Comentário ao Evangelho III Domingo do Advento (Domingo “Gaudete”)
Naquele tempo, 2 João estava na prisão. Quando ouviu falar das obras de
Cristo, enviou-Lhe alguns discípulos, 3 para Lhe perguntarem: “És Tu, Aquele
que há de vir, ou devemos esperar um outro?”
4 Jesus respondeu-lhes: “Ide contar a João o que estais ouvindo e vendo:
5 os cegos recuperam a vista, os paralíticos andam, os leprosos são curados, os
surdos ouvem, os mortos ressuscitam e os pobres são evangelizados. 6 Feliz
aquele que não se escandaliza por causa de Mim!”
7 Os discípulos de João partiram, e Jesus começou a falar às multidões
sobre João: “O que fostes ver no deserto? Um caniço agitado pelo vento? 8 O que
fostes ver? Um homem vestido com roupas finas? Mas os que vestem roupas finas
estão nos palácios dos reis.
9 Então, o que fostes ver? Um profeta? Sim, Eu vos afirmo, e alguém que
é mais do que profeta. 10 É dele que está escrito: ‘Eis que envio o meu mensageiro
à tua frente; ele vai preparar o teu caminho diante de Ti’. 11 Em verdade vos
digo, de todos os homens que já nasceram, nenhum é maior do que João Batista. No
entanto, o menor no Reino dos Céus é maior do que ele” (Mt 11, 2-11).
O caminho para a felicidade
A procura da
felicidade norteia a existência de toda criatura humana, por disposição divina.
A Liturgia do Domingo “Gaudete” indica o verdadeiro caminho para encontrá-la e
oferece um exemplo seguro a seguir.
Mons.
João Scognamiglio Clá Dias, EP
I – Uma lufada de ânimo para chegar até o fim
Dizia o célebre
teórico de guerra Karl von Clausewitz1 que a melhor forma de vencer um
adversário é fazê-lo perder o ânimo de combater, pois a quebra de sua força
moral é a causa principal de seu aniquilamento físico. Assim, quando
empreendemos uma ação com desânimo, não atingimos a meta. Pelo contrário, quem
tem uma confiança sólida, baseada numa fé vigorosa, desenvolve energias e
entusiasmo para perseverar até o fim com galhardia. Se, por acaso, na
realização de um árduo esforço, sentimos faltar o fôlego, basta uma lufada de
esperança para redobrar as boas disposições e garantir o sucesso.
A Igreja, no 3º
Domingo do Advento — chamado Domingo Gaudete —, tem em vista este propósito:
fazer uma pausa nas admoestações do período de penitência e amenizar a tristeza
causada pela lembrança dos pecados cometidos, para considerar com alegria a
perspectiva do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo. Em breve seremos
libertados de nossa miséria, se soubermos ouvir os seus ensinamentos e nos
abrirmos às graças que Ele nos traz, e poderemos seguir adiante com entusiasmo,
confortados pela certeza de que nos será dada a salvação. Esse verdadeiro
gáudio pela próxima vinda do Redentor é a nota tônica desta Missa, simbolizada
pela cor rósea dos paramentos e expressa nos textos litúrgicos, sem, todavia,
excluir totalmente o caráter penitencial. Depois do pecado original, a cruz
tornou-se indispensável para obtermos a glória no cumprimento da finalidade
para a qual fomos criados.
A sede de felicidade da criatura humana
Se voltarmos nossa
atenção para cada criatura humana, encontraremos em todas elas o desejo de
alcançar a felicidade. Quando Adão, belíssimo boneco de barro, saiu das mãos
divinas e lhe foi infundido um sopro de vida, já possuía ele essa aspiração que
era atendida com largueza por sua participação na própria natureza de Deus, a
Felicidade Absoluta. Tão elevada era a figura deste varão que o Senhor ia
visitá-lo no Paraíso, à hora da brisa da tarde (cf. Gn 3, 8). Eram felizes
nossos primeiros pais! Porém, expulsos daquele local de delícias em
consequência do pecado, Adão e Eva viram-se obrigados a habitar este mundo
repleto de dificuldades, sem perder, entretanto, aquele anseio de felicidade.
Ardiam de desejo de retornar ao estado de outrora, de gozar das maravilhas que
tinham conhecido no Éden. Mais tarde, constituído o povo de Israel,
especialmente amado pela Providência, esperava ele o advento de um Salvador que
o tirasse dessa desditosa situação. Com o transcurso dos séculos e dos
milênios, os hebreus ― sempre numa tremenda instabilidade e submetidos à
escravidão por diversas vezes ― foram alimentando a ideia de que o Messias
seria um homem aquinhoado por dons meramente naturais, portador de soluções
humanas e políticas para todos os problemas. Sua grande incógnita era acerca da
vinda deste enviado que traria a felicidade, a qual já não concebiam como uma
condição semelhante à do Paraíso, mas segundo padrões terrenos. Algo parecido
ocorre conosco, pois sabemos que o centro de nossa vida e a fonte da alegria é
Nosso Senhor Jesus Cristo; contudo, as ilusões do mundo apontam para uma
pseudofelicidade baseada em boa carreira, na aquisição de um valioso
patrimônio, numa posição de prestígio, num vantajoso casamento ou, talvez, em
negócios lucrativos. Numa palavra, a felicidade para os que assim pensam está
na matéria, e não em Deus. Eis aí o lamentável equívoco.
Para desfazer esta
falácia, a Liturgia do Domingo da Alegria nos indica o verdadeiro caminho da
felicidade e oferece um exemplo seguro a seguir.
II – A alegria de cumprir a própria missão
O episódio narrado
na sequência evangélica do 3º Domingo do Advento dá-se em circunstâncias muito
especiais. Nosso Senhor estava adentrando o segundo ano de sua vida pública e
já realizara inúmeros milagres, encontrando-Se de regresso da pequenina cidade
de Naim, onde por sua iniciativa ressuscitara o filho de uma viúva (cf. Lc 7,
11-15). Ao passar pelas estradas tortuosas da região entrou no vilarejo e deparou-Se
com alguns homens transportando um morto. Mandou parar o cortejo e restituiu a
vida ao defunto, entregando-o em seguida à sua mãe. Este fato teve enorme
repercussão que, somada à de muitos outros, moveu Israel inteiro a falar do
grande Profeta que havia surgido.
O Precursor pagou sua fidelidade à verdade com a prisão
“Naquele tempo, 2a João estava na prisão”.
João Batista, varão
íntegro que recentemente abalara Israel com sua pregação e exemplo de vida,
havia sido preso. Em sua retidão, o Precursor dissera algumas verdades ao rei
Herodes Antipas ― que, escravo das próprias paixões, era dominado por uma
concubina, a esposa de seu irmão Filipe ― e, por isso, o tirano resolvera
prendê-lo. Pungente contraste: as paixões desregradas e soltas de Herodes dão-lhe
uma liberdade de ação ilegítima, e a honestidade de João leva-o à prisão.
Na perspectiva do
Domingo Gaudete surge uma pergunta: qual dos dois goza de autêntica alegria,
Antipas, o adúltero, ou São João, encarcerado por sua fidelidade? Devemos nos compenetrar
de que Deus criou o homem para um destino eterno, no gáudio ou no sofrimento.
Portanto, a verdadeira alegria é a que nos conduz à felicidade do Céu, e não
aquela que nos acarreta a desgraça sem fim. No entanto, a humanidade bem
gostaria de criar uma terceira via: um limbo onde não houvesse sofrimento nem
possibilidade de visão beatífica, mas apenas uma vida natural, puramente
sensitiva, pela eternidade inteira.
Lembremo-nos da
importante máxima: “non datur tertius
― não há uma terceira posição”. Esta foi inventada por satanás ao cair do Céu e
é feita de fumaça, é ilusória, pois na realidade não existe: ou violamos a
moral e damos vazão às nossas más inclinações, reproduzindo em nós a
pseudoalegria de Herodes Antipas, ou somos íntegros, a exemplo de João, e
também nós estamos a todo instante na “prisão”, ou seja, subjugando e
acorrentando nossas tendências e paixões desordenadas.
Preocupação exclusiva com a glória de Cristo
2b “Quando
ouviu falar das obras de Cristo, enviou-Lhe alguns discípulos, 3
para Lhe perguntarem: ‘És Tu, Aquele que há de vir ou devemos esperar um
outro?’”.
Que acontecimentos
teriam levado o Precursor, já no cárcere, a mandar seus discípulos fazerem esta
pergunta ao Divino Mestre? Antes de aventar qualquer hipótese, tenhamos
presente que ele é um Santo, considerado por Nosso Senhor como o maior homem
nascido até aquele momento. Logo, não se trata de uma incerteza sobre a
identidade de Cristo, que já fora apresentado por ele em termos claríssimos:
“Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (Jo 1, 29); “Depois de mim
vem outro mais poderoso do que eu, ante o qual não sou digno de me prostrar
para desatar-Lhe a correia do calçado. Eu vos batizei com água; Ele, porém, vos
batizará no Espírito Santo” (Mc 1, 7-8). João Batista sabia perfeitamente quem
era Jesus, e não precisava de qualquer explicação.
Então, por que os
envia com a incumbência de indagar a respeito do caráter messiânico de Nosso
Senhor? Fiel à sua missão de apontar o Filho de Deus, arde de desejo que todos reconheçam
o Salvador que está entre eles e quer transmitir aos outros a sua felicidade de
tê-Lo visto e ser seu contemporâneo.
São João Batista
encontrava-se preso na torre de Maqueronte ― inacessível fortaleza de Herodes,
localizada nas proximidades do Mar Morto, a 1158 m de altitude sobre o nível
deste
2 ―, sem qualquer possibilidade de atuação. Em dado momento, chegaram-lhe aos
ouvidos, por meio de seus seguidores, as repercussões dos grandes e numerosos
milagres operados por Jesus. Esta pareceria ser a hora propícia para mandar um
recado Àquele que é o Criador do universo, o Onipotente: “Senhor, estou preso,
libertai-me!ˮ. Por um simples ato de vontade de Deus, Nosso Senhor, as
correntes se desfariam, as algemas se abririam e ele sairia da prisão. Mas o
Precursor não pensava em si ou nos infortúnios padecidos naquele estado e nem
sequer lhe ocorreu a ideia de pedir um alívio. Para ele era indiferente morrer
ou viver: sua preocupação voltava-se exclusivamente para a glória do Redentor.
Conceito messiânico desviado
Por isso, João
Batista se empenhava em criar condições para que Nosso Senhor Se manifestasse
cada vez mais. Ele já estava extenuado pelas vãs tentativas de convencer seus
discípulos, que insistiam numa concepção política a respeito do Messias.
Anelavam um rei humano que ascendesse ao trono de Israel e desse força ao seu
povo. Conforme iam acompanhando o ministério de Nosso Senhor Jesus Cristo
tomavam-se de insegurança, porque Ele era um Homem capaz de fazer milagres
estrondosos, embora não Se pronunciasse em matéria de política e pregava o
advento de um misterioso Reino de Deus que não parecia ser deste mundo.
Instigados pela inveja, custava-lhes acreditar que Aquele fosse o Cristo, por
não corresponder às suas expectativas e ao modelo por eles idealizado.
Considerações como estas pululavam em suas mentes: “É nascido em Nazaré...ˮ; “O
pai d’Ele era carpinteiro!ˮ; “Mas será, de fato, o Messias?ˮ (cf. Mt 13,
54-57). Aliás, algo análogo se passava em relação ao próprio Precursor, o qual
não havia preenchido as esperanças nele depositadas quando começaram a
segui-lo.
Esta cegueira, sem
dúvida, deixava São João indignado, até que percebeu restar apenas uma saída
para quebrar aquela frieza: que eles tivessem contato direto com
Jesus, o único que poderia transformá-los a fim de compreenderem quem Ele era. Tudo
o que estava ao seu alcance havia feito por eles, não poupando esforços para
comunicar-lhes a extraordinária alegria na qual se sentia imerso por exercer sua
missão de Precursor. Enviou-os, pois, confiante em que Nosso Senhor fizesse por
eles o que pessoalmente ele não conseguira, e de que a conversa com o Mestre
fosse ocasião para receberem uma graça que agisse no fundo de suas almas e
viessem a se converter. Essa persistência em querer mais para os outros do que
para si e em procurar torná-los felizes, de uma felicidade sobrenatural, era
característica do Precursor.
O Evangelista frisa:
“Quando ouviu falar das obras de Cristo”, indicando que São João discernira ser
a hora apropriada para enviá-los, dada a forte impressão causada pelos milagres
de Jesus. É no teor da pergunta que fica consignado o fato de ansiarem por um
Messias segundo outros padrões: “És Tu, Aquele que há de vir ou devemos esperar
um outro?”.
Em contraste com a
despretensão de seu mestre, que vivia completamente esquecido de si e
preocupado com eles, os discípulos de São João não pediram a Nosso Senhor por
aquele que os formara. Tinham-lhe tão pouco amor que não se interessaram em
tirá-lo do cárcere e livrá-lo daquela penosa situação. Esses somos nós, sempre
que nos fechamos e só atendemos às solicitações do egoísmo e às nossas
vantagens pessoais, mais dedicados a nós mesmos do que a Deus e ao próximo. Em
consequência, a felicidade foge de nós e cresce o egocentrismo.
Os milagres provavam que Ele era o Messias
4
Jesus respondeu-lhes: “Ide contar a João o que estais ouvindo e vendo: 5
os cegos recuperam a vista, os paralíticos andam, os leprosos são curados, os
surdos ouvem, os mortos ressuscitam e os pobres são evangelizados”.
A resposta de Nosso
Senhor, cheia de sabedoria, não foi: “Eu sou o Messias”. Provavelmente, dado o
estado de espírito de quem o interrogava, uma declaração nesses termos não
seria bem recebida. Sua afirmação oferecia elementos para que eles
compreendessem a verdade por si, como se dissesse: “Analisem o que acontece,
vejam as minhas obras e as suas consequências, e em função disso tirem
conclusões. Quem vê todos os prodígios que Eu faço e não acredita que sou o
Messias, não tem inteligência”. E recorre aos vaticínios de Isaías, bastante
conhecidos por todos os israelitas (cf. Is 26, 19; 29, 18; 35, 5; 42, 7; 62,
1), como uma confirmação. De fato, qualquer cego que gritasse à distância
pedindo a cura saía de sua presença enxergando e dando graças a Deus. Havia
também devolvido a saúde a inúmeros paralíticos, como o da piscina de Betesda
(cf. Jo 5, 1-9) ou aquele que fora descido pelo teto (cf. Mc 2, 3-12). Bastava
tocar nos leprosos que as chagas desapareciam, ou nos surdos e mudos, que eram
sanados. Ele acabara de ressuscitar um morto com grande estrépito no país, como
acima foi recordado, e estava levando a Boa-nova a todos. Por meio dela, muitos
adquiriam ― é este o maior milagre! ― a noção de que eram deficientes, não
conseguiam caminhar por si nas vias da virtude, e tomavam consciência de
necessitarem do auxílio de Deus. Estes eram evangelizados e acolhiam a doutrina
com entusiasmo.
Entretanto, se escandalizaram...
6 “Feliz
aquele que não se escandaliza por causa de Mim!”.
Por fim, Nosso
Senhor completa a resposta com estas palavras, sinal claro de que os discípulos
de João Batista não aceitaram bem a mensagem e estavam com inveja da graça
fraterna. Ao invés de se alegrarem por comprovar que outro fora favorecido pela
benevolência de Deus, numa manifestação patente de seu poder, veem na Pessoa de
Jesus uma sombra projetada sobre si mesmos.
Tendo concluído que
o objetivo de Nosso Senhor não era a restauração do reino de Israel,
sentiram-se frustrados, pois imaginavam que, pelo fato de haverem abandonado
tudo para seguir o Precursor, seriam os primeiros junto ao ao Messias. Percebem
agora que estão em segundo plano e, para se justificarem, têm de encontrar n’Ele
defeitos que demonstrem, de acordo com seus conceitos, não ser o Enviado: “Ele
só fala do Pai, do Reino Eterno, da vida após a morte; vem pregando uma
ressurreição...ˮ. Em suma, escandalizaram-se, a exemplo dos fariseus, que
decerto ali estavam e se tinham como os primeiros, muito acima dos discípulos de
São João. Vaidosos de seu conhecimento da Lei e da perfeita observância das
regras, viam os milagres de Jesus e diziam que agia pelo poder dos demônios
(cf. Mt 9, 34).
Mais ainda, os
próprios Apóstolos receavam que Ele enfrentasse as autoridades do establishment israelita, com receio de perder
a oportunidade de seguir uma grande carreira baseada em seus dotes
excepcionais, da qual eles tirariam o consequente proveito. Também para os Doze
aquele Messias não correspondia ao que pretendiam e se escandalizavam. Por isso
Nosso Senhor afirma: “Feliz aquele que não se escandaliza por causa de Mim!”,
ou seja, “Feliz aquele que, apesar de o mundo defender que a alegria se obtém
de outra forma, sabe que ela está na cruzˮ.
Os lábios divinos elogiam o Precursor
7 Os
discípulos de João partiram, e Jesus começou a falar às multidões sobre João:
“O que fostes ver no deserto? Um caniço agitado
pelo vento? 8 O que fostes ver? Um homem vestido com roupas finas?
Mas os que vestem roupas finas estão nos palácios dos reis. 9 Então,
o que fostes ver? Um profeta? Sim, Eu vos afirmo, e alguém que é mais do que
profeta. 10 É dele que está escrito: ‘Eis que envio o meu mensageiro
à tua frente; ele vai preparar o teu caminho diante de Ti’”.
Em seguida partiram
os discípulos de João, sem que o Evangelho registre se reconheceram Jesus como
Messias ou não. Contudo, as palavras de Nosso Senhor são uma proclamação evidente
de sua identidade, pois Ele evoca as profecias e prova que as está cumprindo.
Após a saída deles,
Jesus passa a falar sobre aquele que está encarcerado, elogiando-o por não ser
um caniço agitado pelo vento ― uma pessoa inconstante ―, mas um homem firme,
inabalável e íntegro, semelhante a uma torre ou uma rocha. Em sua austeridade
recusara-se a usar roupas finas, como faziam os que se embrenhavam pelas vias
políticas sem se importarem com o aspecto religioso, preocupados antes de tudo
em traçar uma carreira social brilhante junto aos poderosos deste mundo.
Nosso Senhor quer
ainda mostrar que a grandeza de João vai muito além de sua condição de profeta.
Este, como é sabido, está incumbido de anunciar, ensinar e apontar, de acordo com
a vontade de Deus, os caminhos do dever, quase sempre contrários às vias
libertinas propostas pelo mundo. Ora, por que ultrapassou o Precursor o marco
do profetismo? Por ter sido também chamado ― além de proclamar a verdade ― a
preparar as veredas do Homem-Deus. É o que comenta São João Crisóstomo: “Em
que, pois, é maior? No fato de estar mais próximo d’Aquele que tinha vindo. […]
Assim como numa comitiva régia os que se encontram mais próximos à carruagem
real são os mais ilustres entre todos, assim João, que aparece momentos antes
do advento do Senhor. Notai como por causa disso [Jesus] declarou a excelência
do Precursor”.3
Com profundidade e
beleza, o Cardeal de La Luzerne exalta a figura de São João Batista,
ressaltando seu papel ímpar na História: “Ele encerra a sucessão dos profetas e
abre a missão dos Apóstolos. Ele pertence ao mesmo tempo à Antiga Lei e à Nova,
e se eleva entre uma e outra como uma coluna majestosa, para marcar o limite
que as separa. Profeta, apóstolo, doutor, solitário, virgem, mártir, ele é mais
que tudo isso, porque é tudo isso ao mesmo tempo. Ele enfeixa todos os atributos
da santidade, e ao juntar em si mesmo tudo aquilo que constitui as diferentes
classes de Santos, forma entre eles uma classe particular”.4
O valor do Reino dos Céus
11 “Em
verdade vos digo, de todos os homens que já nasceram, nenhum é maior do que
João Batista. No entanto, o menor no Reino dos Céus é maior do que ele”.
À primeira vista
este versículo parece incompreensível, pois como pode o maior dentre os já
nascidos ser o menor quando comparado aos habitantes do Reino dos Céus? Aqui
Nosso Senhor Se refere a duas etapas e, portanto, a dois diferentes
nascimentos. São João Batista recebeu a vida da graça no claustro materno de
Santa Isabel, pelos efeitos da voz de Nossa Senhora, e nasceu sem pecado
original. Nessa perspectiva, é o maior, uma vez que nenhum outro teve o
privilégio de ser batizado dessa sublime maneira. Porém, para entrar no Céu
faz-se necessário nascer para a eternidade, e tão mais importante é o Reino
Eterno que o mais elevado dos homens deste mundo torna-se pequeno perto dos
justos que já gozam da visão beatífica. É o que defende São Jerônimo: “todo
santo que já está com Deus é maior do que o que ainda se encontra em batalha.
Pois uma coisa é possuir a coroa da vitória e outra estar ainda lutando na
linha de combate”.5
Apesar da diferença
entre o estado dos Bem-aventurados na glória e dos homens justos que ainda
integram as fileiras da Igreja militante, todos os que se encontram junto a
Deus obtiveram suas coroas seguindo a mesma via trilhada por São João Batista,
que o fez grande neste mundo e maior ainda no outro. A sua glória deve-se à
fidelidade a toda prova aos desígnios divinos pela aceitação do sofrimento, e
isso o tornou digno do maior elogio feito por Nosso Senhor a alguém em todo o
Evangelho.
III – O caminho da verdadeira felicidade
A Liturgia deste
domingo nos convida à alegria, mostrando o rumo para alcançá-la. O contraste
entre os protagonistas da cena de hoje é notório: enquanto São João está no
cárcere e se submete a este padecimento com plena resignação, animado pela
felicidade de ser íntegro e cumprir seu chamado, os discípulos veem-se privados
dessa felicidade pela inveja que os consome. Semelhante amargura acompanha
Herodes Antipas, escravizado por suas paixões, como também os fariseus que
vivem à procura de louvor e incenso, movidos pela sede de glória terrena. Os
próprios Apóstolos tampouco estão inteiramente felizes nesse período da vida
pública do Divino Mestre, pois aguardavam um Messias diferente do que têm
diante de si.
A alegria, então,
onde está? Na loucura da Cruz. Nosso Senhor Jesus Cristo não podia estar triste
nem abraçar um caminho de depressão, e, todavia, escolheu o do Calvário para nos
dar o exemplo e indicar que a conquista da felicidade comporta a adversidade e
a dor. Lembremo-nos de seu ensinamento: “Se alguém quiser vir comigo,
renuncie-se a si mesmo, tome sua cruz e siga-Me” (Mt 16, 24). A ideia de que a
felicidade exclui o sofrimento é infundada, pois uma vez que somos tendentes ao
mal pela queda de nossos primeiros pais, o sofrimento tornou-se um elemento
indispensável para a nossa santificação.
Com efeito, o
problema do sofrimento não está tanto naquilo que o ocasiona, mas no modo como
é suportado. Ele existe em todas as situações da vida e pede de nossa parte o
ânimo que esta Liturgia apresenta, do qual Maria Santíssima é modelo. Ela
aceitou todos os padecimentos que se abateriam sobre seu Divino Filho e Se
dispôs a dar seu contributo ao sacrifício redentor, pois queria a salvação de
todos.
Nossa finalidade é pertencer a Jesus
Feito para pertencer
a Nosso Senhor Jesus Cristo, o ser humano se realiza na medida em que assume
com seriedade sua condição de batizado, membro da Santa Igreja Católica
Apostólica Romana, dando passos adiante na prática da virtude e na busca da
santidade. Quanto mais avançamos nessa via, maior é a alegria que nos invade,
assim como o desejo de progredir ainda mais.
Consideremos de
frente nosso destino eterno enquanto esperamos a vinda do Salvador. Na noite de
Natal Ele nascerá de novo, misticamente, e se aplicarmos em nossas vidas a
lição desta Liturgia nascerá também em nossos corações, onde encontrará uma digna
pousada para Se recolher.
1 Cf. VON CLAUSEWITZ, Karl. Grundgedanken über Krieg
und Kriegführung. Leipzig:
Insel, 1915, p.47-48.
2 Cf.
SCHUSTER, Ignacio; HOLZAMMER, Juan B. Historia Bíblica. Nuevo Testamento.
Barcelona: Litúrgica Española, 1935, t.II, p.157-158.
3 SÃO
JOÃO CRISÓSTOMO. Homilía XXXVII, n.2. In: Obras. Homilías sobre el Evangelio de
San Mateo (1-45). 2.ed. Madrid: BAC, 2007, v.I, p.734.
4 LA
LUZERNE, César-Guillaume de. Explication des
Évangiles des Dimanches. 9.ed. Paris: Mequignon Junior, 1847, t.I, p.42.
5 SÃO JERÔNIMO. Comentario a Mateo. L.II (11, 2-16, 12),
c.11, n.80. In: Obras Completas. Comentario a Mateo y otros escritos. Madrid:
BAC, 2002, v.II, p.131.
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