mas os seus não O receberam" (Jo 1, 11).
Exceção feita da Samaritana (Jo 4, 26) e de seus discípulos, ninguém ouvira
Jesus atribuir-Se esse título, mas, na festa dos Tabernáculos, Ele não poderia
ter sido mais explícito sobre sua origem, sua natureza e até mesmo sua missão
(cf. Jo 7). Por isso Jesus afirmou já Se ter pronunciado sobre sua identidade
e, apesar disso, não Lhe terem crido (cf. Jo 10, 24-26). Os fariseus não O
entenderam, porque não se entregaram ao Messias como Ele realmente é; pelo
contrário, desejavam que o Messias Se entregasse a eles como eram, com seus
caprichos e fantasias.
De nada adiantaram todos
os milagres, pregações, nem mesmo a manifestação das virtudes de Jesus para
dissolver o egoísmo pétreo e incrédulo daqueles fariseus. Para eles só havia
uma e exclusiva infalibilidade: a de suas idéias político-religiosas. Essa obstinação
não é novidade para nós neste século XXI: a História, os fatos, o Papa, a
Igreja, Nossa Senhora em Fátima, o universo, falam a uma só voz, mas, à exceção
de poucos, ninguém quer entender, ou crer...
Essa é a muralha de aço
que a Verdade tem sempre diante de si. Em geral, a Verdade de Deus exige de nós
uma renúncia feita de dor; é preciso arrepender-se e fazer penitência, como
proclamava João Batista, aspirar à perfeição, amar o bem e admirar o belo. Em
uma palavra, é indispensável ser do número das ovelhas de Jesus. E os fariseus
não o eram, por isso Ele procura ensinar-lhes não só com palavras, mas com
fatos, pois não há como negá-los. Jesus, em resposta à pergunta se Ele era o
Cristo, simbolicamente os exclui de seu Reino, pelo menos naquele momento,
devido ao vício do orgulho tão penetrado nas almas deles (cf. Jo 10, 24-26).
Sentença terrível que caberá eternamente àqueles recalcitrantes, obstinados e
empedernidos na incredulidade de seu orgulho. Essa é a opinião de Santo
Agostinho: "Disse- lhes isso porque os via predestinados à morte eterna, e
não à vida eterna que Ele lhes havia conquistado com seu sangue. As ovelhas
nada mais fazem do que crer no seu pastor e segui-Lo" (6).
III - Significado das palavras de Jesus
Entremos agora na
análise do Evangelho deste quarto Domingo da Páscoa.
O Pastor ama e conhece profundamente suas ovelhas
27 As minhas ovelhas ouvem a minha voz, Eu as conheço, e elas Me seguem.
Das metáforas
relacionadas com a pesca, lidas no anterior domingo, passamos agora às do
pastoreio. A Sabedoria infinita de Deus nelas pensou desde toda a eternidade,
para assim melhor Se fazer entender pelos homens no relacionamento entre
Criador e criatura. A própria natureza da Judéia facilitava as características
desta simbologia usada pelo Divino Mestre. A terra naquelas regiões não era
fértil para a plantação, devido aos seus consideráveis trechos pedregosos e um
tanto áridos. O pastoreio ali se adaptava mais comodamente do que a agricultura
e, assim mesmo, exigia do rebanho um grande número de deslocamentos. Essa
situação redundava na necessidade de vigilância e aplicação mais esmeradas do
pastor. As circunstâncias tornavam mais nítidas as diferenças entre o autêntico
pastor e o mercenário. Deus quis o nascimento da figura do pastoreio e a
colocou com destaque na pluma dos literatos. Até os poetas pouco dados a
compreenderem a excelsitude da castidade são levados a realçar a pureza
virginal do zelo caridoso dos pastores, em geral, por suas ovelhas.
A vida do pastor nos
leva a considerar seu amor casto, inocente, governando sem decretos, muito pelo
contrário, baseado num relacionamento íntimo, fortemente paternal - talvez
melhor se diria maternal - através do qual atende todas as conveniências e
necessidades de suas ovelhas. Ele sabe entretê-las, defendê-las, ampará-las,
levá-las a pastar e até mesmo agradá-las com seus cantos ou com as melodias de
sua flauta. "Ele chama as suas ovelhas uma a uma pelos seus nomes"
(Jo 10, 3). São Tomás de Aquino ressalta a grande familiaridade existente nesse
relacionamento, pois chamar pelo nome significa ter íntima amizade. Ao
revertermos os símbolos aos simbolizados, a realidade e a significação se
tornam incomparavelmente mais profundas. Cristo conhece a natureza e o ser de
cada uma de suas ovelhas, e também o objetivo imediato, tanto quanto o último,
para o qual foram criadas, assim como o que são e o que poderão vir a ser com o
auxílio de sua graça. Por isso o Doutor Angélico julga ver nesse "chamar
pelo nome"(nominatim) "a eterna predestinação, pela qual Deus conhece
cada ovelha, cada homem" (7).
O homem, o mais elevado
ser percebido por nossos sentidos, não é criado em série. Deus aplica seu poder
criador sobre cada pessoa, uma a uma, e por isso não há homens iguais, nem
moral nem fisicamente, nem sequer no referente às circunstâncias da vida
individual e menos ainda no que tange à vocação pessoal. Daí a profundidade
insondável desse conhecimento dispensado por Jesus a cada um de nós, a ponto de
compará-lo ao existente entre o Pai e o Filho (Jo 10, 15), ato eterno tão
absoluto que, através dele, uma Pessoa divina é gerada pela outra.
O conhecimento que o Pai
tem do Filho, portanto, não é uma imagem intelectual acidental, como acontece
em nós, ao fazermos uso de nossa razão. O conhecimento do Pai é substancial e
amoroso, através do qual, por geração, Ele dá sua própria essência ao Filho.
Este, por sua vez, com amor substancial e infinito também, restitui ao Pai o
que d'Ele recebe; e tão rico é esse amor mútuo que dele procede o Espírito
Santo. Ora, aí está o padrão do conhecimento de Jesus a cada um de nós. Por
isso nada de nosso exterior ou interior - seja-nos nocivo ou útil, nossas
enfermidades físicas ou espirituais, seus remédios, etc. - nada foge à sua
onisciência. Não há em Jesus uma fímbria sequer de frieza nesse conhecimento em
relação a nós, como Ele mesmo disse e realizou na figura do Bom Pastor, aquele
que dá a vida por suas ovelhas.
Por outro lado, as
ovelhas seguem o Pastor. Pela sua graça, conhecem as maravilhas que estão
n'Ele, sua doutrina dotada de potência, sua vida, sua misericórdia, sua
sabedoria, numa palavra, sua humanidade e divindade. E, por isso, ao ouvirem
sua voz, elas O seguem, como Saulo no caminho de Damasco (At 9, 5-9) ou como
Madalena ao ser chamada pelo nome, junto ao Sepulcro do Senhor (Jo 20, 16).
Portanto, ao conhecê-Lo, seguem- No no cumprimento de seus desígnios:
"Aquele que diz conhecê-Lo e não guarda os seus mandamentos é mentiroso e
a verdade não está nele" (1 Jo 2, 4). Quando ouvem sua voz, enchem-se de
amor pelo Pastor, a ponto de estarem dispostas a entregar suas vidas por Ele, e
ardem do desejo de que Ele inabite em suas almas.
A Palavra de São
Paulo
A ira de Deus se manifesta do alto do céu contra toda a
impiedade e perversidade dos homens, que pela injustiça aprisionam a verdade.
Porquanto o que se pode conhecer de Deus eles o leem em si mesmos, pois Deus
lho revelou com evidência. Desde a criação do mundo, as perfeições invisíveis
de Deus, o seu sempiterno poder e divindade, se tornam visíveis à inteligência,
por suas obras; de modo que não se podem escusar. Porque, conhecendo a Deus,
não O glorificaram como Deus, nem Lhe deram graças. Pelo contrário,
extraviaram-se em seus vãos pensamentos, e se lhes obscureceu o coração
insensato.
Pretendendo-se sábios, tornaram-se estultos. Mudaram a majestade
de Deus incorruptível em representações e figuras de homem corruptível, de
aves, quadrúpedes e répteis" (Rom 1, 18-23).
Ninguém consegue arrebatar alguma ovelha ao Bom Pastor
28 Eu lhes dou a vida eterna; elas jamais hão de perecer, e ninguém as
roubará de minha mão.
Aqui, Jesus passa a Se
representar, já não só como o Pastor, mas também como o pasto, pois confere às
ovelhas sua própria vida. Levemos em conta que até mesmo a vida física delas é
alimentada por um "pasto", criatura sua, pois nada existe que não
tenha tido n'Ele sua origem. Ademais, elas são nutridas espiritualmente através
de sua palavra, dado que, conforme Ele mesmo diz, "nem só de pão vive o homem,
mas de toda palavra que sai da boca de Deus" (Mt 4, 4). E, acima de tudo,
pela graça (semente da glória eterna), em função da qual a própria vida de
Cristo se introduz em suas almas e é alimentada pelos sacramentos, em especial
pela Eucaristia. Assim, a espiritualidade delas vai-se robustecendo e sendo
vivificada n'Ele. Sua própria carne, sangue, alma e divindade constituem o
insuperável alimento da vida de suas ovelhas. E na eternidade, a graça se
transformará em glória, recebendo d'Ele sua própria vida.
Que terão entendido os
fariseus de todo esse universo de extraordinária riqueza? Não é difícil
conjeturar, pois quem não possui a vida eterna conferida pelo Pastor, como
poderá compreender algo desses esplendores? Ora, ao afirmar que dá a vida
eterna às suas ovelhas, Ele deixa entrever que não entrega essa vida àquelas
que não são de seu redil; ao mesmo tempo, declara novamente sua essência
divina, uma vez que nenhuma criatura, por mais excelente que possa ser -
incluindo os anjos -, jamais terá o poder de conferir tão insuperável dom.
Entrar na vida eterna significa estar livre de todos os tormentos e paixões:
ambições, invejas, ódios, dores, etc., como também ter sido perdoado de todos
os pecados e desvarios. Entretanto - Oh, mistério da iniquidade! -, os fariseus
não queriam se beneficiar desses dons que, como a todas as pessoas, lhes era
oferecido.
Mas essa é também a
situação das ovelhas pertencentes ao rebanho de Jesus quando O
rejeitam."Cristo, naquilo que Lhe cabe, dá a vida eterna a suas ovelhas, e
nenhuma delas perecerá por culpa do pastor; aquela que se perder, será por sua
própria culpa. Também a graça que Cristo dá nesta vida a suas ovelhas é
suficiente, por sua natureza, para levá-las à vida eterna, e se algumas não
chegam lá é por culpa de si próprias, por não quererem seguir a Cristo"
(8).
As ovelhas de Jesus
estão em sua posse; nem os homens, nem os demônios conseguem, quer seja por
força, quer por subterfúgios, arrancá-las de suas mãos onipotentes. "Se
perecerem será pela própria vontade delas, não por falta de poder d'Ele"
(9). Na afirmação de Cristo que aqui analisamos, Ele se manifesta
"suficientemente forte e poderoso para que suas ovelhas possam entrar,
graças a Ele, na vida eterna, livrando-as antes de qualquer perigo" (10).
29 Meu Pai, que Mas deu, é maior que todas as coisas; e ninguém pode
arrebatá-las da mão de meu Pai.
Dissentem entre si
autores de grande peso a propósito das traduções latina e grega deste
versículo. A primeira se concentra nas coisas concedidas pelo Pai a seu
Unigênito: "Meu Pai, o que me deu é maior que todas as coisas, e ninguém
as pode arrebatar de minhas mãos.". A outra coloca o Pai como sendo o
objeto da comparação feita por Jesus (vide formulação acima). Uma vez que não
há unanimidade de interpretação, preferimos a formulação latina: "todas as
coisas", ou seja, "a Igreja, que Ele Me entregou para que Eu a
regesse. As ovelhas que Me deu para que as apascentasse. É maior, isto é, mais
caro, mais digno de apreço que qualquer outra coisa" (11). Assim, uma alma
que se entrega a Jesus pela virtude da fé, amando-O sobre todas as coisas e
sendo perseverantemente fiel, deve estar convicta de que tudo lhe vem do Pai,
pelos méritos do Filho.
Jesus afirma sua divindade e é rejeitado pelos fariseus
30 Eu e o Pai somos um.
Ouçamos o Pe. Manuel de
Tuya, OP, comentando este versículo:
"Por fim, Cristo,
como garantia desse poder salvífico que tem para suas ovelhas, proclama sua
divindade, dizendo: ‘Eu e o Pai somos uma só coisa'. Essa unidade entre o Pai e
o Filho se expressa diretamente no poder. Os poderes divinos do Pai são os do
Filho. Não no sentido de que a voz ou o anúncio de um profeta é a voz ou o
anúncio de Deus. Precisamente os profetas de modo explícito falavam em nome de
Deus, e isso não causava estranheza a ninguém. Mas no presente caso a afirmação
é absolutamente transcendente na comunicação de poderes. E, se existe essa
comunidade ou identidade de poderes, pressupõe isso uma unidade e identidade de
natureza. Daí deixar- se ver o mistério divino de Cristo.
"Essa expressão
encontra sua explicação na ‘Oração sacerdotal', na qual Cristo pede ao Pai que
O glorifique com ‘a glória que tive junto de Ti, antes que o mundo fosse
criado' (Jo 17, 5), do mesmo modo como no Prólogo, no qual se ensina
abertamente que o Verbo, que vai Se encarnar, ‘era Deus'" (12).
Essa é a mais ousada, profunda
e misteriosa afirmação feita por Jesus a respeito da comunidade de essência
entre Ele e Deus: trata-se de uma união metafísica insondável.
Os fariseus que ali
estavam deviam ter-se mostrado fiéis intérpretes dos profetas, humildemente
abandonando seus egolátricos preconceitos nacionalistas e suas exóticas
práticas religiosas. Se eles não endurecessem seus corações, mas se deixassem
penetrar pelas maravilhosas revelações do esperado Messias - comprovadas pelos
numerosos e convincentes milagres por Ele operados -, pelo dom da fé
compreenderiam e amariam aquele Deus feito Homem e O seguiriam. Seriam ovelhas
de seu rebanho.
O que dizer a respeito
do mundo atual, que não antepõe a lei escrita à Lei do Espírito - como o faziam
os maus judeus de outrora -, mas coloca a lei do gozo e da carne, a lei do
relativismo contra a Lei de Cristo, consagrada por Ele com sua vida e
ressurreição, e por sua Santa Igreja?...
Muito opostamente à boa
posição, quiseram os fariseus colher pedras para matar Jesus por tantos e insuperáveis
dons que lhes oferecia (cf. Jo 10, 31). O que fará o mundo de hoje contra
Cristo e sua Santa Igreja em face das dádivas que, através d'Eles, lhes promete
Deus?
1) Cf. São
Tomás de Aquino, Contra Gentiles., II, 19.
2)
Denzinger 1803.
3) Suma
Teológica, I, q. 44, a. 3.
4) Cf. Suma
Teológica, I, q. 15, a. 2-3.
5) A esse
respeito, nada mais claro do que o ensinamento de São Paulo em Rom 1, 18-23.
6) São
Tomás de Aquino, Catena Aurea, in Joannem.
7) São
Tomás, Comentario in Io., 10, lec. Iª, 3 - Marietti, p. 280.
8) Juan de
Maldonado SJ, Comentarios a los Cuatro Evangelios, in Jo.
9) Id. ibid.
10) Id. ibid.
11) Id. ibid.
12) Biblia
Comentada, BAC, 1964, V. II, pp. 1181-1182.
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