Comentário à sequência de Pentecostes
- Vinde, Pai dos pobres, dai aos corações vossos sete dons.
- Consolo que acalma, hóspede da alma, doce alívio, vinde!
- No labor descanso, na aflição remanso, no calor aragem.
- Enchei, luz bendita, chama que crepita, o íntimo de nós!
- Sem a luz que acode, nada o homem pode, nenhum bem há nele.
- Ao sujo lavai, ao seco regai, curai o doente.
- Dobrai o que é duro, guiai no escuro, o frio aquecei.
- Dai à vossa Igreja, que espera e deseja, vossos sete dons.
- Dai em prêmio ao forte uma santa morte, alegria eterna. Amém.
Conduzidos pelo fogo do Espírito Divino
No transcurso do tempo,
sem dúvida, já tivemos ocasião de comparecer a um funeral ou presenciarmos
algum violento acidente de automóvel com
vítimas fatais. Em cada uma dessas oportunidades experimentamos uma profunda
impressão, ao contemplar o corpo de um defunto, imóvel, sem reação nenhuma, irremediavelmente
desprovido de vitalidade.
Com efeito, a vida
humana é constituída pela presença da alma animando o corpo. Este perde sua harmonia
quando aquela se separa. Dado que possuímos membros muito diferentes, com
peculiaridades e atribuições variadas — os braços são diversos da cabeça, as
pernas dos braços, e até mesmo é distinto o papel de cada dedo da mesma mão —, é
indispensável um fator de unidade que exerça uma ação ordenadora sobre todo o
organismo. Tal é o papel da alma. Sem a sua presença desde o primeiro instante
de nossa Concepção seríamos um conglomerado de órgãos e elementos sem coesão,
incapazes de agir em conjunto.
Essa característica da
natureza humana não é senão uma pálida imagem de outra realidade incomparavelmente
mais alta: ‘o que a alma do homem é para o corpo, é o Espírito Santo para o
Corpo de Cristo, que é a Igreja”.1 É a Terceira Pessoa da Santíssima Trindade quem
a anima, de maneira que — por um absurdo irrealizável — se Ela se retirasse,
ficaria a Igreja inerte como um cadáver. Cristo é a Cabeça, nós somos os
membros e o Espírito Santo é a alma vivificante
que, por sua atuação, conserva a unidade deste Corpo Místico.
Se nos detivermos um
pouco para analisar a sociedade humana, perceberemos que, em geral, seu
dinamismo e movimentação lhe são concedidos de fora para dentro. Quem deseja,
por exemplo, fundar uma instituição, procura para fazer parte dela,
em primeiro lugar, pessoas dispostas e que possam garantir-lhe força e
perenidade. A Igreja, pelo contrário, possui uma vida que nasce em si mesma,
insuflada pelo Divino Espírito Santo. Ele está presente na Igreja, inahitando
seus membros e permanecendo neles pela graça santificante.
Esta presença é sentida
pelas almas, ainda que de modo imponderável, como se passou com o Prof. Plinio
Corrêa de Oliveira, desde menino. Refletindo sobre a unidade que transparecia na
diversidade da Igreja, pensava ele: “Por cima de tudo isto há Alguém, que é
mais do que tudo! E uma coisa curiosa. A Igreja não parece uma instituição. mas
uma pessoa que se comunica através de mil aspectos. Ela tem movimentos,
grandezas, santidades e perfeições, como se fosse uma alma imensa que se exprime
em todas as igrejas católicas do mundo, todas as imagens, toda a Liturgia.
todos os acordes de órgão e todos os toques de sino. Essa alma chorou com os
réquiens e alegrou-se com os bimbalhares dos Sábados de Aleluia e das noites de
Natal. Ela chora comigo, se alegra comigo. Como eu gosto dessa alma!”.2 Em sua
jovem idade não podia ele definir tal alma naquele então, Como o fez mais tarde:
‘A alma da Igreja Católica é o Espírito Santo. É Ele quem está presente em
todas as manifestações da Igreja. Ele é quem sugeriu aos homens da igreja, ao
longo dos séculos, que selecionassem tudo segundo uma determinada forma. Ele é
quem fez nascer na Igreja todas as coisas que são o reflexo d’Ele mesmo”.3
Universalidade conferida pelo Espírito
Uma é a Igreja Católica
dentro da múltipla riqueza de seus aspectos, como escreveu São
Cipriano: “A semelhança dos raios do Sol que são muitos mas uma só é a luz,
também muitos são os ramos da árvore e um só é o tronco, firmemente enraizado
no solo; e quando de uma só nascente fluem muitos riachos, mesmo que pela abundância
da água que dela emana pareça ser uma multiplicidade que se está difundindo,
permanece a unidade na origem. [...] Assim também a Igreja, inundada pela luz
do Senhor esparge seus raios por todo o mundo e, no entanto, uma só é a luz que
difunde por toda a parte, sem dividir a unidade do corpo; estende seus ramos
com grande generosidade por toda a Terra; envia seus rios para fluir com
largueza por toda a parte. E, sem embargo, uma só é a cabeça, uma só sua origem
e uma só sua mãe, rica pelos frutos de sua fecundidade. De seu seio nascemos,
de Seu leite nos alimentamos e por seu espírito somos vivificados”.4
Por ação divina, filhos
das mais diversas nações e com as mais variadas culturas participam em amor
recíproco de uma única e mesma Fé, sob os cuidados de um só pastor. Quando
Nosso Senhor Jesus Cristo declarou “Pedro, tu és pedra e sobre esta pedra
edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela”
(Mt 16, 18), estava prometendo à sua Igreja a perenidade dessa vitalidade, que
jamais haveria de abandoná-la. Por esta razão é a Igreja indestrutível, e
aqueles que julgam poder derrotá-la se iludem com o impossível. Mais ainda, Ela
é inteiramente triunfante em todas as circunstâncias.
Uma semente tíbia e medrosa que frutifica com fulgor
Exemplo arquetípico
dessa indestrutibilidade foi a transformação operada nos Apóstolos,
em Pentecostes. Enquanto semente da Igreja, constituíam eles um corpo, todavia
sem vida, conforme nos demonstram os acontecimentos que antecederam a cena contemplada
pela primeira leitura desta Solenidade. Os Evangelhos narram como, terminada a
Sagrada Ceia, Nosso Senhor saiu com seus discípulos até o Horto das Oliveiras,
entre cânticos festivos. Sentindo próxima a hora terrível da Paixão, foi orar
ao Pai em meio à tristeza e aflição, acompanhado apenas pelos três Apóstolos
que gozavam de sua maior intimidade. Mas estes, vencidos pelo sono, mereceram
receber dos lábios do Divino Mestre a repreensão: “Não pudestes vigiar uma hora
comigo?” (ML 26, 40). Mais tarde, ao verem-No preso, todos fugiram tomados pelo
medo (cf. Mt 26, 56; Mc 14, 50), e São Pedro, seguindo O só de longe, negou-O
três vezes (cf. Mi 26, 69-75; Mc 14, 67-72; Lc 22, 55-62; Jo 18, 25-27), por
respeito humano.
Depois do sepultamento
de Jesus, os discípulos permaneceram reunidos a portas fechadas, receosos de
uma perseguição se desencadear contra eles (cf. Jo 20, 19). Quando, por fim,
Nosso Senhor lhes apareceu ressuscitado, espantaram-se e duvidavam se não seria
um fantasma, a ponto de Ele pedir alimento para mostrar-lhe a realidade de seu
Corpo. Não obstante, mesmo havendo testemunhado a vitória de Cristo sobre a morte,
os Apóstolos estavam mais preocupados com a restauração do reino temporal de
Israel — como nos demonstra o diálogo prévio à Ascensão de Jesus — do que com a
doutrina que o Divino Ressuscitado ainda lhes queria comunicar.
Em sentido diametralmente
oposto, depois de Pentecostes saíram eles cheios de fervor pregando às
multidões, sem temor algum de serem presos ou perseguidos. “Com a vinda do
Espírito Santo” — afirma São João Crisóstomo — “já estavam transformados e eram
superiores a tudo o que fosse corpóreo. Ali mesmo a assistência do Espírito
Santo converte em ouro o que era barro. [...] E é admirável que os Apóstolos
saem a combater como que desnudos frente a adversários armados, contra
príncipes detentores da autoridade sobre eles; aqueles que não tinham
eloquência e eram ignorantes enfrentam impostores, charlatães e uma multidão de
sofistas, retóricos e filósofos peripatéticos corrompidos da Academia”.5
Foi a partir da efusão
do Espirilo Divino que a Igreja começou a se mover e se expandir. Foi Ele quem
fez florescer as maravilhas e as riquezas que os séculos presenciaram, quem
inspirou a coragem e o heroísmo dos mártires e a pregação do Evangelho pelo
mundo inteiro, e é Ele quem rejuvenesce constantemente a Esposa de Cristo,
multiplicando os frutos de santidade por toda a face da Terra, em todos os
tempos.
II —O ESPÍRITO SANTO EM NÓS
Quantas vezes somos
movidos por surtos de entusiasmo, de bons desejos e propósitos, e não sabermos explicar
de onde eles provêm. Em outras ocasiões, pelo contrário, sentimo-nos ácidos ou
desanimados e, de repente — sem nenhuma ação de nossa parte —, invade-nos uma profunda
consolação. Em ambas as circunstâncias, tais impulsos interiores procedem do
Espirito Santo, que age sobre nossas almas como outrora sobre os Apóstolos, predispondo-nos
à prática do bem e tornando-nos capazes, pelo poder de sua força
transformadora, até mesmo de atingir a heroicidade.
No Espírito Santo nos tornamos divinos
São conhecidas as
palavras de Tertuliano: “O testimonium animæ naturaliter christianœ! 6 - Ó testemunho
das almas, naturalmente cristãs!”, as quais exprimem uma grande verdade, uma
vez que cada alma foi criada em função de Nosso Senhor Jesus Cristo. Contudo, antes
de receberem elas as águas regeneradoras do Batismo, sem possuírem a vicia
divina, brotam de sua natureza manchada pela culpa original o egoísmo, o exclusivo
cuidado consigo mesmo e uma preocupação desmedida por seus interesses, de onde
defluem as amargas experiências que nos proporciona o trato humano, no decorrer
de nossos anos.
E necessário ao homem, portanto,
“renascer da água e do Espírito” (Jo 3, 5). Pleno de fé, esperança e caridade,
adquire uma profunda compreensão dos panoramas sobrenaturais, oque se reflete
depois no empenho em fazer o bem e em se entregar, se for preciso, a um
verdadeiro holocausto em favor dos outros. Tal é a vida da graça, mantida,
desenvolvida e, robustecida pela ação do Espírito Paráclito. Nesse sentido, diz
Santo Agostinho: “o Deus-Amor é o Espírito Santo. Quando este Espirito, Deus de
Deus, se dá ao homem, inflama-o de amor a Deus e ao próximo, pois
Ele é amor”.7
Como se verifica essa
participação na vida divina? No Homem Deus, modelo supremo de toda a criação, o
Verbo serve de suporte — do grego – hipóstasis — para a união da natureza
humana com a divina. Algo de semelhante e misterioso se opera em nosso
interior, pela ação da graça santificante recebida no Batismo: mantendo as
proporções, o papel que desempenha a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade em Jesus
é exercido em nós pela Terceira Pessoa, fazendo-nos partícipes da vida menada
de Deus e pertencentes ao Corpo Místico de Cristo.
Adotados como filhos de Deus
Podemos então afirmar
que pelo Batismo passamos a fazer parte da família divina. Enquanto Nosso Senhor
Jesus Cristo, no que diz respeito à sua origem, é o Unigênito de Deus, gerado pelo Pai desde toda
a eternidade, nós, embora não tendo sido engendrados na Trindade, pela graça
nos tornamos filhos de Deus por adoção.
Para facilitar a
compreensão de tão alta verdade, analisemos, por exemplo, a diferença que há
entre ser adotado por alguém de condição modesta ou por uma pessoa abastada.
Sem dúvida, se fosse dado a escolher, a grande maioria das pessoas optaria pela
segunda possibilidade, pois significaria um aumento de projeção social e uma herança
muito superior. Ora, infinitamente mais do que conquistar qualquer dignidade ou
possuir bens materiais é ser recebido por Deus como filho. Essa adoção sobrenatural
não se efetua à maneira da humana, registrada em um cartório: enquanto os pais
não podem dar sua vida biológica aos filhos adotivos, Deus, pelo contrário, nos
confere uma participação física e formal em sua própria vida.
De modo diverso do que
acontece com o vestuário, que varia de acordo com os gostos e as ocupações
de cada um, mudando a aparência exterior da pessoa sem, entretanto, alterar o
organismo, a graça qualifica o interior, revestindo nossa alma e
configurando-nos com Cristo, conforme as palavras do Apóstolo: “Eu vivo, mas já
não sou eu; é Cristo que vive em mim” (Gal 2, 20).
Célebre é a imagem
utilizada pelos teólogos para explicar esta doutrina: o ferro quando é colocado
nas altas temperaturas da forja torna-se brasa incandescente e passa a ter as
características do fogo, embora continue sendo ferro. Assim é a alma pervadida
pela graça santificante: sem deixar de ser humana, fica divinizada.
Uma natureza insuficiente para governar um organismo divino
Para estar à altura de
tamanha dádiva precisamos agir como o próprio Deus. Como atingir meta tão
elevada? No Batismo, junto com a graça santificante. Deus infunde na alma as
virtudes, que constituem o elemento dinâmico e operativo de todo o organismo
sobrenatural. Porém, apesar de serem as virtudes movidas cm nós pelo Espírito Santo,
que a todo instante está sustentando-nos, inspirando-nos e ajudando-nos
mediante graças atuais. o uso dessas mesmas virtudes cabe a nós e depende de nossa iniciativa e vontade, o que pode representar um perigo, concebidos como
somos no pecado original.
Seremos, então, como um
menino a quem dessem para pilotar um potente avião de passageiros. A mais
avançada das tecnologias de nada serviria em mãos tão pouco peritas quanto as
de uma criança… Mais uma vez se revela insubstituível o papel exclusivo do
Espírito Santo, refletido na Belíssima Sequência apresentada pela Liturgia para
o dia de hoje.
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