Comentários à Solenidade do
Sagrado Coração de Jesus
Um
coração humano dotado de infinita capacidade de amar: eis o admirável paradoxo
existente no Sagrado Coração de Jesus, do qual emana um auge de bondade divina.
Manancial inesgotável de bondade
I – O extremo da Bondade divina se une à humana
A Santa Igreja
celebra, na sexta-feira após o 2º Domingo depois de Pentecostes, a Solenidade
do Sagrado Coração de Jesus, símbolo mais elevado da bondade e do amor de Deus
para com suas criaturas, de modo incomparável para com aquelas que criou à sua
imagem e semelhança. Os textos litúrgicos desta comemoração foram escolhidos
especialmente para mostrar a dimensão da benquerença divina, mas, sobretudo, evidenciam
o empenho ilimitado de Deus em nos salvar.
Coração de Jesus, fornalha ardente de caridade
Cada um de nós
possui dentro de si um coração que pulsa dia e noite e discerne com clareza os próprios
gostos e preferências. No entanto, quão diferente é o Coração adorável de
Jesus, humano e, ao mesmo tempo, divino! Jamais qualquer movimento deste
Coração destoará do beneplácito da Santíssima Trindade. Uma vez criado, uniu-Se
aos desígnios que o Pai, o Filho e o Espírito Santo tinham para Ele, desde toda
a eternidade e para toda a eternidade, e manifestou a Deus o mais perfeito e
sublime amor, penetrado de respeito, adoração e submissão. Amor ilimitado —
porque sua natureza humana está unida hiposta ticamente à
Segunda Pessoa da Santíssima Trindade —, capaz de abarcar infinitas humanidades
possíveis de serem criadas e que recai em profusão sobre a ordem do universo
saída de suas mãos, em particular sobre as criaturas que possuem sua mesma natureza.
Conhecendo nossas misérias e debilidades, Ele tudo tolera, compassivo, sem nunca
diminuir seu amor, apesar das inúmeras ocasiões em que Lhe damos motivo para
isso…
Qual deve ser,
pois, a grandeza do Coração de Jesus, fornalha ardente de caridade? Para mais
nos aproximarmos da compreensão de sua imensidade, consideremos o período em que
se deu a Encarnação.
Se analisarmos
a história dos povos antigos, em contagem regressiva até o nascimento de Nosso
Senhor, veremos que, desde a queda de Adão e Eva, infidelidades sem conta
maculavam a Terra, e o mundo jazia nas trevas e na sombra da morte (cf. Lc 1,
79), em um verdadeiro delírio de iniquidade. Para Se encarnar, a fim de
remediar tantos males, Deus escolheu o momento auge da decadência dos povos,
pois, segundo observa São Tomás de Aquino, “como viria o médico, era necessário
que antes de sua chegada os homens ficassem convencidos de sua enfermidade,
tanto no que diz respeito à falta de ciência na lei da natureza, quanto à falta
de virtude na lei escrita”.1 A esse propósito também comenta São Leão Magno:
“como a impiedade e o erro tinham, havia muito, apartado do culto do verdadeiro
Deus todas as nações, e até o próprio povo particular de Deus, Israel, na sua
quase totalidade tinha deixado as instituições da Lei, e deste modo estavam
todos fechados no pecado, fez misericórdia a todos a Divina Providência. Realmente,
faltando em toda a parte a justiça e tendo o mundo inteiro caído na vaidade e
no mal, se a Divina Onipotência não suspendesse o seu juízo, cairia sobre a
totalidade dos homens a sentença de condenação. Mas trocou-se a ira em
indulgência e, para que resplandecesse mais a grandeza da graça que se ia
fazer, conceder
o mistério da remissão, quando já ninguém podia gloriar-se de seus
merecimentos”.2
Atingida,
pois, a plenitude dos tempos ou, quiçá, a plenitude da miséria humana, o
Criador realizou uma obra de misericórdia, inimaginável pelos Anjos e — com
razão ainda maior — pelo gênero humano.
Um caminho aberto para chegar a Deus
De acordo com
nossos critérios, a ingratidão humana em relação a Deus era suficiente para Ele
proferir um “basta!” e abandonar a humanidade à própria malícia. Pelo
contrário, tomado de compaixão por sua criatura, quis Deus encarnar-Se, unindo
a natureza divina à humana, na Pessoa do Verbo. E ao assumir a nossa natureza com
todas as suas contingências, elevou-a, diz Santo Agostinho, “para que o homem
tivesse no Homem-Deus um caminho aberto para chegar ao Deus dos homens”.3 É uma
manifestação de amor tão incompreensível que só mesmo um Deus a poderia
excogitar! Começou, então, a verdadeira História, cuja fonte está no Coração
mil vezes adorável que a Santa Igreja comemora no dia de hoje.
II – O pastor, imagem da benevolência divina
As leituras
desta Solenidade se centram na significativa figura do pastor que, desdobrando-se
em afeto e atenções para com suas ovelhas, reflete — embora de modo imperfeito
— a bondade do Sagrado Coração de Jesus. Desde sempre, Deus teve em mente a criação
das ovelhas e do pastoreio com o intuito de tornar mais acessível ao homem a
compreensão de sua imensa misericórdia, elevando-lhe a alma até o Arquétipo do
Pastor, o próprio Cristo.
Mediador por excelência
Lemos na
profecia de Ezequiel: “Eu mesmo vou procurar minhas ovelhas e tomar conta delas.
Como o pastor toma conta do rebanho, de dia, quando se encontra no meio das
ovelhas dispersas, assim vou cuidar de minhas ovelhas e vou resgatá-las de todos
os lugares em que forem dispersadas num dia de nuvens e escuridão” (Ez 34,
11-12). Ó mistério de Fé! Para ser nosso intercessor com toda eficácia e
oferecer a Deus uma reparação apropriada pelos pecados do mundo que sucumbia
“num dia de nuvens e escuridão”, fazia-se mister que o Verbo assumisse nossa carne.
De fato, “como poderia ser mediadora esta sublimidade da qual nos encontrávamos
tão longe? Para ser mediador, era preciso que assumisse o que não era, mas
permanecesse sendo o que era, para que onde está pudéssemos chegar nós”,4
afirma Santo Agostinho.
Ele veio,
pois, à nossa procura, como busca o pastor a sua ovelha, e restaurou em nós tudo
quanto havíamos perdido pela desobediência original.
Jesus, causa única de toda fidelidade
Difícil é para
uma mentalidade cronológica compreender que para Deus não há tempo — o qual é
apenas mera criatura sua — e que, portanto, n’Ele tudo é presente. Aquilo que
se passou, que se passa e se passará até o fim do mundo é visto por Ele num só
olhar, desde toda a eternidade! Dessa forma, toda a correspondência à graça e
os atos de virtude praticados no período prévio à Encarnação haviam sido
obtidos e conquistados ante prævisa merita, ou seja, pelos méritos antecipados
de Nosso Senhor Jesus Cristo. Comenta São Leão Magno: “O que a Encarnação do
Verbo nos trouxe era para o passado e para o futuro; e não houve idade nenhuma
do mundo em que o sacramento da salvação dos homens fosse inoperante. […] Desde
a criação do mundo, [Deus] traçou para todos uma só e mesma via de sal- com
que sempre foram justificados todos os santos, foi, com o nascimento de Cristo,
aumentada, mas não começada; e este mistério de tão grande amor, de que já todo
o mundo está cheio, era tão poderoso até nos sinais que o anunciavam, que não
lucraram menos os que creram nele quando era prometido, do que aqueles que o
receberam quando foi dado”.5
Não é sem
razão que certos doutores, como São Bernardo, defendem a tese de que na raiz da
perseverança dos Anjos fiéis no Céu está o preciosíssimo Sangue de Nosso Senhor
Jesus Cristo, derramado no Calvário: “Aquele que levantou o homem caído, deu ao
Anjo a graça de não cair, livrando-nos do cativeiro, preservando o outro de
cair no cativeiro. E, deste modo, Ele foi redenção para ambos: para um, por tê-lo
tirado da escravidão, e para outro, por tê-lo preservado de poder cair na
escravidão. É claro, pois, que o Senhor Jesus foi redenção para os Anjos
santos, como foi para eles justiça, sabedoria, e santificação”.6
Os noventa e nove justos e os Anjos
No Evangelho
desta Solenidade, Jesus narra a parábola do pastor zeloso que busca a ovelha
perdida e se rejubila ao encontrá-la, aplicando em seguida esta imagem à
alegria ímpar que se irradia no Céu pela conversão de um só pecador, mais do que
pela perseverança de noventa e nove justos. Como já tivemos oportunidade de
analisar, em ocasiões anteriores,7 a passagem de São Lucas contemplada neste
Evangelho, relacionemos agora seu sentido com a Solenidade do Sagrado Coração.
Conforme
ensina a teologia, a vontade dos Anjos, diferentemente da dos homens, adere aos
objetos de modo fixo e imutável. Por conseguinte, eles permanecem obstinados no
mal ao pecar, sem possibilidade de voltar atrás,8 como aconteceu com Lúcifer e
seus sequazes, que ao se revoltarem contra Deus foram de imediato lançados no inferno.
Não é a eles, portanto, que se referem as palavras do Evangelista: “Haverá no
Céu mais alegria por um só pecador que se converte…”. Impassíveis de conversão,
não poderiam os anjos maus causar esta alegria, a não ser, talvez, por tornar
evidente que o Paraíso Celeste ficou limpo e imune de pecado com sua expulsão.
Em sentido oposto, os Anjos bons que, tendo abraçado a verdade e nela foram
confirmados, constituem os “noventa e nove justos que não precisam de
conversão”.
A alegria produzida pela conversão da humanidade
De fato, este
lindíssimo trecho do Evangelho é interpretado por diversos Padres e Doutores 9
como sendo uma menção à quantidade de Anjos, muito superior à das criaturas
humanas. Por sua vez, o número um, a ovelha que se extraviou, representa a
humanidade pecadora.
Ao descrever,
então, a alegria sentida pelo pastor com a recuperação da ovelha perdida, Nosso
Senhor se refere à conversão dos homens, de quem Ele cuida com indizível
carinho e desejo de salvar, conforme sublinha o Salmo Responsorial: “O Senhor é
o pastor que me conduz; não me falta coisa alguma” (Sl 22, 1). A imagem do
pastor, por mais excelente que este seja, reproduz de maneira pálida e
insuficiente a benignidade de Deus, que Se encarnou para ser nosso Bom Pastor,
e cujo Coração Sagrado exulta de alegria quando uma ovelha tresmalhada volta a
seu divino redil.
A festa da confiança inabalável
A devoção ao
Sagrado Coração de Jesus, meditada pelo prisma do Evangelho desta Solenidade,
bastaria para tornar inabalável nossa confiança, a qual é a esperança
fortalecida por uma firme convicção.10 A prática dessa virtude teologal nos dá um
anseio, cheio de certeza, de que, graças à benevolência de Deus — e não por
nossos merecimentos —, alcançaremos um dia a visão beatífica, valendo-nos dos
recursos que Ele põe à nossa disposição.
É próprio
àqueles que buscam a perfeição perceber o quanto sua natureza é insuficiente e
necessitada de auxílio sobrenatural para a prática da virtude, pois já diz a
Escritura que o justo peca sete vezes ao dia (cf. Pr 24, 16). Entretanto, ao
nos depararmos com nossas debilidades não percamos uma fímbria sequer de
confiança, certos de que, no fundo, elas proporcionam à Providência ocasião de
manifestar ainda mais sua grande misericórdia. À luz deste Evangelho devemos,
pois, abandonar-nos sem reservas nas mãos do Divino Pastor e deixarmo-nos
conduzir enquanto meros objetos de sua bondade infinita. A celebração do Divino
Coração poderia ser chamada, então, de festa
da confiança inabalável.
III – Coração de Jesus, cheio de bondade e amor
Algumas horas
antes de ser traspassado o Coração de Jesus pela lança de Longinus, estando
prestes a consumar-se a Paixão, dirigiu Nosso Senhor uma súplica a Deus,
recolhida pelo Evangelho: “Pai, perdoa-lhes, porque eles não sabem o que fazem”
(Lc 23, 34). Por que quis Jesus chamá-Lo de Pai e não de Senhor? Dir-se-ia ter
chegado o momento da indignação divina, à vista da rejeição de que era objeto o
Cordeiro sem mancha. Nessa hora Ele lembra ao Eterno Pai sua condição de Filho,
procurando, em função dela, comovê-Lo tanto quanto estava comovido seu Sagrado
Coração, e deixando transparecer seu anelo de salvar até mesmo aqueles que O
martirizavam.
Ora, esses
algozes não tinham ideia de quem estavam crucificando e viam-se na contingência
de pregar um suposto criminoso no madeiro da Cruz, em obediência a uma ordem
recebida. Nós, porém, quando ofendemos gravemente a Deus não podemos afirmar
que não sabemos o que fazemos, uma vez que para haver pecado mortal é preciso pleno
conhecimento e deliberado consentimento do que se faz.
Pai, perdoa-lhe porque ele sabe o que faz!
Deveríamos,
pois, tomar a firme resolução de voltar para Deus o nosso coração, apesar de
nossas inúmeras misérias, rezando: “Senhor, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem,
estando no alto da Cruz, vosso primeiro pensamento foi o de perdoar os que vos
supliciavam, porque não sabiam o que faziam. E esse desejo se realizou: pelo
efeito de vossa oração, no mesmo dia eles abriram os olhos para vossa divindade,
como atestou o centurião romano (cf. Mt 27, 54; Mc 15, 39). Mas, Senhor, eles
eram menos pecadores do que eu, porque não sabiam o que faziam, e eu bem sei o
que faço e quão miserável sou. Ó Jesus, ó Sagrado Coração, quantas vezes não
fui eu também vosso algoz! Quantas vezes não fui eu causa da vossa crucifixão!
Por isso, na Solenidade de hoje eu vos imploro: sede Vós o meu intercessor
junto ao Pai, agora que Vos encontrais sentado à sua direita! Vossa
misericórdia se tornou brilhantíssima aos olhos de toda a História quando
pronunciastes esta primeira palavra: ‘Pai, perdoa-lhes, porque eles não sabem o
que fazem’. Peço-Vos que a façais refulgir ainda mais, implorando: ‘Pai,
perdoa-lhe, porque ele sabe o que faz!’. Ao perdoardes os que sabem o que
fazem, usais de maior clemência do que quando perdoais os que não o sabem. Não
é ilimitado o vosso Coração? Senhor, aqui está alguém que Vos oferece a
oportunidade de mostrar, mais do que na Cruz e no Calvário, a infinita bondade
depositada pela Santíssima Trindade em vosso Sagrado Coração. Tende pena de mim
e implorai o perdão de todas as minhas faltas cometidas com inteira
consciência”.
Esta é a
grandeza da Solenidade de hoje! É a festa da misericórdia, da benevolência, do
perdão! Supliquemos, por intercessão do Imaculado Coração de Maria, que Ele
dilate nosso coração, aumentando-lhe a capacidade para receber a bondade incomensurável
de seu Sagrado Coração, e a graça de nunca desconfiarmos de sua dadivosidade.
1) SÃO TOMÁS
DE AQUINO. Super Epistolam Sancti Pauli Apostoli ad Galatas expositio. C.IV,
lect.2.
2) SÃO LEÃO
MAGNO. In Epiphaniæ Solemnitate. Sermo III, hom.14 [XXXIII], n.1. In: Sermons. 2.ed. Paris: Du Cerf, 1964, v.I, p.229.
3) SANTO
AGOSTINHO. De Civitate Dei. L.XI, c.2. In: Obras. Madrid: BAC, 1958, v.XVI-XVII,
p.717.
4) SANTO
AGOSTINHO. Sermo CCXCIII, n.7. In: Obras. Madrid: BAC, 1984, v.XXV, p.195-196.
5) SÃO LEÃO
MAGNO. In Nativitate Domini. Sermo III, hom.3 [XXIII], n.4. In: Sermons, op.
cit., p.103; 105.
6) SÃO
BERNARDO. Sermones sobre el Cantar de los Cantares. Sermón XXII, n.6. In: Obras
Completas. Madrid: BAC, 1955, v.II, p.138.
7) Ver
Comentário ao Evangelho do XXIV Domingo do Tempo Comum, no Volume VI desta
coleção.
8) Cf. SÃO
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. I, q.64, a.2.
9) Cf. SÃO
CIRILO DE ALEXANDRIA. Explanatio in Lucæ Evangelium. C.XV, v.4: MG 72, 338-339;
SÃO BEDA. In Lucæ Evangelium Expositio. L.IV, c.15: ML 92, 520-521; SÃO
GREGÓRIO MAGNO. Homiliæ
in Evangelia. L.II, hom.14 [ XXXIV], n.3. In: Obras. Madrid:
BAC, 1958, p.712-713; SANTO AMBRÓSIO. Tratado sobre el Evangelio de San Lucas.
L.VII, n.210. In: Obras. Madrid: BAC, 1966, v.I, p.456-457.
10) Cf. SÃO
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. II-II, q.129, a.6, ad 3.
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