Comentários ao Evangelho IV Domingo
da Quaresma (Domingo Lætare) – Ano A
Naquele tempo, 1 ao passar, Jesus viu um
homem cego de nascença. 2 Os discípulos perguntaram a Jesus: ‘Mestre, quem
pecou para que nascesse cego: ele ou os seus pais?’. 3 Jesus respondeu: ‘Nem
ele nem seus pais pecaram, mas isso serve para que as obras de Deus se
manifestem nele. 4 É necessário que nós realizemos as obras d’Aquele que Me
enviou, enquanto é dia. Vem a noite, em que ninguém pode trabalhar. 5 Enquanto
estou no mundo, Eu sou a luz do mundo’. 6 Dito isto, Jesus cuspiu no chão, fez
lama com a saliva e colocou-a sobre os olhos do cego. 7 E disse-lhe: ‘Vai
lavar-te na piscina de Siloé’ (que quer dizer: Enviado). O cego foi, lavou-se e
voltou enxergando.
8 Os vizinhos e os que costumavam ver o
cego — pois ele era mendigo — diziam: ‘Não é aquele que ficava pedindo
esmola?’. 9 Uns diziam: ‘Sim, é ele!’ Outros afirmavam: ‘Não é ele, mas alguém
parecido com ele’. Ele, porém, dizia: ‘Sou eu mesmo!’. 10 Então lhe
perguntaram: ‘Como é que se abriram os teus olhos?’. 11 Ele respondeu: ‘Aquele
homem chamado Jesus fez lama, colocou-a nos meus olhos e disse-me: ‘Vai a Siloé
e lava-te’. Então fui, lavei-me e comecei a ver’. 12 Perguntaram-lhe: ‘Onde
está ele?’. Respondeu: ‘Não sei’. 13 Levaram então aos fariseus o homem que tinha
sido cego. 14 Ora, era sábado, o dia em que Jesus tinha feito lama e aberto os
olhos do cego. 15 Novamente, então, lhe perguntaram os fariseus como tinha
recuperado a vista. Respondeu-lhes: ‘Colocou lama sobre meus olhos, fui
lavar-me e agora vejo!’. 16 Disseram, então, alguns dos fariseus: ‘Esse homem
não vem de Deus, pois não guarda o sábado’. Mas outros diziam: ‘Como pode um
pecador fazer tais sinais?’. 17 E havia divergência entre eles. Perguntaram
outra vez ao cego: ‘E tu, que dizes daquele que te abriu os olhos?’. Respondeu:
‘É um profeta’. 18 Então, os judeus não acreditaram que ele tinha sido cego e
que tinha recuperado a vista.
Chamaram os pais dele 19 e
perguntaram-lhes: ‘Este é o vosso filho, que dizeis ter nascido cego? Como é
que ele agora está enxergando?’. 20 Os seus pais disseram: ‘Sabemos que este é
nosso filho e que nasceu cego. 21 Como agora está enxergando, isso não sabemos.
E quem lhe abriu os olhos também não sabemos. Interrogai-o, ele é maior de
idade, ele pode falar por si mesmo’. 22 Os seus pais disseram isso, porque
tinham medo das autoridades judaicas. De fato, os judeus já tinham combinado
expulsar da comunidade quem declarasse que Jesus era o Messias. 23 Foi por isso
que seus pais disseram: ‘É maior de idade. Interrogai-o a ele’. 24 Então, os
judeus chamaram de novo o homem que tinha sido cego. Disseram-lhe: ‘Dá glória a
Deus! Nós sabemos que esse homem é um pecador’. 25 Então ele respondeu: ‘Se ele
é pecador, não sei. Só sei que eu era cego e agora vejo’. 26 Perguntaram-lhe então:
‘Que é que Ele te fez? Como te abriu os olhos?’. 27 Respondeu ele: ‘Eu já vos
disse, e não escutastes. Por que quereis ouvir de novo? Por acaso quereis
tornar-vos discípulos d’Ele?’. 28 Então insultaram-no, dizendo: ‘Tu, sim, és
discípulo d’Ele! Nós somos discípulos de Moisés. 29 Nós sabemos que Deus falou
a Moisés, mas esse, não sabemos de onde é’. 30 Respondeu-lhes o homem:
‘Espantoso! Vós não sabeis de onde Ele é? No entanto, Ele abriu-me os olhos! 31
Sabemos que Deus não escuta os pecadores, mas escuta aquele que é piedoso e que
faz a sua vontade. 32 Jamais se ouviu dizer que alguém tenha aberto os olhos a
um cego de nascença. 33 Se este homem não viesse de Deus, não poderia fazer
nada’. 34 Os fariseus disseram-lhe: ‘Tu nasceste todo em pecado e estás nos
ensinando?’.
E expulsaram-no da comunidade.
35 Jesus soube que o tinham expulsado.
Encontrando-o, perguntou-lhe: ‘Acreditas no Filho do Homem?’. 36 Respondeu ele:
‘Quem é, Senhor, para que eu creia nele?’. 37 Jesus disse: ‘Tu o estás vendo; é
Aquele que está falando contigo’. Exclamou ele: 38 ‘Eu creio, Senhor!’. E
prostrou-se diante de Jesus. 39 Então, Jesus disse: ‘Eu vim a este mundo para
exercer um julgamento, a fim de que os que não veem, vejam, e os que veem se
tornem cegos’. 40 Alguns fariseus, que estavam com ele, ouviram isto e lhe
disseram: ‘Porventura, também nós somos cegos?’. 41 Respondeu-lhes Jesus: ‘Se
fôsseis cegos, não teríeis culpa; mas como dizeis: ‘Nós vemos’, o vosso pecado
permanece’” (Jo 9, 1-41).
Ao operar o milagre da cura de um cego de nascença, Nosso Senhor
Jesus Cristo mostra que há cegueira pior à dos olhos corporais: a da alma, que
impede o desenvolvimento da luz sobrenatural infundida em nossas almas pelo
Batismo.
I - O Domingo
"Lætare" traz-nos uma jubilosa esperança
A
visão é o principal dos sentidos corpóreos, por ser o que nos proporciona
melhor o conhecimento do Criador, através da contemplação do verdadeiro, do bom
e do belo existente nas criaturas.
Esse
magnífico dom é símbolo de outro mais precioso, relativo à vida da graça. Não
vemos a Deus fisicamente, mas Ele está presente em toda parte. Embora possamos,
pela lógica, demonstrar sua existência, não nos é possível vê-Lo com os olhos
carnais, mas sim aderirmos a Ele com o auxílio da luz da graça que ilumina a
inteligência, inclina a vontade ao bem e ordena nossa sensibilidade. Sem o dom
de Deus que é a virtude da fé, nada conseguimos ver nem aceitar no campo
sobrenatural. Entretanto, como afirma Royo Marín, "ao revelar-nos sua vida
íntima e os grandes mistérios da graça e da glória, Deus nos faz ver as coisas,
por assim dizer, do seu ponto de vista divino, tal como Ele as vê".1
Em
sentido figurado, poderíamos dizer que nascemos com os olhos vendados e o
Batismo nos arranca a venda. Mesmo assim, na Terra vemos a Deus em sombras, ou
seja, não podemos vê-Lo como Ele é. Explica-nos isso com clareza Mons. Cuttaz:
"Encontra-Se Ele diante de nós com toda a sua infinita beleza, pois está
em toda parte, especialmente na alma do justo. Um pouco, nós O conhecemos por
sua ação, mas não O vemos: falta-nos uma luz, um instrumento de visão
sobrenatural. É a graça que nos proporcionará isso no Céu, dentro desse ‘lumen
gloriæ' (luz da glória), da qual será o princípio".2
Nesta
vida terrena, temos na alma apenas uma semente de visão beatífica. Mas, ao
passarmos para a eternidade, ela se desenvolverá como uma árvore, e
desaparecerão por completo os véus que cobrem a fé e a esperança, e veremos
Deus face a face.
A
liturgia do 4º Domingo da Quaresma, domingo de alegria, nos traz a jubilosa
esperança da plena posse dessa visão.
II - Um homem que
vivia nas trevas físicas e espirituais
Ao
escrever seu Evangelho, no momento em que a Igreja se encontra em plena
controvérsia com os gnósticos, São João empenha-se desde o início em provar que
Jesus é ao mesmo tempo Homem, embora sem personalidade humana, e Deus, unindo
hipostaticamente a natureza divina e a humana na Segunda Pessoa da Santíssima
Trindade.
Analisando
a finalidade do Evangelho de São João, comenta o padre Tuya: "Quis-se
notar nele uma certa tendência polêmica contra o fato de querer separar o homem
de Deus".3 E acrescenta mais adiante: "Num aspecto, a imagem de
Cristo aparece delineada com traços sublimes: é Deus. [...] Mas mostra que Ele
é também Homem. [...] Na imagem do Deus-Homem, João não se limita a especular;
relata a história e revela os atos divinos e humanos".4
O
trecho do Evangelho deste domingo apresenta Nosso Senhor pouco depois de sair
do Templo, onde acabara de ter uma das mais ardentes polêmicas com os fariseus,
encerrada por Ele com uma solene declaração de sua divindade, ao afirmar com
fórmula de juramento: "Em verdade vos digo, antes que Abraão fosse, Eu
sou" (Jo 8, 58). Os fariseus, então, "pegaram em pedras para Lhe
atirarem" (Jo 8, 59). Tinham a intenção de matá-Lo, mas não conseguiram,
pois Ele se esquivou e saiu do Templo, "porque ainda não era chegada sua
hora" (Jo 8, 20).
Logo
após essa dramática cena, Jesus fez diante de todo o povo o estrondoso milagre
que servirá para confirmar a veracidade de suas palavras a respeito de sua
sobrenatural origem.
Cristo dispôs
tudo para sua glória
Naquele tempo, 1 ao passar, Jesus viu um
homem cego de nascença. 2 Os discípulos perguntaram a Jesus: “Mestre, quem pecou
para que nascesse cego: ele ou os seus pais?” 3 Jesus respondeu: “Nem ele nem
seus pais pecaram, mas isso serve para que as obras de Deus se manifestem nele.
4 É necessário que nós realizemos as obras d’Aquele que Me enviou, enquanto é
dia. Vem a noite, em que ninguém pode trabalhar. 5 Enquanto estou no mundo, Eu
sou a Luz do mundo”.
A
crença de que os males físicos eram sempre consequência de algum pecado estava
muito arraigada não só nos judeus, mas também nos povos pagãos contemporâneos
de Cristo. "Em diversas ocasiões", escreve Fillion, "o próprio
Jesus parecia ter considerado como castigo do pecado algumas das enfermidades
por Ele curadas". 5 E São João Crisóstomo observa que certa feita, depois
de haver curado um paralítico, Ele o advertiu: "Não peques mais, para não
te suceder algo pior" (Jo 5, 14), dando a entender assim que o pecado
havia sido causa daquela doença.6
No
presente caso, porém, declara taxativamente o Mestre que essa cegueira foi
permitida desde toda a eternidade, para dar ensejo à manifestação de seu poder
divino sobre a natureza. E, como veremos pouco abaixo, esse milagre foi também
a misericordiosa oportunidade para o cego receber a graça da conversão;
juntamente com a luz natural, veio-lhe a fé n'Aquele que é a Luz do mundo.
A didática de um
grandioso milagre
6 "Dito isto, Jesus cuspiu no chão,
fez lama com a saliva e colocou-a sobre os olhos do cego. 7 E disse-lhe: ‘Vai
lavar-te na piscina de Siloé' (que quer dizer: Enviado). O cego foi, lavou-se e
voltou enxergando".
Causa
surpresa o fato de Jesus cuspir no chão, fazer lama, passar nos olhos do doente
e depois dar-lhe ordem de ir lavar-se. Ora, Ele poderia ter operado esse
milagre mediante um simples olhar ou um ato de vontade, como mais tarde fará
com outro cego - o de Jericó - a quem Jesus disse: "Vê" (Lc 18, 42).
No entanto, quis sarar o cego de nascença aplicando-lhe barro sobre os olhos e
mandando-o lavar-se na piscina de Siloé. Bem observa, a este propósito, São
João Crisóstomo: "Cuspiu no chão para eles não atribuírem um poder
milagroso à água dessa piscina e para entenderem que saiu de sua boca a
misteriosa energia que regenerou os olhos do cego e os abriu. É por isso que o
Evangelista diz: ‘Fez lama com a saliva'. Em seguida, para evitar que se pensasse
num poder secreto da terra, mandou-o ir lavar-se".7
Primeiro
quis o Divino Mestre que todos os circunstantes vissem o cego com barro nos
olhos, e isso, certamente, causou viva impressão. Em seguida, ao retornar o
homem curado, ficaria patente perante eles Quem era o autor da cura. Para um
povo duro de coração como aquele, era preciso não haver dúvida a tal respeito.
Daí ter Jesus utilizado a própria saliva, misturando-a com a terra, duas
matérias incapazes por si de operar a cura, ressaltando provir d'Ele o poder
sobrenatural. Pode-se observar que os detalhes do episódio foram divinamente
dispostos para produzir nos presentes o grande efeito narrado pelo Evangelista.
Por
sua vez, o cego acreditou na palavra de Jesus. Não pensou, por exemplo, em quantas
vezes já se lavara na piscina de Siloé, sem se curar, nem se aquela lama
poderia prejudicar ainda mais sua saúde. Comenta São João Crisóstomo:
"Note-se como o cego tinha a disposição de obedecer em tudo. [...] Seu
único objetivo foi o de obedecer a Quem lhe ordenava. Nada pôde dissuadi-lo,
nada constituiu obstáculo".8 Ele fez exatamente o que Nosso Senhor
mandara, e foi recompensado.
Má vontade diante
do milagre patente
8 "Os vizinhos e os que costumavam ver
o cego - pois ele era mendigo - diziam: ‘Não é aquele que ficava pedindo
esmola?'. 9 Uns diziam: ‘Sim, é ele!'. Outros afirmavam: ‘Não é ele, mas alguém
parecido com ele'. Ele, porém, dizia: ‘Sou eu mesmo!'. 10 Então lhe
perguntaram: ‘Como é que se abriram os teus olhos?'. 11 Ele respondeu: ‘Aquele
homem chamado Jesus fez lama, colocou-a nos meus olhos e disse-me: ‘Vai a Siloé
e lava-te'. Então fui, lavei-me e comecei a ver'. 12 Perguntaram-lhe: ‘Onde
está ele?'. Respondeu: ‘Não sei'".
Um
fato tão extraordinário como este foi motivo de grande sensação, comentários e
discussões entre "os vizinhos e os que costumavam ver o cego" pedindo
esmolas. O sintético relato evangélico não especifica se houve manifestações de
entusiasmo, de incredulidade ou de ódio. Contudo, parece certo que a primeira
reação de alguns foi, pelo menos, de "ignorar" a evidência da cura milagrosa.
Indício disso é o tom reservado das respostas do feliz beneficiário do milagre.
Má-fé e dureza de
coração dos fariseus
13 "Levaram então aos fariseus o homem
que tinha sido cego. 14 Ora, era sábado, o dia em que Jesus tinha feito lama e
aberto os olhos do cego. 15 Novamente, então, lhe perguntaram os fariseus como
tinha recuperado a vista. Respondeu-lhes: ‘Colocou lama sobre meus olhos, fui
lavar-me e agora vejo!'. 16 Disseram, então, alguns dos fariseus: ‘Esse homem
não vem de Deus, pois não guarda o sábado'. Mas outros diziam: ‘Como pode um
pecador fazer tais sinais?'. 17 E havia divergência entre eles. Perguntaram
outra vez ao cego: ‘E tu, que dizes daquele que te abriu os olhos?'. Respondeu:
‘É um profeta'. 18 Então, os judeus não acreditaram que ele tinha sido cego e
que tinha recuperado a vista".
A
par do desentendimento instalado entre os fariseus a propósito do
acontecimento, esses versículos tornam patentes dois aspectos do estado de
espírito deles. A má-fé: pouco se importando com o favor dispensado por Nosso
Senhor ao infortunado cego, proferem contra Ele a desgastada censura de
violação do sábado. E a dureza de coração: mesmo diante da evidência, negam-se
a acreditar em Jesus e inquirem o mendigo, não para apurar a verdade, mas na
esperança de conseguir um testemunho hostil ao Divino Mestre.
"Interrogam-no acerca da visão obtida, não para saber, mas para forjar uma
calúnia e impor falsidade",9 comenta São Tomás. O ex-cego, pelo contrário,
faz diante deles um ato de fé em Jesus: "É um profeta".
Como se esquivam
os pais do cego
"Chamaram os pais dele 19 e
perguntaram-lhes: ‘Este é o vosso filho, que dizeis ter nascido cego? Como é
que ele agora está enxergando?'. 20 Os seus pais disseram: ‘Sabemos que este é
nosso filho e que nasceu cego. 21 Como agora está enxergando, isso não sabemos.
E quem lhe abriu os olhos também não sabemos. Interrogai-o, ele é maior de
idade, ele pode falar por si mesmo'. 22 Os seus pais disseram isso, porque
tinham medo das autoridades judaicas. De fato, os judeus já tinham combinado
expulsar da comunidade quem declarasse que Jesus era o Messias. 23 Foi por isso
que seus pais disseram: ‘É maior de idade. Interrogai-o a ele'".
Não
tiveram dificuldade os pais do cego em perceber a malícia e o ódio que
imperavam nesse inquérito dos fariseus. E tinham motivos de sobra para
temê-los, pois a expulsão da sinagoga poderia ter graves consequências no campo
civil, como o desterro e o confisco dos bens. Por isso preferiram cortar
qualquer possibilidade de fazer algum pronunciamento a respeito de Jesus: Não
sabemos, perguntai ao nosso filho, ele é maior de idade.
Contraste entre o
ódio dos fariseus e a sabedoria do mendigo
24 "Então, os judeus chamaram de novo
o homem que tinha sido cego. Disseram-lhe: ‘Dá glória a Deus! Nós sabemos que
esse homem é um pecador'. 25 Então ele respondeu: ‘Se ele é pecador, não sei.
Só sei que eu era cego e agora vejo'. 26 Perguntaram-lhe então: ‘Que é que ele
te fez? Como te abriu os olhos?'. 27 Respondeu ele: ‘Eu já vos disse, e não
escutastes. Por que quereis ouvir de novo? Por acaso quereis tornar-vos
discípulos d'Ele?'. 28 Então insultaram-no, dizendo: ‘Tu, sim, és discípulo
d'Ele! Nós somos discípulos de Moisés. 29 Nós sabemos que Deus falou a Moisés,
mas esse, não sabemos de onde é'. 30 Respondeu-lhes o homem: ‘Espantoso! Vós
não sabeis de onde ele é? No entanto, ele abriu-me os olhos! 31 Sabemos que
Deus não escuta os pecadores, mas escuta aquele que é piedoso e que faz a sua
vontade. 32 Jamais se ouviu dizer que alguém tenha aberto os olhos a um cego de
nascença. 33 Se este homem não viesse de Deus, não poderia fazer nada'. 34 Os
fariseus disseram-lhe: ‘Tu nasceste todo em pecado e estás nos ensinando?'. E
expulsaram-no da comunidade".
Grande
era a contumácia dos dirigentes da sinagoga. Nota-se nesses versículos, mais
uma vez, sua malévola insistência na tentativa de obter do miraculado uma
declaração contra o Senhor. "Os fariseus procuravam em sua resposta
somente um motivo para desvirtuar os fatos e negar que Cristo o havia
curado", observa o padre Tuya.10 Mas, assistido pelo Espírito Santo, o
mendigo respondeu-lhes com acerto, tal como o próprio Jesus teria feito em
iguais circunstâncias. "Que contraste entre o ódio, a astúcia e a violência
dos fariseus, reprimida no início, mas logo depois declarada, e, de outro lado,
a calma, a habilidade e a fina ironia do mendigo que, embora aparentemente
vencido, conseguirá a vitória!",11 comenta bem a propósito Fillion.
Prevaleceu a sabedoria do homem simples fiel à graça sobre a pretensiosa
ciência dos fariseus, ficando patente que o milagre beneficiara mais
profundamente a visão da alma do que a visão do corpo.
Quanto
aos fariseus, estes reagiram de acordo com sua obstinação: após insultar grosseiramente
o homem que uma autoridade justa deveria tratar com toda a benevolência,
decretaram contra ele a sentença de excomunhão.
Uma
razão a mais para Jesus o atrair a Si com sua divina bondade. Comenta, a esse
respeito, Santo Agostinho: "Depois de muitas coisas, foi excluído da
sinagoga dos judeus aquele que era cego e agora enxergava. Enfureceram-se
contra ele e o expulsaram. E era isso que temiam seus pais, conforme foi
declarado pelo Evangelista. [...] Temiam, pois, eles serem enxotados da
sinagoga; ele não temeu e foi enxotado; os pais permaneceram nela. Mas ele é
acolhido por Cristo e pode dizer: ‘Porque meu pai e minha mãe me abandonaram'.
Que acrescentou? ‘O Senhor, porém, tomou-me sob a sua proteção'. Vem, ó Cristo,
e recebe-o; eles o excomungaram, acolhe-o tu. Tu, o Enviado, acolhe o
excluído".12
O cerne deste
episódio
35 "Jesus soube que o tinham
expulsado. Encontrando-o, perguntou-lhe: ‘Acreditas no Filho do Homem?'. 36
Respondeu ele: ‘Quem é, Senhor, para que eu creia nele?'. 37 Jesus disse: ‘Tu O
estás vendo; é Aquele que está falando contigo'. Exclamou ele: 38 ‘Eu creio,
Senhor!'. E prostrou-se diante de Jesus".
O
objetivo de São João, ao narrar esse episódio, era, sem dúvida, tornar evidente
o seguinte ponto: ao ser curado da cegueira, aquele homem recebeu também a
crença na divindade de Cristo.
A
pergunta do Mestre é formulada com suprema sagacidade. Em diversas ocasiões Ele
Se denomina nos Evangelhos como o Filho do Homem. Essa expressão O protegia da
malícia dos fariseus, que procuravam pretexto para condená-Lo, pois podia ser
interpretada tanto como "o homem que Eu sou", quanto como uma
denominação do Messias.13 No fundo, Ele dava testemunho da sua divindade por
meio de um título do qual os fariseus não poderiam tirar proveito para seus
insidiosos ataques.
E
quando respondeu ao mendigo com as palavras: "Tu O estás vendo",
fazia menção ao duplo benefício que lhe concedera: a visão natural e o dom de
crer na sua divindade. Por isso o miraculado proclamou sua fé prosternando-se
diante d'Ele, em atitude de adoração, e provavelmente passou a acompanhar os
discípulos.
É
razoável considerar ter esse milagre concorrido muito para confirmar na fé os
próprios Apóstolos e, ademais, lhes haver dado a possibilidade de ponderar o
quanto vale mais a conversão espiritual do que a cura da cegueira material.
A
leitura do próximo versículo nos fará entender melhor este aspecto da questão.
A verdadeira
visão
39 "Então, Jesus disse: ‘Eu vim a este
mundo para exercer um julgamento, a fim de que os que não veem, vejam, e os que
veem se tornem cegos'".
Emprega
aqui o Divino Mestre o verbo "ver" em dois sentidos: o físico e o
espiritual. Santo Agostinho assim comenta essa passagem: "Embora todos, ao
nascer, tenhamos contraído o pecado original, nem por isso nascemos cegos;
contudo, considerando bem, nascemos cegos nós também. Com efeito, quem não
nasceu cego? Cego de coração. Mas o Senhor, que fizera ambas as coisas, os
olhos e o coração, curou tanto uns quanto o outro".14
40 "Alguns fariseus, que estavam com
Ele, ouviram isto e Lhe disseram: ‘Porventura, também nós somos cegos?'. 41
Respondeu-lhes Jesus: ‘Se fôsseis cegos, não teríeis culpa; mas como dizeis:
‘Nós vemos', o vosso pecado permanece'".
À
interpelação de alguns fariseus, Nosso Senhor responde com uma impressionante
increpação. Com efeito, se, apesar de todas as obras por Ele realizadas, alguém
O considera apenas de modo natural e humano, sem reconhecer sua divindade, esse
é, de fato, um cego de alma, um cego de coração. Pelo contrário, quem padece de
cegueira corporal, mas, por ação da graça, acredita na divindade do Messias,
este foi curado da cegueira espiritual, cura incomparavelmente mais importante
que a da cegueira física. Pois, como afirma o Apóstolo, "o que é visível é
passageiro, mas o que é invisível é eterno" (II Cor 4, 17).
Essa
é a beleza da liturgia de hoje, ao ressaltar a maravilha da visão sobrenatural.
III - Deixemos as
trevas deste mundo
O
cerne deste Evangelho nos é sintetizado por São Paulo em sua Epístola aos
Efésios, também proposta à nossa consideração neste domingo da alegria:
"Outrora éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor" (Ef 5, 8).
Tendo
nascido com o pecado original, de fato estaremos em trevas para compreender o
sobrenatural enquanto não recebermos a luz da graça pelo Batismo. Esta é
incomparavelmente superior à própria luz solar. "O que é o Sol para o
mundo sensível, é-o Deus para o mundo espiritual: a luz da justiça e da verdade
eterna, da mais elevada formosura e do amor infinito, da mais pura santidade e
da mais perfeita felicidade", 15 afirma o padre Scheeben.
Em
nosso apostolado, esforcemo-nos, pois, em ajudar os outros a recuperar a vista
espiritual, porque, assim, poderão contemplar os reflexos da luz divina na
criação e ordenar sua vida em função desse Luzeiro que é Cristo Jesus e a Santa
Igreja Católica Apostólica Romana.
Apresentando-nos
esse magnífico Evangelho sobre a luz no 4º Domingo da Quaresma, a Igreja nos
proporciona um particular alento para avançarmos com ânimo resoluto na vida
espiritual. Às vezes fraquejamos, deixamo-nos arrastar por nossas más
inclinações e sentimos periclitar nossa perseverança nas vias da santificação.
Nesses momentos, lembremo-nos da cura do cego de nascença e consideremos que,
se Deus permitiu que caíssemos numa debilidade, Ele está atento para intervir a
qualquer momento e restaurar em nós a vida divina. Com as orações e a mediação
maternal de Maria, nos encontraremos purificados para contemplar a luz do Círio
Pascal, símbolo também dessa Luz que nos foi dada com a Ressurreição de Cristo
e que nos vem através dos Sacramentos.
1 ROYO
MARÍN, OP, Antonio. Teología Moral para Seglares. 5.ed. Madrid: BAC, 1979, v.I, p.232.
2
CUTTAZ, François Joseph. Nuestra vida de gracia (El Justo). Madrid: Studium,
1962, p.28-29.
3 TUYA,
OP, Manuel de. Biblia comentada. Evangelios. Madrid: BAC, 1964, v.II, p.941.
4 Idem, p.946.
5 FILLION, Louis-Claude. Vida de Nuestro Señor
Jesucristo. Madrid: Rialp, 2000, v.II, p.358-359.
6 Cf.
SÃO JOÃO CRISÓSTOMO. Homilías sobre el Evangelio de San Juan (30-60). Madrid:
Ciudad Nueva, 2001, v.II, p.273.
7 Idem,
p.282-283.
8 Idem,
p.283-284.
9 SÃO
TOMÁS DE AQUINO. Comentario al Evangelio según San Juan. Buenos Aires: Ágape,
2008, t.V, p.22.
10 TUYA, op. cit., p.1163.
11 FILLION, op. cit., p.362.
12
SANTO AGOSTINHO. Enarrationes in Ps. 130, 4. In: Obras de San Agustín. 2.ed. Madrid: BAC, 1965, v.X, p.630-631.
13 Cf. LÉON-DUFOUR, SJ, Xavier (Org.). Vocabulário de
Teologia Bíblica. Petrópolis: Vozes, 1972, p.365-366.
14
SANTO AGOSTINHO. Enarrationes in Ps. 136, 2. In: op. cit., p.642.
15
SCHEEBEN, Matthias-Joseph. As maravilhas da graça divina. Petrópolis: Vozes,
1952, p.147.
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