Comentários ao Evangelho VI Domingo do Tempo Comum - Ano A
“Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: 17 ‘Não
penseis que vim abolir a Lei e os Profetas. Não vim para abolir, mas para
dar-lhes pleno cumprimento. 18 Em verdade, Eu vos digo:
antes que o céu e a terra deixem de existir, nem uma só letra ou vírgula serão
tiradas da Lei, sem que tudo se cumpra. 19 Portanto, quem
desobedecer a um só destes mandamentos, por menor que seja, e ensinar os outros
a fazerem o mesmo, será considerado o menor no Reino dos Céus. Porém, quem os
praticar e ensinar, será considerado grande no Reino dos Céus. 20 Porque
Eu vos digo: Se a vossa justiça não for maior que a justiça dos mestres da Lei
e dos fariseus, vós não entrareis no Reino dos Céus. 21 Vós
ouvistes o que foi dito aos antigos: ‘Não matarás! Quem matar será condenado
pelo tribunal’. 22 Eu, porém, vos digo: todo aquele que se
encoleriza com seu irmão será réu em juízo; quem disser ao seu irmão: ‘patife!’
será condenado pelo tribunal; quem chamar o irmão de ‘tolo’ será condenado ao
fogo do inferno. 23 Portanto, quando tu estiveres levando
a tua oferta para o altar, e aí te lembrares que teu irmão tem alguma coisa
contra ti, 24 deixa a tua oferta aí diante do altar, e vai
primeiro reconciliar-te com o teu irmão. Só então vai apresentar a tua
oferta. 25 Procura reconciliar-te com teu adversário,
enquanto caminha contigo para o tribunal. Senão o adversário te entregará ao
juiz, o juiz te entregará ao oficial de justiça, e tu serás jogado na
prisão. 26 Em verdade Eu te digo: dali não sairás,
enquanto não pagares o último centavo. 27 Ouvistes o que
foi dito: ‘Não cometerás adultério’. 28 Eu, porém, vos
digo: Todo aquele que olhar para uma mulher, com o desejo de possuí-la, já
cometeu adultério com ela no seu coração. 29 Se o teu olho
direito é para ti ocasião de pecado, arranca-o e joga-o para longe de ti! De
fato, é melhor perder um de teus membros, do que todo o teu corpo ser jogado no
inferno. 30 Se a tua mão direita é para ti ocasião de
pecado, corta-a e joga-a para longe de ti! De fato, é melhor perder um dos teus
membros, do que todo o teu corpo ir para o inferno. 31 Foi
dito também: ‘Quem se divorciar de sua mulher, dê-lhe uma certidão de
divórcio’. 32Eu, porém, vos digo: Todo aquele que se divorcia
de sua mulher, a não ser por motivo de união irregular, faz com que ela se
torne adúltera; e quem se casa com a mulher divorciada comete adultério. 33 Vós
ouvistes o que foi dito aos antigos: ‘Não jurarás falso’, mas ‘cumprirás os teus
juramentos feitos ao Senhor’. 34 Eu, porém, vos digo: Não
jureis de modo algum: nem pelo céu, porque é o trono de Deus; 35 nem
pela terra, porque é o suporte onde apoia os seus pés; nem por Jerusalém,
porque é a cidade do Grande Rei. 36 Não jures tampouco
pela tua cabeça, porque tu não podes tornar branco ou preto um só fio de
cabelo. 37 Seja o vosso ‘sim’: ‘Sim’, e o vosso ‘não’:
‘Não’. Tudo o que for além disso vem do Maligno'” (Mt 5, 17-37).
I – O pecado e a Lei
No
Paraíso Terrestre, o homem refletia de modo admirável o Criador na perfeita
harmonia reinante entre Fé e razão, vontade e sensibilidade. A Fé iluminava o
entendimento, e este governava uma vontade inteiramente equilibrada, contra a
qual a concupiscência não se revoltava, pois no primeiro homem – ensina São
Tomás – “a alma estava submetida a Deus, seguindo os preceitos divinos, e
também a carne estava submetida em tudo à alma e à razão”.1
Gozavam
ainda nossos primeiros pais do dom de integridade, pelo qual sua alma tendia ao
mais elevado e tinha propensão para escolher o bem. A ausência de conflitos
entre as diversas partes desse microuniverso chamado homem – mineral, vegetal,
animal e espiritual – outorgava-lhe a felicidade e lhe proporcionava toda a facilidade
para cumprir a Lei Natural.
Ora, com
o pecado, Adão e Eva perderam esse dom, a harmonia na qual se encontravam,
estabelecida graças à justiça original, foi destruída; e rompeu-se o domínio
das faculdades espirituais sobre o corpo.2 A carne, afirma São Tomás de Aquino,
“passou a ser desobediente à razão”,3 e cada uma das partes que compõem o homem
quis fazer valer sua própria lei. A desordem introduziu-se em nosso interior.
Necessidade de preceitos claros e insofismáveis
Deus
implantou na alma humana uma luz intelectual pela qual o homem conhece que o
bem deve ser praticado e o mal, evitado. Essa luz – denominada sindérese pela
Escolástica – não se apagou com o primeiro pecado, mas permanece em nossa alma.
Conforme afirma o Concílio Vaticano II, o homem “tem no coração uma lei escrita
pelo próprio Deus”,4 a Lei Natural.
E como
nosso espírito é governado por uma lógica monolítica, não conseguimos praticar
qualquer ação má sem procurar justificá-la de alguma maneira. Por isso, para
poder pecar, o homem recorre a falsas razões que sufocam sua reta consciência e
levam o entendimento a apresentar à vontade o objeto desejado como um bem. É
essa a origem dos sofismas e doutrinas errôneas com os quais procuramos
dissimular nossas más ações.
À vista
disso, tornou-se indispensável – além do selo impresso por Deus no mais íntimo
das nossas almas – a existência de preceitos concretos a lembrar-nos de forma
clara e insofismável o conteúdo da Lei Natural.5 São eles os Dez Mandamentos
entregues por Deus a Moisés no monte Sinai.6
Com
efeito, de forma muito sintética, compendia o Decálogo as regras postas por
Deus na alma humana. Deus “escreveu em tábuas” o que os homens “não conseguiam
ler em seus corações”, afirma Santo Agostinho.7 E o fato de ter sido gravado em
pedra – elemento firme, estável e duradouro – simboliza o caráter perene da sua
vigência.
Os fariseus deturpam a Lei de Moisés
Face a
toda norma jurídica, há sempre duas correntes: a dos laxistas que, em nome da
“moderação”, justificam sua inobservância com todo gênero de ardis e
racionalizações; e a dos exagerados, apreciadores da lei pela lei, abstraindo
do seu verdadeiro espírito e do seu vínculo com o Legislador.
Na
segunda categoria estavam os escribas e fariseus. Negligenciavam o cumprimento
dos mais fundamentais preceitos do Decálogo, mas acrescentaram à Lei mosaica,
ao longo dos tempos, numerosas obrigações e regras, levando sua prática a
extremos ridículos. Ora, essa Lei, escreve Fillion, “deveria ser para os
israelitas um privilégio, e não um fardo; entretanto, por obra dos fariseus e
das numerosas prescrições coligidas por eles, pesava de modo opressivo sobre os
ombros dos judeus”.8
Julgando-se
os únicos donos da verdade, os Doutores da Lei serviram-se de sua autoridade
para criar uma moral baseada nas exterioridades, enquanto o orgulho, a inveja,
a ira e outros vícios borbulhavam sem freio em seus corações. Mereciam,
portanto, a terrível censura de Nosso Senhor: “Ai de vós, escribas e fariseus
hipócritas! Pagais o dízimo da hortelã, da erva-doce e do cominho, e deixais de
lado os ensinamentos mais importantes da Lei. Ai de vós, escribas e fariseus
hipócritas! Limpais o copo por fora, mas por dentro estais cheios de roubo e
cobiça. Serpentes! Víboras que sois! Como escapareis da condenação do inferno?”
(Mt 23, 23.25.33).
II – Cristo é a plenitude da Lei
17 “Não penseis que vim abolir a Lei e os Profetas. Não vim para abolir,
mas para dar- lhes pleno cumprimento”.
De tal
forma Jesus abstraia de algumas normas farisaicas, que muitos poderiam imaginar
ter vindo Ele revogar a Lei mosaica, substituindo-a por outra.
Os
Doutores da Lei, por exemplo, proibiam o contato com os pecadores e publicanos,
enquanto o Divino Mestre ia jantar em casa deles. Rompia também os preceitos
farisaicos do sábado, permitia que seus discípulos omitissem as abluções
rituais antes da refeição e afirmava não estar a impureza nos alimentos, mas
sim no coração. Tudo isso poderia dar a impressão de ser Ele um laxista
disposto a abolir as antigas práticas, excessivamente rigorosas.
O Decálogo é um reflexo do Criador
Não
ignorando essa objeção dos seus ouvintes, começa Jesus por mostrar-lhes não ser
a Boa Nova “uma doutrina de facilidades e uma religião a preços promocionais,
menos ainda uma anarquia ou um rompimento revolucionário com o passado de
Israel”.9 Pelo contrário, Ele vai edificar o Evangelho “sobre os antigos
fundamentos, e da Lei divina nada passará, a menos que se diga que um botão de
rosa acaba quando a flor desabrocha, ou que um esboço traçado a lápis é
suprimido quando a pintura definitiva vem completá-lo, fixá-lo para sempre”.10
Em que
consiste, então, o “pleno cumprimento” anunciado pelo Messias?
A antiga
Lei era, segundo São Tomás, a “da sombra”, pois apenas “figurava com alguns
atos cerimoniais e prometia por palavras” a justificação dos homens.11 A nova,
entretanto, é a “da verdade”, porque realiza em Cristo tudo quanto a Lei antiga
prometia e figurava. Ou seja, a Lei nova realiza a antiga enquanto supre o que
faltara a esta.12
Nosso
Senhor não é só o Autor da Lei, mas também a Lei viva. Assim como dizemos que
“o Verbo de Deus Se fez carne”, podemos afirmar que “a Lei de Deus Se fez carne
e habitou entre nós”. No Divino Mestre se encontram os Dez Mandamentos no
estado de divindade, pois, por exemplo, o que fez Ele na sua vida terrena senão
praticar a todo o momento o Primeiro Mandamento: “Amarás o Senhor teu Deus
sobre todas as coisas”?
Nessa
perspectiva, fácil é vermos no Decálogo um reflexo do Criador, compreendermos a
beleza que existe nos seus preceitos e acatá-los com amor, de modo a criar em
nossa alma a aspiração de cumpri-los com integridade, como meio de nos
aproximarmos de Deus.
Decálogo e moral de situação
18 “Em verdade, Eu vos digo: antes que o céu e a terra deixem de
existir, nem uma só letra ou vírgula serão tiradas da Lei, sem que tudo se
cumpra”.
Os
adeptos da chamada “moral de situação” defendem a mutabilidade dos princípios
éticos em função do contexto no qual são eles aplicados. Assim, segundo essa
filosofia, se os costumes evoluem ao longo dos tempos, o mesmo deve ocorrer com
as normas morais. Ou então, mesmo admitindo serem elas universais e perenes,
deve-se evitar sua aplicação de forma absoluta nas situações concretas,
reduzindo seu valor ao de meras orientações a serem ponderadas em função das
circunstâncias do momento.13
Ora, a
Lei sintetizada nos preceitos do Decálogo é absoluta e permanente, conforme
ensina o Catecismo da Igreja Católica: “Visto que exprimem os deveres
fundamentais do homem para com Deus e para com o próximo, os Dez Mandamentos
revelam, em seu conteúdo primordial, obrigações graves. São essencialmente
imutáveis, e sua obrigação vale sempre e em toda parte. Ninguém pode
dispensar-se deles”.14
Portanto,
aquilo que era pecado quando Adão e Eva saíram do Paraíso, sê-lo-á também até o
último dia, quando for morto o Anticristo e vier o fim do mundo.
O pecado de escândalo
19 “Portanto, quem desobedecer a um só destes mandamentos, por menor que
seja, e ensinar os outros a fazerem o mesmo, será considerado o menor no Reino
dos Céus. Porém, quem os praticar e ensinar, será considerado grande no Reino
dos Céus”.
Ora, pior
que desobedecer aos preceitos da Lei divina é criar ou propagar uma doutrina
que convide a transgredi-los. Quem assim procede perde, sem dúvida, a graça de
Deus e, caso não se emendar, “será considerado mínimo no momento do Juízo; ou
seja, será reprovado, será o último. E o último cairá inexoravelmente no
inferno”.15
A “justiça” dos fariseus
20 “Porque Eu vos digo: Se a vossa justiça não for maior que a justiça
dos mestres da Lei e dos fariseus, vós não entrareis no Reino dos Céus”.
Os
escribas e fariseus conheciam perfeitamente a Lei e sabiam pesar cada ato em
função dela. Apresentavam-se como a “lei viva”, mas era justamente isto o que
não se podia afirmar deles.
Como já
foi dito acima, sua justiça fundava-se nas exterioridades. “Quanto ao repouso
sabático, haviam eles multiplicado as interdições, entrando nos mais ínfimos
detalhes. Sobre a questão das impurezas, deram livre curso à imaginação e
acrescentaram à legislação mosaica as mais minuciosas prescrições”.16
Jesus nos
adverte aqui ser indispensável, para entrar no Reino dos Céus, praticar uma
virtude “maior” que a dos fariseus e mestres da Lei. Ou seja, não se prender às
exterioridades, nem fazer enganosas racionalizações, mas cumprir de fato em sua
integridade, amorosamente, os Dez Mandamentos.
III – Jesus condena a moral farisaica
Nos
versículos seguintes, Nosso Senhor utiliza várias vezes as expressões “Vós
ouvistes…” e “Eu vos digo…” para confrontar a moral de exterioridades,
praticada pelos fariseus, com a verdadeira moral. Cristo, Ele mesmo, é a
Palavra eterna, posta aqui em contraposição à palavra dos fariseus. A Lei
antiga e imutável vai ser levada agora até as últimas consequências,
denunciando as interpretações errôneas daqueles que se apresentavam diante do
povo como “mestres” infalíveis.
Participação no pecado de homicídio
21 “Vós ouvistes o que foi dito aos antigos: ‘Não matarás! Quem matar
será condenado pelo tribunal’. 22 Eu, porém, vos digo: todo aquele que se
encoleriza com seu irmão será réu em juízo; quem disser ao seu irmão: ‘patife!’
será condenado pelo tribunal; quem chamar o irmão de ‘tolo’ será condenado ao
fogo do inferno. 23 Portanto, quando tu estiveres levando a tua oferta para o
altar, e aí te lembrares que teu irmão tem alguma coisa contra ti, 24 deixa a
tua oferta aí diante do altar, e vai primeiro reconciliar- te com o teu irmão.
Só então vai apresentar a tua oferta”.
Os
fariseus consideravam o homicídio um pecado gravíssimo, mas não reputavam ser
falta moral encolerizar-se com o irmão, ou dizer-lhe toda espécie de desaforos.
Nosso
Senhor mostra-lhes que quem assim procede também será réu no dia do Juízo,
pois, ao se deixar levar deste modo pelo ódio, ele já encetou as vias
conducentes ao homicídio, participando em certa medida desse crime e merecendo
por isso análogo castigo.
Mais
ainda. Com sua palavra e exemplo, ensinou Jesus que na Nova Aliança o
relacionamento entre os homens deve, pelo contrário, pautar-se pelo respeito,
consideração e estima de forma a não dar ocasião a qualquer queixa recíproca.
Preparemo-nos para o dia do Juízo
25 “Procura reconciliar-te com teu adversário, enquanto caminha contigo
para o tribunal. Senão o adversário te entregará ao juiz, o juiz te entregará
ao oficial de justiça, e tu serás jogado na prisão. 26 Em verdade Eu te digo:
dali não sairás, enquanto não pagares o último centavo”.
O
“adversário” de que fala Nosso Senhor neste versículo simboliza, sob certo
prisma, Ele mesmo: o Bem substancial do qual nos tornamos inimigos ao pecar.17
O mais necessário e urgente, portanto, é procurar primeiro nos reconciliar com
Ele, reconhecendo as nossas faltas, pedindo perdão por elas e fazendo firme
propósito de doravante não nos desviarmos das retas vias do Redentor. Pois,
cedo ou tarde, terminará nossa peregrinação terrena e compareceremos diante do
Supremo Juiz, que pronunciará uma sentença justíssima e inapelável. Se nesse
dia nosso divino Adversário ainda tiver algo a declarar contra nós, a dívida
será saldada, na melhor das hipóteses, no fogo do Purgatório, do qual não se
sai sem pagar até o último centavo.
Trata-se,
portanto, de agir com total integridade no caminho rumo ao derradeiro
julgamento. De nada valerão racionalizações com as quais burlamos nossa
consciência, porque jamais será possível ludibriar a Deus. Ele está dentro de
nós e nós estamos dentro d’Ele. Tudo se faz em sua presença, e todos os nossos
atos virão à tona no dia do Juízo Final para serem conhecidos pela humanidade e
pelos anjos.
Vigilância e fuga das ocasiões
27 “Ouvistes o que foi dito: ‘Não cometerás adultério’. 28 Eu, porém,
vos digo: Todo aquele que olhar para uma mulher, com o desejo de possuí-la, já
cometeu adultério com ela no seu coração. 29 Se o teu olho direito é para ti
ocasião de pecado, arranca-o e joga-o para longe de ti! De fato, é melhor
perder um de teus membros, do que todo o teu corpo ser jogado no inferno. 30 Se
a tua mão direita é para ti ocasião de pecado, corta- a e joga-a para longe de
ti! De fato, é melhor perder um dos teus membros, do que todo o teu corpo ir
para o inferno”.
A Lei de
Moisés condenava o adultério e castigava-o com a morte (cf. Lv 20, 10). Mas a
moral farisaica, fundada em ritos e exterioridades, em nada se importava com a
lascívia dos olhares ou dos maus desejos.
“Todo
aquele que olhar para uma mulher, com o desejo de possuí-la, já cometeu
adultério com ela no seu coração”: refere-Se aqui Nosso Senhor ao nono
Mandamento do Decálogo, o qual condena também o pecado interior: “Não cobiçaras
a mulher do teu próximo” (Dt 5,21).
Logo a
seguir, o Divino Mestre frisa a radicalidade com que devem ser praticados os
Mandamentos, exortando-nos a levar até os últimos extremos o princípio da fuga
das ocasiões de pecado. “Vigiai e orai para não cairdes em tentação” (Mt 26,
41), dirá Ele no Horto das Oliveiras. A oração é indispensável, mas não
suficiente: é também necessário vigiar e afastar-se completamente daquilo que
conduz ao pecado, sobretudo em matéria de castidade.
Uma concessão temporária em desacordo com a Lei Natural
31 “Foi dito também: ‘Quem se divorciar de sua mulher, dê-lhe uma
certidão de divórcio’. 32 Eu, porém, vos digo: Todo aquele que se divorcia de
sua mulher, a não ser por motivo de união irregular, faz com que ela se torne
adúltera; e quem se casa com a mulher divorciada comete adultério”.
Moisés
estabeleceu no Deuteronômio que “se um homem toma uma mulher e se casa com ela,
e esta não lhe agrada, porque descobriu nela algo inconveniente, ele lhe
escreverá um atestado de divórcio e assim despedirá a mulher” (Dt 24, 1). Ora,
as interpretações laxistas dessa passagem bíblica deram margem a escandalosos
abusos, a ponto de ser o divórcio, segundo o Cardeal Gomá, “um mal gravíssimo
do povo judeu, no tempo de Jesus”.18
Com
efeito, explica Fillion: “As palavras ‘algo inconveniente’, utilizadas pelo Deuteronômio,
eram de si vagas. Mas tinham recebido de Hillel e dos de sua escola um
interpretação escandalosa, que abria de par em par as portas para a paixão.
Admitiam que a mulher, mesmo fidelíssima, podia ser despedida por qualquer
motivo ou, digamos melhor, por qualquer frívolo pretexto: um prato mal
preparado, a vista de uma mulher mais formosa – atreviam- -se a dizer os
rabinos – eram razão para o divórcio”.19
Acrescia-se
a isto o fato de o divórcio não ser conforme à Lei Natural.20 Como mais adiante
afirmará o próprio Nosso Senhor, tratava-se de uma concessão temporária feita
por Moisés devido à dureza de coração dos hebreus, “mas não foi assim desde o
princípio” (Mt 19, 8).
Comenta a
este propósito São Cromácio de Aquileia: “Com razão, nosso Senhor e Salvador,
eliminada aquela permissão, restaura agora os preceitos de sua antiga
constituição. Ordena, pois, conservar como lei indissolúvel a união do
matrimônio casto, mostrando que a lei conjugal estava instituída
originariamente por Ele”.21
A fé elimina o mau costume de jurar
33 “Vós ouvistes o que foi dito aos antigos: ‘Não jurarás falso’, mas
‘cumprirás os teus juramentos feitos ao Senhor’. 34 Eu, porém, vos digo: Não
jureis de modo algum: nem pelo céu, porque é o trono de Deus; 35 nem pela
terra, porque é o suporte onde apoia os seus pés; nem por Jerusalém, porque é a
cidade do Grande Rei. 36 Não jures tampouco pela tua cabeça, porque tu não
podes tornar branco ou preto um só fio de cabelo”.
A Lei de
Moisés, afirma o padre Tuya, “proibia expressamente o falso juramento, mas, ressalvado
isso, a casuística rabínica fez um prodígio de subtilezas e distinções para
justificar os juramentos”.22 No tempo de Jesus, o abuso de jurar a qualquer
propósito alcançara um grau inacreditável, e isso O levou a condenar
expressamente, neste Sermão da Montanha, todo tipo de juramento: “Não jureis de
modo algum”. Os três versículos do sintético texto de São Mateus, acima
transcritos, indicam bem a gravidade desse mal.
Ocorria
que, levados pelo orgulho, julgaram os fariseus haver maior honra e mérito em
“fazer todas as coisas por Deus, obrigando-se por juramento”; e do preceito
“não tomarás o nome de Deus em vão” deduziram, por uma interpretação forçada:
“logo, tomarás o nome de Deus sempre que seja como garantia de algo que não
seja falso”.23
Entre os
cristãos, pelo contrário, devem reinar a sinceridade e a confiança, fruto da
retidão de almas habitualmente em estado de graça, conforme ensina Santo
Hilário de Poitiers: “A fé elimina o costume de jurar. Fundamenta na verdade a
atividade de nossa vida e, rechaçando a inclinação para mentir, prescreve a
lealdade tanto no falar como no ouvir. […] Portanto, quem vive na simplicidade
da fé não precisa recorrer a juramentos”.24
“Aprendei a chamar de pecado o pecado”
37 “Seja o vosso ‘sim’: ‘Sim’, e o vosso ‘não’: ‘Não’. Tudo o que for
além disso vem do Maligno”.
Nossa
vida deve ser um perpétuo “sim” a tudo quanto Cristo espera de nós, e um firme
“não” às propostas e sugestões do demônio. A isso nos convida o Papa João Paulo
II: “Aprendei a pensar, a falar e atuar segundo os princípios da simplicidade e
da clareza evangélica: ‘Sim, sim; não, não’. Aprendei a chamar de branco ao
branco, e preto ao preto – mal ao mal, e bem ao bem. Aprendei a chamar pecado
ao pecado, e a não lhe chamar libertação e progresso, ainda que toda a moda e a
propaganda fossem contrárias”.25
IV – Não devemos fazer concessões em matéria moral
A leitura
do Evangelho deste domingo nos reporta a um dos problemas mais graves do mundo
moderno: a terrível perda do senso moral que assola as almas de tantos dos
nossos contemporâneos.
Com
efeito, afirma o Papa Bento XVI, “vivemos num contexto cultural marcado pela
mentalidade hedonista e relativista, que propende para eliminar Deus do
horizonte da vida, não favorece a aquisição de um quadro claro de valores de
referência e não ajuda a discernir o bem do mal e a maturar um justo sentido do
pecado”.26
Companheiro
inseparável da mentalidade descrita pelo Santo Padre é um falso e deletério
conceito de liberdade, sintetizado por um dos mais famosos lemas de Maio de 68,
É proibido proibir!, segundo o qual toda regra ou preceito devem ser banidos.
Hoje,
portanto, mais do que nunca, é preciso lembrar que a Lei de Deus não é um
castigo pelo pecado dos nossos primeiros pais, mas sim um precioso meio de nos
tornar mais semelhantes a Ele. Pois, ao contrário do afirmado pelos
revolucionários da Sorbonne, são as faltas praticadas pelo homem – e não os
preceitos divinos – que tolhem sua liberdade: “O pecador se torna escravo do
pecado” (Jo 8, 34).
No Céu, a
Lei reluzirá gloriosa para aqueles que a praticaram nesta vida, os bem-
-aventurados; enquanto se apresentará como eterna censura aos que se revoltaram
contra ela e foram condenados ao fogo eterno. Dessa inexorável alternativa,
ninguém escapa: quem não está na Lei da misericórdia divina, cai na Lei da
justiça de Deus. Não há uma terceira opção.
Aproveitemos
esta Liturgia do 6º Domingo do Tempo Comum para analisarmos nossa consciência à
procura de alguma racionalização que nos esteja conduzindo a concessões morais,
em nossa vida profissional ou particular. Que Maria Santíssima jamais permita
nos desviarmos das abençoadas sendas da integridade de alma, ajudando-nos a
nunca dar consentimento a nenhuma relativização da Lei de Deus.
1 SÃO TOMÁS DE AQUINO. A Luz da Fé – Comentários ao Credo, Pai-nosso,
Ave Maria e Mandamentos. Lisboa: Verbo, 2002, p.133. – No mesmo sentido, ensina
o Catecismo da Igreja Católica que o homem tinha então o domínio de si mesmo e
“estava intacto e ordenado em todo o seu ser” (n.377).
2 Cf. Catecismo da Igreja Católica, n.400.
3 SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., p.134.
4 CONCÍLIO VATICANO II. Gaudium et spes, n.16.
5 Ensina o Doutor Angélico: “Dado que, deste modo, a Lei Natural foi destruída pela lei da concupiscência, era necessário que o homem fosse reconduzido às obras da virtude e restabelecido na vida. Para isso era necessária a lei da Escritura” (SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., p.134).
6 Cf. Catecismo da Igreja Católica, n.2070.
7 SAN AGUSTÍN. Enarrationes in Ps. 57, 1. In: Obras de San Agustin. Madrid: BAC, 1965, v.XX, p.417.
8 FILLION, Louis-Claude. Vida de Nuestro Señor Jesucristo. Madrid: Rialp, 2000, v.III, p.53.
9
GRANDMAISON, SJ, Léonce de. Jésus-Christ, sa personne, son message, ses
preuves. 6.ed. Paris: Beauchesne, 1928, v.II, p.14.
10 Idem, ibidem.
11 SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, I-II, q.107, a.2, resp.
12 Cf. idem, ibidem.
13 Sobre este tema ver, por exemplo, PIO XII. Soyez les Bienvenues – Discurso sobre os erros da moral de situação, 18/4/1952.
14 Catecismo da Igreja Católica, n.2072.
15 SAN JUAN CRISÓSTOMO. Homilías sobre el Evangelio de Mateo, 16, 4, apud ODEN, Thomas C. e SIMONETTI, Manlio. La Biblia comentada por los Padres de la Iglesia. Madrid: Ciudad Nueva, 2004, p.153.
16 ROBERT, A. et TRICOT, A. Initiation Biblique. Tournai: Desclée & Cie., 1948, p.729.
17 Outros comentaristas, como Maldonado, consideram ser o adversário “aquele a quem ferimos, a quem chamamos raca ou néscio, que tem motivos para acusar-nos diante de Deus; o caminho é o tempo desta vida e o juiz é Cristo, o qual dirá: ‘O que fizestes a algum destes pequeninos, a Mim o fizestes'” (MALDONADO, SJ, Juan de. Comentarios a los cuatro Evangelios. Madrid: BAC, 1950, v.I, p.263).
18 GOMÁ Y TOMÁS, Isidro. El Evangelio explicado. Barcelona: Casulleras, 1930, v.II, p.178.
19 FILLION, op. cit., v.II, p.104- 105.
20 Cf. Catecismo da Igreja Católica, n.2384.
21 CROMACIO DE AQUILEYA. Comentario al Evangelio de Mateo, 24, 1, 1-3, apud ODEN e SIMONETTI, op. cit., p.169.
22 TUYA, OP, Manuel de. Biblia Comentada. Evangelios. Madrid: BAC, 1964, v.II, p.115.
23 Idem, ibidem.
24 SAN HILARIO DE POITIERS. Sobre el Evangelio de Mateo, 4, 23, apud ODEN e SIMONETTI, op. cit., p.172.
25 JOÃO PAULO II. Homilia na Santa Missa em preparação para a Páscoa dos universitários (26/03/1981).
26 BENTO XVI. Discurso aos participantes no curso anual sobre foro íntimo, promovido pela Penitenciaria Apostólica, 11/3/2010.
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