Comentário ao Evangelho do 27º Domingo do Tempo Comum - Ano C
Naquele tempo, 5 os apóstolos disseram ao Senhor: “Aumenta a nossa fé!”
6 O Senhor respondeu: “Se vós tivésseis fé, mesmo pequena como um grão de
mostarda, poderíeis dizer a esta amoreira: ‘Arranca-te daqui e planta-te no
mar’, e ela vos obedeceria. 7Se algum de vós tem um empregado que trabalha a
terra ou cuida dos animais, por acaso vai dizer-lhe, quando ele volta do campo:
‘Vem depressa para a mesa?’ 8Pelo contrário, não vai dizer ao empregado: ‘Prepara-me
o jantar, cinge-te e serve-me, enquanto eu como e bebo; depois disso tu poderás
comer e beber?’ 9Será que vai agradecer ao empregado, porque fez o que lhe
havia mandado? 10Assim também vós: quando tiverdes feito tudo o que vos
mandaram, dizei: ‘Somos servos inúteis; fizemos o que devíamos fazer’”. Lc 17,5-10
I – O ser humano quer relacionar-se com os demais
Imaginemos um
homem punido com o isolamento, preso na masmorra de uma longínqua torre,
convencido de estar inteiramente afastado de tudo e de todos. Nessa triste
situação, sem a mínima possibilidade de comunicação com qualquer pessoa, vê
passarem-se os dias… Certa tarde de calor, porém, deita-se no chão e ouve, de
repente, um rumor de vassoura em plena atividade. Surpreendido, aproxima-se da
parede, coloca ali o ouvido e, percebendo pelos ruídos tratar-se da presença de
alguém do lado oposto, dá algumas pancadas no muro. A resposta chega de
imediato. É outro pobre preso que sofre de igual problema: isolado, deseja
entrar em contato com alguém a quem possa transmitir suas aflições e que o
entenda naquela infeliz situação. Depois de muitas batidas descobrem que,
falando junto ao ralo da cela, conseguem se fazer ouvir um ao outro e, a partir
daí, começa um verdadeiro relacionamento entre ambos os cativos, causando-lhes
imensa consolação. Pois, o isolamento absoluto que era o maior tormento daquele
cativeiro, por ferir o instinto de sociabilidade, de alguma forma, tinha-se
rompido com o estabelecimento desse rudimentar modo de comunicação. Essa
singela história nos ilustra a necessidade intrínseca ao homem de entrar em
contato com seus semelhantes.
Um fenômeno comum ao gênero humano: a “fímbria da insegurança”
Tal anseio
natural, consequência do instinto de sociabilidade infundido por Deus em nós, é
inerente a todos os homens.[1] Cada um conserva em si mesmo um entranhado
desejo de obter proteção, de poder apoiar-se em alguém e de sentir-se seguro,
pois Deus não criou o homem autossuficiente. Ele tem numerosas carências e
debilidades que só consegue suprir vivendo em sociedade e com a entreajuda de
seus semelhantes. Por isso, ele tem de ter uma fé humana nos demais. E é
compreensível, pois “sem a fé humana, a vida social seria totalmente
impossível, e boa parte de nossos conhecimentos — os quais cremos serem certos e
seguros — viriam estrepitosamente abaixo”.[2] Entretanto, não existe a
possibilidade de aplicar essa fé com total segurança a ninguém sobre a face da
Terra, pois, “pela natureza, nenhuma pessoa adulta está acima ou abaixo de
outra a tal ponto que uma possa elevar-se à frente da outra como autoridade de
valor absoluto”.[3] Todos sabemos como a natureza humana é falível em
decorrência do pecado original e, por isso, somos levados a conferir nossos
critérios com a opinião dos demais para diminuir a probabilidade de erro,
sobretudo, no que toca à procura da verdade. Não é sem razão que aconselha
Santo Agostinho: “Que nenhum de vós pretenda colocar sua esperança no homem. O
homem só é alguma coisa enquanto se une Àquele por quem foi feito. Porque, se
d’Ele se afastar, nada mais é o homem, ainda quando se una a outros”.[4]
E como o gênero
humano está sujeito ao erro moral e intelectual, o homem com frequência trai a
confiança dos outros, ao valer-se tão só de sua própria natureza, pois sem a
graça é o egoísmo que prevalece sobre o amor ao próximo. Desencadeou-se assim
para a humanidade uma instabilidade fundamental, denominada pelo Prof. Plinio
Corrêa de Oliveira “fímbria da insegurança”, ou seja, “uma espécie de fímbria
do espírito humano, a qual não elimina a possibilidade de conhecermos algumas
verdades com certa firmeza — porém, apenas crepuscular —, misturada com
insegurança”.[5] Dessa forma, carregamos dentro de nós mil indecisões, não
havendo, nem em nós nem nos outros, a garantia plena de agir com acerto. À medida
que os anos e as décadas passam o problema se agrava. A experiência da vida vai
contabilizando as desilusões e as decepções. Constatamos um equívoco aqui, um
erro ali, um engano acolá… E concluímos que não se pode depositar a confiança
no homem. Como resolver, então, esse problema da “fímbria da insegurança” e
adquirir certezas firmes?
Ora, se a
falibilidade natural do homem torna inconsistente a confiança no seu
semelhante, isso, contudo, não acontecerá se houver a ação dessa virtude
sobrenatural, em relação a Deus, cuja prática tornar-se-á possível pela graça,
e cujo agir não é outro senão o da virtude teologal da esperança fortalecida
por firme convicção, como diz São Tomás,[6] e como sintetiza o grande tomista
padre Santiago Ramírez, seguindo a trilha de seu mestre: “Esperança perfeita e
robusta em seu gênero, a qual se chama propriamente confiança […]. Não é uma
esperança qualquer e vacilante, mas uma esperança firme, decidida, certa,
segura, sem titubeios de nenhuma classe. Uma esperança que não falha nem
defrauda”.[7] É a confiança que nos dá a certeza de existir Alguém com o qual
podemos nos relacionar, seguros de nunca produzir em nós equívoco, de nunca
defraudar nossas esperanças legítimas. Esse é Deus!
É tal confiança,
sem dúvida, que será capaz de resolver a questão da “fímbria da insegurança”
oculta no interior de todos os homens, libertando-nos da incerteza que atinge
quantos se aferram ao mundo material, segundo o ensinamento do Bispo de Hipona:
“Aproxima-te, pois, de Deus; esse jamais desmerece porque não existe nada de
mais formoso. Se as coisas daqui nos aborrecem, é por causa de sua
instabilidade, pois elas não são Deus. Ó alma! Coisa alguma poderá saciar-te,
se não for Aquele que te criou. Lá onde colocares tua mão, acharás miséria; só
poderá saciar-te quem te fez à sua imagem. […] Só ali, em Deus, pode haver
segurança”.[8]
A fé viva nos Evangelhos
Essa fé, todavia,
não pode reduzir-se a um simples princípio teórico e doutrinário. Para ser
íntegra, sobretudo em meio a nosso mundo tão conturbado, é preciso aplicá-la a
Alguém: a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade encarnada, Nosso Senhor Jesus
Cristo! Os fatos narrados ao longo dos Evangelhos nos atestam como essa fé viva
era um dom comunicado aos que d’Ele se aproximavam com plena confiança, como,
por exemplo, o centurião romano. Tinha ele fé no poder do Redentor de curar um
dos seus servos, inclusive à distância, e dele afirmaria o Divino Mestre jamais
ter encontrado semelhante fé em Israel (cf. Lc 7, 2-10). A fé daquele
comandante, que causara admiração no próprio Jesus enquanto homem, havia-lhe
sido infundida por Ele mesmo, enquanto Deus. Também a persistente cananeia nos
deu provas de grande fé ao pedir com tanta insistência a cura da filha (cf. Mt
15, 22-28). Mais uma vez era um dom de Deus concedido à estrangeira, em um grau
que nem os próprios judeus possuíam, talvez por não terem querido aceitá-la…
Igualmente o pobre leproso, ao ajoelhar-se e suplicar: “Senhor, se vós quereis,
podeis curar-me!” (Lc 5, 12), manifestava uma fé profunda, sendo, por isso,
imediatamente atendido. Semelhante fé ainda revelou-se na sofrida hemorroíssa,
que padecia havia longos anos. Procurava ela, com humildade, um momento
oportuno para aproximar-se do Messias, acreditando ficar curada se ao menos
conseguisse tocar na orla de seu manto sagrado (cf. Lc 8, 43-48).
Tal era a fé que
Cristo desejava infundir em seus Apóstolos, nesta passagem do Evangelho do 27º
Domingo do Tempo Comum.
II – A virtude fundamental da fé
Nosso Senhor já os
advertira, em ocasiões anteriores, a respeito do risco do amor desordenado às
riquezas — conforme já consideramos, ao comentar a parábola do administrador
infiel (cf. Lc 16, 1-13) e a do pobre Lázaro (cf. Lc 16, 19-31), no Evangelho
do 25º e 26º Domingos do Tempo
Comum —, consequência
de uma fé apequenada. Os discípulos foram, pois, compreendendo a necessidade
dessa fundamental virtude, sem a qual seria impossível perseverar até o fim de
sua missão. Ensina São Tomás [9] que essa é a principal virtude para ter-se o
desprendimento dos bens materiais, bem como para a prática das outras virtudes,
as quais, nas palavras de Royo Marín, “nela se estribam, como o edifício sobre
seus alicerces […]. Informada pela caridade, dela vivem e, graças a ela,
progridem”.[10] É, portanto, indispensável pedi-la a Deus, conforme nos
demonstra o Evangelho desta Liturgia.
A fé é passível de crescimento?
Naquele tempo, 5 os Apóstolos disseram ao Senhor: “Aumenta a nossa fé!”
Mas era preciso
pedir esse aumento de fé, se já a possuíam no seu interior? Todavia, o pedido
dos Apóstolos tinha fundamento. A virtude infusa da fé é passível de acréscimo
ou de diminuição, e tanto pode se fortalecer como enlanguescer-se. Segundo
explica ainda São Tomás,[11] ela cresce ou diminui de forma proporcional ao
número de verdades conhecidas. Por esse motivo, além dos atos de piedade e
devoção praticados — os quais também tornam a fé mais robusta —, fortalecerá
essa virtude quem estudar a Doutrina Católica, ampliando o quadro de verdades
conhecidas pela própria inteligência.
Aumentaremos a fé
se adaptarmos nossa vida diária — trabalhos, obrigações e responsabilidades — à
fé professada, pois, se houver dicotomia entre esta virtude e a vida prática,
entre aquilo que cremos e o que fazemos, a fé terminará por evaporar-se. É
necessário, portanto, que a fé coroe todas as nossas atividades, como destaca o
padre Royo Marín: “as almas que tiverem progredido na vida cristã,
preocupar-se-ão com o incremento desta virtude fundamental até conseguir que
toda a sua vida esteja informada por um autêntico espírito de fé que as
transponha a um plano estritamente sobrenatural, a partir do qual possam ver e
julgar todas as coisas”.[12] Contudo, tal conduta não é tão fácil de ser
mantida. As dificuldades do dia a dia nos fazem chegar a uma conclusão: é
indispensável suplicar com fervor o auxílio divino. Agiram, então, muito bem os
Apóstolos ao pedir o aumento de sua fé, a qual, segundo podemos julgar pela
resposta de Nosso Senhor, era bem frágil…
Era preciso ter fé antes de pedir seu aumento
6 O Senhor respondeu: “Se vós tivésseis fé, mesmo pequena como um grão
de mostarda, poderíeis dizer a esta amoreira: ‘Arranca-te daqui e planta-te no
mar’, e ela vos obedeceria”.
Sua resposta
reveste-se de certa dureza. De fato, a fé de seus escolhidos era ainda menor
que o minúsculo grão de mostarda, quase do tamanho de uma partícula de açúcar.
Ora, bastava uma fé de diminuta dimensão para mandar uma árvore sólida como a
amoreira jogar-se ao mar. Afirmação surpreendente! A amoreira desta passagem de
São Lucas provavelmente corresponde ao Shiquemah — sicômoro —, árvore de raízes
vigorosas, que se fixam no chão com toda a força.[13] Seria possível alguém
realizar tamanha proeza? Entretanto, não fez o Mestre tal declaração apenas de
forma metafórica. A fé é, de fato, capaz de mover montanhas, pois por detrás
dela está o poder de Deus, e quando alguém se une à força divina pela robustez
de tão valiosa virtude, torna-se forte quanto é forte o próprio Deus.
Ante essa
concepção verdadeira da fé, Nosso Senhor contrapõe o conceito errado do mundo a
respeito do relacionamento do homem com Deus.
Uma situação humana, imagem do relacionamento sobrenatural
7 “Se algum de vós tem um empregado que trabalha a terra ou cuida dos
animais, por acaso vai dizer-lhe, quando ele volta do campo: ‘Vem depressa para
a mesa?’ 8 Pelo contrário, não vai dizer ao empregado: ‘Prepara-me o jantar,
cinge-te e serve-me, enquanto eu como e bebo; depois disso tu poderás comer e
beber?’ 9 Será que vai agradecer ao empregado, porque fez o que lhe havia
mandado? 10 Assim também vós: quando tiverdes feito tudo o que vos mandaram,
dizei: ‘Somos servos inúteis; fizemos o que devíamos fazer’”.
O Divino Mestre
tem diante de si ouvintes com acentuado senso hierárquico, portanto, sem os
igualitarismos dos dias hodiernos, e para quem todas as funções sociais eram
muito bem definidas. Por essa razão pôde fazer uso, nesta parábola, da figura
do servo,[14] ou seja, daquele homem sem direitos, cujo trabalho consistia em
cuidar dos animais e dos campos de seu senhor, sem que jamais alguém se tivesse
posto o problema de ocorrer a hipótese por Ele levantada. Embora entre o povo
eleito o tratamento dispensado aos escravos fosse incomparavelmente mais
compassivo do que entre os povos pagãos,[15] era inconcebível imaginar o
próprio servo sentado à mesa do amo. Ao voltar do trabalho do campo, o criado
se lavava e cingia os rins para servir o patrão. Só depois tomava sua refeição.
Esta cena, narrada
por Cristo com sabedoria infinita, ilustra qual deve ser nosso relacionamento
com Deus. Quando conseguimos cumprir inteiramente os Mandamentos ou nossas
próprias obrigações, devemos reconhecer não ter sido por esforço próprio, nem
como fruto de qualidades ou capacidades pessoais, mas, sim, da graça. Antes
mesmo de termos realizado algum ato bom, Nosso Senhor já nos pagou com
antecipação, concedendo-nos sua ajuda. Por isso, mesmo tendo feito o bem, não
temos o direito, por nós mesmos, de merecimento algum. Com efeito, assim o
declara Santo Ambrósio, Padre e Doutor da Igreja: “ninguém se glorie de seu bom
proceder, pois por uma justa dependência devemos nosso serviço ao Senhor. […]
Ele não pode admitir que te apropries do mérito de uma ação ou trabalho, já
que, enquanto estejamos vivos, é dever nosso trabalhar sempre. Portanto, vive
de acordo com a convicção de seres um servo ao qual se encomendaram muitos
afazeres. […] Não te acredites mais do que és pelo fato de te chamarem filho de
Deus — deves reconhecer, sim, a graça, mas não podes esquecer a tua natureza —,
nem te enchas de vaidade por ter servido com fidelidade, pois esse era teu
dever”.[16] Ainda quando cumprimos nossas obrigações, continuamos sendo servos
inúteis, ensina-nos hoje Jesus.
Concepção comercial da religião
Dada a natureza
decaída pelo pecado, a tendência geral do homem é não reconhecer que tudo lhe
vem do Alto, forjando para si uma religião marcada pela mentalidade comercial.
Muitas vezes transferimos o intercâmbio mercantilista de interesses — tão
profundo nas relações humanas de todos os tempos — para o trato com Deus, e
queremos apresentar-nos diante d’Ele cobrando aquilo que julgamos pertencer-nos
pelo fato de termos feito algum bem. Na realidade, ninguém seria capaz de
pronunciar sequer uma jaculatória ou fazer um sinal da cruz com mérito
sobrenatural se não estivesse unido, e até “enxertado”, em Nosso Senhor Jesus
Cristo, que afirmou: “Sem mim, nada podeis fazer” (Jo 15, 5). No campo
sobrenatural, todos os nossos méritos estão ligados a Ele e nos são
transferidos por Ele. Somos meros servos! D’Ele recebemos o ser, a redenção e o
sustento da graça.[17]
A imagem desta
parábola encontra-se, então, ainda distante da realidade, pois o servo ali
figurado conserva alguma liberdade, enquanto nós estamos dentro de uma
escravidão compulsória — nossa origem é a escravidão —, a qual, após a
Redenção, mais se intensificou.
Deus nos premeia por aquilo que Ele mesmo nos concede
O homem deve,
pois, considerar-se um ser contingente, dependente dos outros e consciente de
que, em relação a Deus, essa dependência deverá ser absoluta. Se existimos, é
porque em primeiro lugar Ele existe e, em sua infinita bondade, tirou-nos do
nada, sem nosso consentimento, para dar-nos uma alma na qual pudesse ser
introduzida a vida da graça. Ele nos redimiu e a cada instante sustenta nosso
ser. Tudo é, portanto, gratuito, e quando agimos com perfeição estamos tão só
restituindo-Lhe aquilo que d’Ele mesmo recebemos. Com quanta propriedade afirma
a Sagrada Liturgia: “na assembleia dos Santos, vós sois glorificado e, coroando
seus méritos, exaltais vossos próprios dons!”.[18] De fato, quando as obras
humanas merecem algum prêmio da parte de Deus, isso é devido aos dons ou graças
dadas com antecipação por Ele mesmo. Sendo Ele a Humildade e a Generosidade,
faz-nos trabalhar para sua glória, ajuda-nos a praticar atos de virtude e ainda
nos torna merecedores de sua recompensa, escondendo-Se, como se os merecedores
fôssemos nós.
Entretanto, tal
prodigalidade divina exige de nossa parte reciprocidade: nunca nos apropriemos
daquilo que pertence só a Deus. Somos “servos inúteis”, devendo pedir muito a
virtude da fé, a fim de compreender que Ele é o único a levar tudo adiante, e a
nós cabe apenas o cumprimento de um mandato ou desígnio seu. Assim, não podemos
exigir d’Ele, como se fosse nossa, a glória dos nossos pretensos méritos. Só
com essas disposições de alma estaremos tomando a atitude perfeita no
relacionamento com Ele.
A perfeita contingência em relação a Deus
Uma só criatura
soube ter fé ardente e compreender a contingência de modo perfeito, em sua
plenitude, tendo sido objeto de um dom insuperável da parte de Deus, “porque
olhou para a humilhação de sua escrava” (Lc 1, 48). Somente Ela teve uma noção
clara e sublime de seu nada e de sua dependência completa do Altíssimo. A
partir desse reconhecimento do próprio nada, Deus se inebriou de amor por Ela,
escolhendo-A e constituindo-A um paraíso para Si, superior ao dos próprios
Anjos. A estes fora dado o Céu Empíreo, a nós o Paraíso Terrestre, mas para a
Santíssima Trindade foi escolhida Aquela que disse “eis aqui a escrava do
Senhor” (Lc 1, 38): Maria Santíssima! Belíssimo comentário a esse respeito nos
deixou São Luís Maria Grignion de Montfort: “a divina Maria, direi com os
santos, é o paraíso terrestre do novo Adão, onde Ele se encarnou, por obra do
Espírito Santo, para realizar ali maravilhas incompreensíveis; é o excelso e
divino mundo de Deus, que encerra belezas e tesouros inefáveis; a magnificência
do Altíssimo, onde Ele ocultou, como em seu próprio seio, seu Filho único e,
n’Ele, tudo o que há de mais excelente e precioso”.[19]
III – Nunca perder a fé perante as dificuldades
O Evangelho deste
domingo nos ensina o papel fundamental da fé, na gozosa dependência de Deus. As
desilusões e dificuldades humanas, imprevistas ao longo da vida, são permitidas
pela Providência Divina para marcar em nós o momento culminante no qual Deus ou
o demônio se torna vencedor no campo de batalha interior da alma. Ao presenciar
o desabamento dos sonhos construídos sobre os fundamentos frágeis de nosso
instinto de sociabilidade desregrado, a fé pode diminuir e ficarmos egoístas,
procurando a segurança nos bens materiais. Não obstante, se, pelo contrário,
mantivermos a confiança — esperança fortalecida pela fé — recomendada por Nosso
Senhor neste trecho do Evangelho, teremos a possibilidade de uma vida feliz
nesta Terra, ainda que sempre acompanhados da cruz, em toda e qualquer
circunstância, devido a nosso estado de prova. Só essa fé firme e sem jaça nos
faz viver, de fato, numa submissão total a Deus, tornando-nos capazes de
enfrentar os sofrimentos com ânimo.
Crescer na fé
significa, muitas vezes, presenciar ou sofrer um desastre e manter, no fundo da
alma, uma confiança inabalável. Cena mais pungente não poderia enfrentar quem,
ao chegar ao Calvário, se deparasse com Jesus crucificado entre dois ladrões!
No entanto, com a alma partida diante de tal drama, encontraria consolo se
soubesse pensar nas maravilhas que daquela Cruz iriam surgir, tal como fazia
Nossa Senhora, que ali estava, de pé, sem esmorecer. Sejamos confiantes, pois
os desastres são permitidos por Deus para se obter algum bem maior. A fé é o
unguento para todas as nossas dores, é o ânimo e a alegria em meio aos
sofrimentos deste grande deserto — a existência no exílio terreno —, até
atingirmos um dia a felicidade eterna, na glória celestial.
A fé conquistará o mundo!
Vivemos em uma
época de ateísmo em que a fé vai cada vez mais se evanescendo no coração das
pessoas. O terrível orgulho predomina em face de Deus, e o mundo não aceita nem
adere às suas verdades. Diante de tal humanidade afastada de seu próprio fim,
nosso anseio de católicos é o de ver a Boa-nova do Evangelho conquistar a face
da Terra, de maneira a produzir os mais belos resultados em matéria de
santidade. Temos bem presente o quanto as condições do momento estão longe de
tornar isso naturalmente possível. Por isso, nos é pedido um dos maiores atos
de fé jamais vistos e exigidos até os dias atuais.
Se os Apóstolos —
escolhidos diretamente por Nosso Senhor — pediram um aumento de sua fé, como
não o devemos pedir nós? Peçamos, pois, a Ele, uma fé robustíssima, suplicando:
Senhor, Vós sois Todo-Poderoso e criastes o dom da fé para infundi-lo nas almas;
Vós tendes a possibilidade de criar essa virtude em grau infinito. Dai-nos,
então, a fé de que tanto precisamos! Vinde e concedei-nos um fulgor de fé como
nunca existiu na História! ²
[1]
Cf. TAPARELLI, SJ, Luis. Ensayo teórico de Derecho Natural. 2.ed. Madrid: San José, 1884, t.I, p.154-155.
[2]
ROYO MARÍN, OP, Antonio. La fe de la Iglesia. 4.ed. Madrid: BAC, 1979, p.17.
[3]
Idem, p.16.
[4]
SANTO AGOSTINHO.Enarratio in psalmum LXXV, n.8. In: Obras. Madrid: BAC, 1965, v.XX, p.992-993.
[5]
CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Palestra. São Paulo, 29 maio 1965.
[6]
Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. II-II, q.129, a.6, ad 3.
[7]
RAMÍREZ, OP, Santiago. La esencia de la esperanza cristiana. Madrid: Punta
Europa, 1960, p.120-121.
[8]
SANTO AGOSTINHO. Sermo CXXV, n.11. In: Obras. 2.ed.
Madrid: BAC, 1965, v.X, p.531-532.
[9]
Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., q.4, a.7.
[10]
ROYO MARÍN, OP, Antonio. Teología de la perfección cristiana. 5.ed. Madrid:
BAC, 1968, p.476.
[11]
Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., q.5, a.4.
[12]
Cf. ROYO MARÍN, La fe de la Iglesia, op. cit., p.79.
[13] Cf. LAGRANGE, OP, Marie-Joseph. Évangile selon
Saint Luc. 4.ed. Paris: J. Gabalda, 1927, p.454.
[14]
Embora a tradução litúrgica use neste versículo a palavra empregado — mais
adiante encontraremos o termo servo —, no original grego consta douloj, isto é
escravo ou servo.
[15]
Cf. TUYA, OP, Manuel de; SALGUERO, OP, José. Introducción a la Biblia. Madrid:
BAC, 1967, v.II, p.347-354.
[16]
SANTO AMBRÓSIO. Tratado sobre el Evangelio de San Lucas. L.VIII, n.31-32. In: Obras. Madrid: BAC, 1966,
v.I, p.492.
[17]
Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., I-II, q.114, a.1.
[18]
RITO DA MISSA. Oração Eucarística: Prefácio dos Santos, I. In: MISSAL ROMANO.
Trad. Portuguesa da 2a. edição típica para o Brasil realizada e publicada pela
CNBB com acréscimos aprovados pela Sé Apostólica. 9.ed. São Paulo: Paulus,
2004, p.451.
[19]
SÃO LUÍS MARIA GRIGNION DE MONTFORT. Traité de la vraie dévotion à la Sainte
Vierge, n.6. In: Œuvres Complètes. Paris: Du Seuil, 1966, p.490.
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