Comentários ao Evangelho XXVIII Domingo do Tempo Comum
– Ano C
11 “Aconteceu que, caminhando para
Jerusalém, Jesus passava entre a Samaria e a Galileia. 12 Quando
estava para entrar num povoado, dez leprosos vieram ao seu
encontro. Pararam à distância, 13 e gritaram: ‘Jesus, Mestre, tem
compaixão de nós!’ 14 Ao vê-los, Jesus disse: ‘Ide apresentar-vos aos
sacerdotes’. Enquanto caminhavam, aconteceu que ficaram curados. 15
Um deles, ao perceber que estava curado, voltou glorificando a Deus em
alta voz; 16 atirou-se aos pés de Jesus, com o rosto por terra, e lhe
agradeceu. E este era um samaritano. 17 Então Jesus lhe perguntou:
‘Não foram dez os curados? E os outros nove, onde estão? 18 Não houve
quem voltasse para dar glória a Deus, a não ser este estrangeiro?' 19
E disse-lhe: ‘Levanta-te e vai! Tua fé te salvou'" (Lc 17, 11-19).
Dez
miraculados! Dir-se-ia que todos manifestariam sua gratidão, embora cada
um com suas características próprias. Entretanto, só um deles - um
samaritano - obteve o milagre da cura da alma. E os outros nove
judeus? Não agradeceram...
Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP
I - O dever de gratidão das almas
beneficiadas
Raras vezes interrompemos as ocupações cotidianas para considerar
quantos bens nos são concedidos pela Divina Providência ao longo da nossa vida,
ainda que não os tenhamos pedido ou sequer desejado. Se formos até à raiz de
tais benefícios, devemos lembrar que não existiríamos sem um desígnio de Deus.
A partir do nada, foi Ele constituindo a diversidade de seres, ao longo
dos seis dias da criação, como está descrito no Gênesis, até modelar Adão do
barro e Eva de sua costela, e neles infundir a vida. E cada nascimento, que
ocorre a todo instante no mundo inteiro, é um fato extraordinário porque à lei
física se acrescenta uma lei espiritual: Deus infunde uma alma inteligente,
criada pelo simples desejo de sua vontade, num corpo concebido pelo concurso do
pai e da mãe.1 E tudo o mais - a saúde, o alimento, o repouso, o conforto
- vem d'Ele, direta ou indiretamente. Além disso, o Criador nos promete para
depois de transpor os umbrais da morte um grande milagre: tendo nossos
corpos sofrido a decomposição, voltando ao barro do qual fomos feitos,
retomaremos um corpo glorioso que se unirá de novo à nossa alma, já na
visão beatífica, e gozaremos da felicidade de Deus por toda a eternidade.
Quanta bondade! Entretanto... como é a nossa resposta? Somos gratos por
tudo quanto recebemos? Essa é a pergunta que surge ao considerarmos o Evangelho
do 28º Domingo do Tempo Comum que nos mostra diferentes atitudes tomadas por
quem é objeto de um grande benefício vindo das dadivosas mãos do Salvador.
II - Duas classes de milagre: do corpo
e do espírito
Na época de Nosso Senhor, o leproso, devido à falta de recursos médicos
que possibilitassem o seu tratamento - carência que se prolongou por muitos
séculos -, era um pária desprezado pela sociedade. Uma vez detectada a
enfermidade, era ele apresentado ao sacerdote que, após um minucioso exame, o declarava
legalmente impuro mediante um cerimonial apropriado. Se é verdade que ele
não era deportado para uma ilha, segundo o costume adotado em tempos
posteriores, deveria, contudo, ausentar-se da cidade, do convívio humano e
viver isolado no campo. Obrigavam-no, ademais, a utilizar uma veste
característica para anunciar a situação de excomunhão social em que se
encontrava e a seguir certas normas, como a de se deslocar tocando uma
campainha para indicar sua presença, de forma que as pessoas abrissem caminho,
evitando o risco de contaminação pelo contato ou pela simples cercania.
Aproximando-se de alguém além do permitido, recebia de imediato uma severa
reprimenda, pelo pânico gerado diante do perigo do mal se espalhar.
Arrastava-se assim "lamentando-se de si mesmo como o faria por um defunto,
com as vestes rasgadas, a cabeça descoberta e a barba coberta com seu
manto, gritando aos transeuntes, para que não se aproximem:
‘Imundo!'".2
Ao longo de uma vida sem perspectiva de cura, veria seus próprios
membros apodrecerem até caírem, num processo causador de nauseabundo odor e de
incômodos vários.3 Tal estado produzia, como é compreensível, um profundo
trauma psicológico. Ademais, como as doenças eram tidas, naquele tempo,
como castigo pelos próprios pecados ou por aqueles cometidos pelos
antepassados, a lepra trazia consigo também um drama moral: ser leproso de
corpo significava, antes de tudo, possuir lepra de alma.
"Encontramo-nos com ideias populares dos antigos, nas quais se mistura o
religioso e o natural. O leproso se considerava castigado por Deus em virtude
de pecados ocultos".4 Nesse contexto social, desenrola-se a cena recolhida
por São Lucas.
Unidos para suplicar um milagre
11 "Aconteceu que, caminhando para Jerusalém,
Jesus passava entre a Samaria e a Galileia.12 Quando estava para entrar num
povoado, dez leprosos vieram ao seu encontro. Pararam à distância, 13 e
gritaram: ‘Jesus, Mestre, tem compaixão de nós!'".
Reza o ditado que a desgraça em conjunto é sempre mais alegre. Os dez
leprosos de que fala o Evangelho formavam uma sociedade entre si, e deste modo
tornavam suas penas mais suportáveis e garantiam uma companhia até sobrevir a
morte, termo forçoso daquela lenta e dolorosa enfermidade. Sem dúvida, já
tinham ouvido falar do Mestre e sabiam das numerosas curas por Ele operadas,
entre as quais se contavam várias do mal de que padeciam. Ao receber a notícia
da proximidade do Divino Taumaturgo, logo se puseram a caminho e foram tentar
um encontro com Nosso Senhor, com a esperança de não surgir obstáculo algum que
lhes impedisse um contato, mesmo ao longe.
Com efeito, pelo relato evangélico vemos como esses dez leprosos
cumpriam os preceitos legais, no que se refere à sua terrível doença. Por tal
motivo não ousaram acercar-se demais de Jesus, e colocando-se a certa distância
imploraram a cura, por misericórdia. Eles obedeceram à Lei, sim, mas
faltou-lhes fervor para se ajoelharem todos juntos diante de Cristo, que
decerto os teria tocado e curado naquele momento, como no episódio antes
ocorrido com outro leproso (cf. Mt 8, 2-4; Mc 1, 40-45; Lc 5, 12-16).
Este fato nos serve de lição para a vida espiritual: tratando-se do
relacionamento com Jesus, devemos agir com plena confiança e intimidade
irrestrita, nunca receando recorrer a Ele, por piores que sejam os deslizes
morais que nos pesem na consciência.
Uma prova para a fé dos leprosos
14 "Ao vê-los, Jesus disse: ‘Ide
apresentar-vos aos sacerdotes'. Enquanto caminhavam, aconteceu que ficaram
curados".
Percebendo logo a chegada deles, Nosso Senhor os olhou. Ele não operou a
cura naquele ato, por não querer causar demasiada estupefação na opinião
pública. Assim, abrindo um pouco o espaço no meio da multidão que estava junto
d'Ele, mandou, com autoridade, que fossem se apresentar aos sacerdotes.
Naquela época era muito rara a cura da lepra. Nas poucas ocasiões em que
isso acontecia realmente, ou quando constatado que o próprio diagnóstico
inicial tinha sido equivocado, sendo o leproso já conhecido como tal na região,
deveria por Lei apresentar-se a um sacerdote. Este lavrava uma ata na qual
constavam as características do caso, desde os primeiros sintomas até o
desaparecimento da enfermidade, e o documento possibilitava ao antigo doente a
reintegração no convívio social (cf. Lv 14, 1-32).
Pois bem, o Mestre determinou esta medida, embora nem houvesse sinais
visíveis de cura. A pronta obediência dos dez leprosos patenteia a fé que
possuíam em Jesus - fruto por certo de uma moção da graça, infundida pelo
próprio Homem-Deus - e denota a forte convicção de que Ele os curaria pelo
caminho. Estando todos de acordo em observar essa norma, empreenderam a viagem
rumo a Jerusalém.
Podemos conjecturar que eles saíram em conjunto, experimentando grande
consolação interior, pois Nosso Senhor ia criando graças para alimentar em suas
almas a fé na própria cura. E cada um, segundo sua crença e temperamento,
demonstraria isso de uma forma diferente dos outros. Entre eles, um mais
silencioso pensaria, quiçá, numa lepra pior que a do corpo, que era a do
pecado, pois vivia afastado da religião verdadeira... era samaritano. Confiante
na cura, cogitava no modo de melhor estar à altura do prodígio de que em
breve seria objeto.
Finalmente, durante o percurso, deram-se conta de que a lepra os
abandonara e, sem dúvida, prorromperam em gritos de alegria. A
gravidade do mal de que se viram livres concorre mais ainda para
certificar a grandeza do milagre operado. Apressaram então o passo para obterem
quanto antes o atestado de cura.
A gratidão de um só
15 "Um deles, ao perceber que estava curado,
voltou glorificando a Deus em alta voz; 16 atirou-se aos pés de Jesus, com
o rosto por terra, e lhe agradeceu. E este era um samaritano".
Houve um, entretanto, que ao invés de caminhar rumo ao Templo, resolveu
voltar para agradecer a Jesus, cantando as glórias de Deus e manifestando
enorme alegria por ter encontrado Alguém em quem se apoiar e a quem seguir. Era
aquele que contraíra não só a lepra física, mas também a lepra da alma. Se
ele acompanhara inicialmente os outros doentes para se apresentar ao
sacerdote, era apenas porque constituía uma sociedade com eles, pois, não sendo israelita,
estava isento de tal obrigação. Sem embargo, a partir do momento em que foram
curados, a comunidade perdia sua razão de ser e ele tornava-se aos olhos
dos demais um estrangeiro infiel, um samaritano qualquer e, portanto, odiado e
maltratado pelos judeus. Vendo Nosso Senhor rodeado de gente, foi se
aproximando d'Ele, abrindo com sua presença um vácuo de repugnância na
aglomeração. Não obstante, enquanto ele avançava, todos puderam comprovar sua
carnadura inteiramente modificada, pois, sem dúvida, como acontecera com Naamã
- cuja cura é narrada pela primeira leitura deste domingo -, "a sua pele
tornara-se como a de uma criança" (II Re 5, 14), alva, sem queimaduras do
Sol, dando inclusive a impressão de que tinha engordado um tanto. Vendo a
mudança, a multidão ficou impactada. Chegando perto do Divino Mestre, o
samaritano prostrou-se por terra, em sinal de adoração.
Por cima do preceito legal de certificar a cura, a principal obrigação
de todos era agradecer a quem os curara. Quando Nosso Senhor disse "ide
apresentar-vos aos sacerdotes", Ele não os proibiu de exprimir
reconhecimento ao benfeitor. Deu-lhes apenas uma recomendação, não querendo
ferir o livre-arbítrio dos leprosos por respeitar essa faculdade que nos é oferecida
para escolhermos o bem,5 nem fazê-los perder o mérito que adquiririam pela
gratidão. Todavia, desdenhando a oportunidade, os outros nove resolveram
caminhar em rumo contrário ao de Jesus. Mais ainda, nada contradiz a hipótese
de que regressaram mais tarde a sua vida normal, esquecendo-se por
completo de quem os tinha beneficiado.
Culposa omissão
17 "Então Jesus lhe perguntou: ‘Não foram dez
os curados? E os outros nove, onde estão? 18 Não houve quem voltasse para dar
glória a Deus, a não ser este estrangeiro?' 19 E disse-lhe: ‘Levanta-te e vai!
Tua fé te salvou'".
A surpresa manifestada por Nosso Senhor tinha um intuito formativo sobre
aqueles que O cercavam e leva-nos a fazer a seguinte reflexão: dez foram
curados da lepra de modo miraculoso e, dentre estes, nove retornaram ao
meio social em que viviam antes de contraírem a enfermidade. Pertencentes ao
establishment local, ansiavam por reintegrar-se no ambiente mundano e
davam mais importância ao entorno corrompido e no qual foram contagiados pela
lepra, do que ao convívio com o Mestre. Essa era a gratidão do povo judeu, o
mais favorecido entre todos, uma vez que o Messias viera em primeiro lugar
para as "ovelhas perdidas da casa de Israel" (Mt 15, 24)... Conforme
ressalta Maldonado, "aqueles, como judeus, certamente deveriam ter-se
mostrado mais agradecidos a Deus, como seu próprio nome lhes recordava; e,
contudo, foram os mais ingratos; os que tinham motivo especial para reconhecer
e receber a Cristo como seu libertador, que havia sido enviado propriamente
para eles, eram os que pareciam conhecê-Lo menos que os outros".6
Para eles, o episódio da cura operada por Nosso Senhor ficara para o
passado. Hoje ignoramos seu paradeiro, pois desapareceram na História.
Pela falta de gratidão, é recusado um
milagre ainda maior
Tal ingratidão em relação a Deus
quiçá leve ao inferno, já que pode desencadear uma grande quantidade de outros
pecados. "O primeiro grau de ingratidão", ensina São Tomás de
Aquino, "é a ausência de retribuição; o segundo é a dissimulação, ou seja,
como que escondendo o fato de se ter recebido o benefício; e, finalmente o
terceiro e mais grave consiste em não reconhecer o benefício, seja por esquecimento seja por qualquer outro modo".7
É preciso, sobretudo, considerar que,
além da lepra física, padeciam eles também de uma lepra moral chamada
mundanismo, que os tornava cegos de Deus e fazia com que pusessem sua
felicidade no prestígio social. O Mestre os curou da primeira para que
pudessem, no momento de voltar e agradecer, serem curados da segunda.
Entretanto, pela ingratidão, acentuaram ainda mais a lepra moral, se bem
estivessem livres da física. Isso nos deve levar a refletir sobre o perigo de
certos relacionamentos humanos que não nos aproximam de Jesus. Pode ser que em
determinado momento tenhamos de Lhe retribuir algum dom ou favor e,
infelizmente, nos esqueçamos desse dever por dar mais valor às amizades
terrenas.
O samaritano é favorecido com outro
milagre portentoso
No extremo oposto dessa postura encontra-se o décimo leproso,
originário da Samaria, região habitada por um povo tisnado por séculos de
infidelidade à verdadeira religião. Uma vez recuperada a saúde, ele não
tinha a quem recorrer e, percebendo o grande bem que lhe fora feito, soube
procurar a sociedade verdadeira. Ele não pediu o perdão de seus pecados, a
salvação ou mesmo a entrada no Reino dos Céus, nem suplicou como o Bom Ladrão
na cruz: "Senhor, lembra-te de mim quando entrares no teu Reino" (Lc
23, 42). Contudo, ele agradeceu e a partir deste ato de gratidão, Jesus o
favoreceu com um milagre maior que a cura da lepra: o perdão dos pecados.
Quando obtemos um milagre e somos gratos, alcançamos outro maior que o
pedido, pois Deus sabe das nossas necessidades. Esse duplo miraculado
provavelmente seguiu Jesus por toda a parte e podemos conjecturar ser ele um
dos santos que hoje povoam o Céu e gozam do convívio com a Santíssima Trindade.
Os outros nove, de que sentença se tornaram merecedores? Não nos é dado
conhecer o destino post-mortem das almas, mas quiçá tenham ido, pelo menos, ao
Purgatório, por tamanha ingratidão... Por isso, quanto devemos temer o
perigo acarretado para a vida espiritual por uma atitude semelhante à deles em
relação aos bens recebidos do Salvador!
III - A lepra, enfermidade simbólica
Nesta passagem, Cristo nos mostra a lepra como uma doença simbólica,
pois ela destrói o organismo e deforma a beleza do semblante. Ora, muito pior
que a lepra física é a espiritual contraída por quem comete um pecado mortal.
Se a lepra física desfaz o corpo, a do espírito enfeia a alma, a torna
repulsiva aos olhos de Deus e faz com que a pessoa se torne escrava de suas más
tendências e paixões. O leproso físico era expulso da sociedade, enquanto o
espiritual é retirado de uma sociedade muito mais excelente, a divina, pela
privação da graça santificante, das virtudes, dos dons, de todo o organismo
sobrenatural e, sobretudo, da inabitação da Santíssima Trindade. "A lei
dos judeus considera a lepra como uma enfermidade imunda, e a Lei do
Evangelho não considera imunda a lepra externa, mas sim a interna".8 A
lepra física é contagiosa, característica verificada também na da alma,
pois a pessoa que abraça as vias do pecado acabará causando escândalos que
levarão outros à ruína espiritual. Se a lepra física, depois de uma vida
infeliz, levava à morte, a lepra do pecado amargura a existência e conduz
a uma morte muito mais terrível: a eterna infelicidade, no inferno. A lepra
física atinge apenas o corpo, mas se o doente enfrentar a situação com cristã
resignação e espírito sobrenatural progredirá na virtude, podendo vir a
ser santo. O pecado, embora possa ser cometido sem suficiente noção da
gravidade de suas consequências, destrói a vida divina na alma, que é sua maior
beleza, dano muito pior do que destruir a formosura do corpo e a saúde.
A cena repete-se ao longo da História
O milagre operado por Nosso Senhor ao curar os dez leprosos, Ele o
continua a realizar a todo instante em favor de qualquer pecador que,
arrependido, venha a suplicar o seu perdão. Ele exige apenas que seja obedecida
a mesma recomendação dada aos leprosos: apresentar-se ao sacerdote. Esta
prescrição legal não era senão uma pré-figura da absolvição sacramental,
instituída por Nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual nossas almas são
purificadas da lepra do pecado.
O Evangelho de hoje sugere-nos uma atualíssima aplicação. Não temos
lepra física, porém, nem sempre podemos dizer que estamos isentos da lepra
espiritual. E em quantas ocasiões fomos mais beneficiados que os dez
leprosos... É preciso, pois, não agir como os nove ingratos, mas imitar o
exemplo do samaritano: voltar para agradecer a Nosso Senhor Jesus Cristo por
nos ter curado tantas vezes da lepra interior, a começar pela maldição do
pecado original, também por Ele abolida.
A prática da verdadeira gratidão
No entanto, quão rara é a virtude da gratidão! Muitas vezes ela se
pratica apenas por educação e meras palavras. Todavia, para ser autêntica, é
preciso que ela transborde do coração com sinceridade. É lamentável, afirma o
Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, que "a virtude da gratidão seja
entendida hoje de um modo contábil. De maneira que, se alguém me faz um
benefício, eu devo responder, contabilisticamente, com uma porção de gratidão
igual ao benefício recebido. Há, portanto, uma espécie de pagamento: favor se
paga mediante afeto, bem como mercadoria se paga mediante dinheiro. Então, eu
recebi um favor e tenho de arrancar de dentro de minha alma um sentimento de
gratidão. Também fico pago, tenho um alívio, estou quite".9 Essa é uma
forma pagã, materialista, de conceber a gratidão. Bem diferente é essa virtude
quando impregnada de espírito católico.
"A gratidão é, em primeiro lugar, o reconhecimento do valor do
benefício recebido. Em segundo lugar, é o reconhecimento de que nós não
merecemos aquele benefício. E, em terceiro lugar, é o desejo de dedicar-nos a
quem nos fez o serviço na proporção do serviço prestado e, mais ainda, da
dedicação demonstrada com relação a nós. Como dizia Santa Teresinha, ‘amor só
com amor se paga'. Ou a pessoa paga dedicação com dedicação ou não pagou.
[...] Dentro dessa perspectiva, a gratidão de nossas almas ao benefício que
Nossa Senhora nos fez, consentindo na morte de seu Divino Filho e
aceitando as dores que sofreu para que fôssemos resgatados, [...] deve ser
imensa e deve nos levar a querer servi-La com uma dedicação análoga".10
Ora, além de dar-nos a vida humana, Deus nos concede o inestimável
tesouro da participação na sua vida divina pelo Batismo e, mais ainda, nos dá
constantemente a possibilidade de recuperar esse estado quando perdido pelo
pecado, bastando para isso o nosso arrependimento e a Confissão sacramental.
Sobretudo dá-Se a Si mesmo em Corpo, Sangue, Alma e Divindade como
alimento espiritual para nos transformarmos n'Ele, santificando--nos de maneira
a nos garantir uma ressurreição gloriosa e a eternidade feliz. Ele nos deixou
sua Mãe como Medianeira, para cuidar do gênero humano com todo carinho e
desvelo. Os benefícios que Deus nos outorga são, assim, incomensuráveis! Qual
não deve ser, pois, nossa gratidão em relação a Nosso Senhor e a sua Mãe
Santíssima? Abraçar com entusiasmo e abnegação a santidade e batalhar com
sempre crescente dedicação pela expansão da glória de Deus e da Virgem
Puríssima na Terra, eis o melhor meio de corresponder ao infinito amor do
Sagrado Coração de Jesus, que se derrama sobre nós às torrentes, do nascer do
Sol até o seu ocaso.
1. Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. I, q.90,
a.3; a.4, ad 1.
2. COLUNGA, OP, Alberto; GARCÍA CORDERO, OP,
Maximiliano. Biblia Comentada. Pentateuco. Madrid: BAC, 1960, v.I, p.688.
3. Cf. LAGRANGE, OP,
Marie-Joseph. Évangile selon Saint Marc. 5.ed. Paris: J. Gabalda, 1929, p.29.
4. COLUNGA; GARCÍA CORDERO, op. cit., p.685.
5. Cf. SANTO AGOSTINHO. De Civitate Dei. L.XIV, c.11,
n.1 In: Obras. Madrid: BAC, 1958, v.XVI-XVII, p.951.
6. MALDONADO, SJ, Juan de. Comentarios a los Cuatro
Evangelios. Evangelios de San Marcos y San Lucas. Madrid: BAC, 1951, v.II,
p.728.
7. SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., II-II, q.107, a.2.
8. TITO BOSTRENSE, apud SÃO TOMÁS DE AQUINO. Catena
Aurea. In Lucam, c.XVII, v.11-19.
9. CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Palestra. São Paulo, 1
jun. 1974.
10. Idem, 27 dez. 1974.
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