Comentários ao Evangelho da Solenidade da Anunciação do Senhor – 25 de Março
Naquele tempo, 26 o Anjo Gabriel foi enviado por
Deus a uma cidade da Galileia, chamada Nazaré, 27 a uma Virgem, prometida em
casamento a um homem chamado José. Ele era descendente de Davi e o nome da
Virgem era Maria.
28 O Anjo entrou onde Ela estava e disse:
“Alegra-Te, cheia de graça, o Senhor está contigo!”
29 Maria ficou perturbada com essas palavras e
começou a pensar qual seria o significado da saudação.
30 O Anjo, então, disse-Lhe: “Não tenhas medo,
Maria, porque encontraste graça diante de Deus. 31 Eis que conceberás e darás à
luz um Filho, a quem porás o nome de Jesus. 32 Ele será grande, será chamado
Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus Lhe dará o trono de seu pai Davi. 33 Ele
reinará para sempre sobre os descendentes de Jacó, e o seu Reino não terá fim”.
34 Maria perguntou ao Anjo: “Como acontecerá isso,
se Eu não conheço homem algum?”
35 O Anjo respondeu: “O Espírito virá sobre Ti, e o
poder do Altíssimo Te cobrirá com sua sombra. Por isso, o Menino que vai nascer
será chamado Santo, Filho de Deus.
36 Também Isabel, tua parenta, concebeu um filho na
velhice. Este já é o sexto mês daquela que era considerada estéril, 37 porque
para Deus nada é impossível”.
38 Maria, então, disse: “Eis aqui a serva do
Senhor; faça-se em Mim segundo a tua palavra!” E o Anjo retirou-se (Lc 1,
26-38).
Maria seria capaz de restabelecer a
ordem no universo?
A Solenidade da Anunciação do Senhor
é a mais bela ocasião para celebrar a restauração da harmonia no universo. É a comemoração
do dia no qual a criação passou a transluzir com um brilho todo divino, pelos
méritos de Maria Santíssima.
Um
Universo composto por criaturas com deficiências
Se nos fosse dado contemplar a
imensidade dos possíveis de Deus, ou seja, o incontável número de seres que Ele
poderia ter criado em sua onipotência, veríamos criaturas semelhantes às deste
mundo, mas sem os seus característicos defeitos. Por exemplo, ouriços
constituídos sem meios de causar mal aos homens; pernilongos lindíssimos
dotados de uma picada agradável e benfazeja; urubus de figura tão elegante
quanto os seus voos, e assim por diante.
Por que não pôs Deus no universo
criaturas assim, sem qualquer defeito, as quais poderiam ter sido criadas e não
o foram?
Pergunta esta de difícil resposta. O
certo, porém, é que no universo no qual vivemos três criaturas são
insuperáveis: a humanidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, unida hipostaticamente
à divindade; a visão beatífica e Nossa Senhora.1 Todos os outros seres,
considerados individualmente, poderiam ser mais perfeitos.
Ora, este mundo composto por criaturas
com deficiências é, entretanto, ótimo no seu conjunto, como ensina São Tomás de
Aquino: “O universo não pode ser melhor do que é, se o supomos como constituído
pelas coisas atuais, em razão da ordem muito apropriada atribuída às coisas por
Deus e em que consiste o bem do universo. Se apenas uma dessas coisas se
tornasse melhor, a proporção da ordem estaria destruída, como a melodia de uma
cítara ficaria destruída se uma corda se tornasse mais tensa do que deve”.2
O universo criado por Deus tinha de ser
o que mais O glorificasse, porque Ele não poderia ter escolhido criá-lo de
forma nem um pouco inferior ao mais adequado. E tudo quanto nele existe de
defectivo serve para o homem ter presente a sua debilidade, fraqueza e
dependência contínua de Deus. Lembra-lhe, enfim, sua contingência. É deste
mundo, com deficiências, que nós fazemos parte.
As considerações acima nos preparam
para analisar o papel de Nossa Senhora na Criação, que é especialmente
recordado na liturgia escolhida pela Igreja para a Solenidade da Anunciação do
Senhor.
O “fiat” de Maria Santíssima
Sobre a conhecidíssima e tão comentada
passagem evangélica da Anunciação, pareceria não haver nada de novo a dizer.
Entretanto, como um vinho excelente apresenta aspectos diferentes em cada
safra, assim também acontece com o magno acontecimento da Encarnação do Verbo,
no qual sempre descobriremos novas e magníficas maravilhas.
As aparências não estão à altura do
acontecimento
“Naquele tempo, 26 o anjo Gabriel foi
enviado por Deus a uma cidade da Galileia, chamada Nazaré, 27 a uma Virgem,
prometida em casamento a um homem chamado José. Ele era descendente de Davi e o
nome da Virgem era Maria”.
Antes de entrar na análise da narração
de São Lucas, é mister voltarmos nossa atenção para o local onde Se encontrava
Maria Santíssima ao ser visitada pelo Arcanjo São Gabriel. Não se tratava de um
magnífico palácio, como tantos artistas imaginaram, mas de uma casa muito
modesta, com paredes de tijolos aparentes. Estava situada em Nazaré, uma cidade
então insignificante, na qual a Sagrada Família viverá na pobreza, humildade e
apagamento.
Não há neste episódio outros elementos
cujas aparências estejam à altura do acontecimento que ali se daria, a não ser
a presença da Virgem Maria, e também a de São José. Pois o elevadíssimo grau de
santidade de ambos certamente transluzia em seus gestos, fisionomias e em todo
o seu modo de ser.
No momento da Anunciação, Nossa Senhora
rezava
28a “O anjo entrou onde Ela
estava...”.
O que fazia Maria Santíssima quando o
anjo chegou junto a Ela? Sem dúvida, rezava, talvez considerando a desastrosa
situação na qual se encontrava a humanidade. O povo judeu havia se desviado da
prática da verdadeira religião e os pagãos, a começar pelos romanos, viviam
numa tremenda decadência moral. Chegara-se ao que São Paulo chama “plenitude
dos tempos” (Ef 1, 10).
É assim, com Maria Santíssima orando ao
Pai recolhida no seu aposento, que São Bernardo descreve a cena da Anunciação,
pondo em realce a importância da oração para Deus manifestar-Se. Pois uma coisa
é evidente: as preces d’Ela comoveram os Céus: “A saudação do anjo, feita com
tanta reverência, indica quanto as orações de Maria haviam agradado ao
Altíssimo”3 — afirma o Doutor Melífluo.
Numa de suas meditações sobre a vida de
Cristo, São Boaventura nos apresenta a jovem Maria levantando-Se à meia noite
no Templo para fazer sete súplicas diante do Altar e rezando desta forma: “Eu
Lhe pedia a graça de presenciar o tempo no qual haveria de nascer aquela Virgem
Santíssima que daria à luz o Filho de Deus, de conservar-me os olhos para poder
vê-La, a língua para louvá-La, as mãos para servi-La, os pés para ir aonde Ela
mandar e os joelhos para adorar o Filho de Deus em seu regaço”.4
Sua humildade A impedia de concluir
quem haveria de ser essa Dama à qual desejava ardentemente servir, mas, possuindo
ciência infusa e recebendo graças sobre graças, foi tecendo considerações até
conceber em seu espírito, com total nitidez, a figura moral do Messias
prometido. Maria “concebeu Cristo em sua mente antes de concebê-Lo em seu
ventre”, afirma Santo Agostinho.5
Ao ver iluminar-se o aposento por uma
luz sobrenatural e aparecer diante d’Ela o Arcanjo São Gabriel, Maria não deu o
menor sinal de espanto. Segundo vários autores, entre eles São Pedro Crisólogo
e São Boaventura, Ela estava “habituada às aparições angélicas, as quais não
podiam deixar de ser frequentes para Aquela que Deus havia cumulado de tantas
graças, que reservava para tão altos destinos, e que os anjos reverenciavam
como sua Rainha e a própria Mãe de Deus”.6 Podemos, inclusive, conjecturar que
o próprio São Gabriel não Lhe fosse desconhecido.
A graça crescia n’Ela a cada instante
28b“... e disse: ‘Alegra-Te, cheia de
graça, o Senhor está contigo!’”.
A expressão usada pelo Anjo para
saudá-La tem um sentido muito profundo no qual vale a pena nos determos.
Nosso Senhor Jesus Cristo, Salvador da
humanidade, é a única criatura que possui a plenitude absoluta de graça. Ele a
teve desde o início, sem qualquer possibilidade de aumento. E quando o
Evangelho afirma que Jesus “ia crescendo em sabedoria, tamanho e graça diante
de Deus e dos homens” (Lc 2, 52), refere-se às manifestações exteriores de sua
santidade. “Mas interiormente o tesouro de dons celestes, que O tornavam
agradável a Deus, era tão perfeito que não podia crescer de maneira alguma”.7
Não acontecia o mesmo com Nossa
Senhora. Ao longo de toda a sua vida, foi incessante seu progresso espiritual,
ora devido aos méritos sobrenaturais obtidos pela prática de incontáveis boas
obras, ora como fruto da sua oração humilde, confiante e perseverante, ora, no
fim da sua existência, por efeito do Sacramento da Eucaristia. E isto sem falar
dos incrementos de graça, de incalculáveis proporções, experimentados por sua
alma no momento da Encarnação do Verbo, aos pés da Cruz e por ocasião de
Pentecostes.8
Não houve, portanto, um instante no
qual Ela não tivesse mais graça do que no anterior, como bem exprime Campana:
“Em todos os momentos de sua vida, Maria foi penetrada por inteiro pelos raios
divinos da graça; em cada minuto de sua existência, sua vontade mostrou-se
dócil em render a Deus homenagem e glória; todas as pulsações de seu Coração
foram sempre para Deus. [...] Essa ascensão de Maria rumo ao ideal de santidade
era contínua, uniforme, sem solavancos, sem interrupção”.9
Assim, quando o anjo A proclama “cheia
de graça”, indica estar sua alma participando da vida divina no maior grau
possível naquele instante; mas um minuto depois essa plenitude já seria maior.
E conclui o mesmo Campana: “Maria
progredia em graça porque n’Ela se desdobravam sem cessar novas capacidades de
graça, as quais eram logo preenchidas. Precisamente nisto consiste a diferença
característica entre a plenitude de santidade de Maria e a de Jesus Cristo”.10
Plenitude de superabundância
Com base no Doutor Angélico,
Garrigou-Lagrange distingue três plenitudes de graça: absoluta, exclusiva de
Cristo; de superabundância, privilégio especial de Maria; e de suficiência,
comum a todos os santos.11 E explica o insigne teólogo dominicano: “Essas três
plenitudes subordinadas foram justamente comparadas à de uma fonte inesgotável,
à do rio que dela procede e à dos canais alimentados por esse rio para irrigar
e fertilizar as regiões por ele atravessadas, ou seja, as diversas partes da
Igreja universal no espaço e no tempo”.12
Assim, desde o momento de sua criação,
Maria Santíssima participou da vida divina mais do que todos os Anjos e todos
os bem-aventurados juntos. A tal ponto, que se Ela lhes distribuísse todas as
graças das quais cada um deles tivesse necessidade, nada Lhe faltaria, pois, “sob
a forma de méritos, de orações e de sacrifícios, esse rio de graça remonta a
Deus, oceano da paz”.13
A plenitude da graça de Maria, afirma
São Lourenço de Bríndisi, “só é compreensível para Deus, pois só Ele abarca o
abismo imenso e o quase infinito pélago dessa graça”.14
Causa da perturbação de Maria
29 “Maria ficou perturbada com essas
palavras e começou a pensar qual seria o significado da saudação”.
A reação de Nossa Senhora mostra a
profundidade do seu espírito.
Dotada de ciência infusa, Ela entendeu perfeitamente
o alcance da altíssima afirmação do anjo, considerando não apenas o significado
imediato daquelas palavras, mas também suas consequências e correlações com o
panorama da História.
Contudo, sendo cheia de graça, um dos
seus predicados era a humildade mais excelsa. Em nada preocupada consigo mesma,
todas as suas cogitações voltavam-se para Deus e a salvação da humanidade:
Quando virá o Messias? Quando se dará a redenção?
A presença de São Gabriel não Lhe
causou qualquer perturbação. Sua saudação, porém, deixou-A com um ponto de
interrogação, pois não podia imaginar que aquelas palavras pudessem ser
aplicadas a Ela. Conforme esclarece São Tomás: “A Bem-aventurada Virgem tinha
uma fé expressa na Encarnação futura: mas, por ser humilde, não tinha tão alta
ideia de Si mesma. E por isso era preciso que fosse informada a respeito da
Encarnação”.15
Medo de macular uma humildade ilibada
30 “O anjo, então, disse-Lhe: ‘Não
tenhas medo, Maria, porque encontraste graça diante de Deus’”.
Embora sem mancha de pecado original,
Nossa Senhora foi criada em estado de prova e percebia com toda clareza a
necessidade da vigilância. Temia aplicar a Si as palavras do Anjo e, cedendo em
algo ao orgulho, acabar por ofender a Deus.
“Não tenhas medo, Maria” significava:
“Não vos preocupeis, porque vossa humildade em nada será atingida”. Com essas
palavras, São Gabriel A exorta a ter confiança de que jamais sairá do reto
caminho. Não em razão dos seus méritos. Ele não diz: “Não tenhas medo porque és
forte”, mas sim “porque encontraste graça diante de Deus”.
E por que encontrou Ela graça diante de
Deus?
A resposta, no-la dá São Bernardo: “Se
Maria não fosse humilde, não desceria sobre Ela o Espírito Santo; e, se Este
não descesse, Ela não conceberia pelo poder d’Ele. Pois como poderia conceber
d’Ele sem Ele? É claro, portanto, que, para Ela conceber d’Ele, ‘o Senhor olhou
para a humildade de sua serva’ (Lc 1, 48) muito mais do que para a sua
virgindade; e, embora tenha por sua virgindade agradado a Deus, foi pela
humildade que concebeu”.16
E nós também procedemos assim? Tomamos
cuidado com a vaidade, como o fez Nossa Senhora nessa circunstância? Somos
cientes de que um pensamento de orgulho consentido pode ser o ponto de partida
para uma séria decadência na vida espiritual? Ou aceitamos com delícias
qualquer elogio, real ou imaginário, que nos seja feito?
O ato de virtude que Lúcifer e os anjos
maus não praticaram no Céu, nem Adão e Eva no Paraíso Terrestre, Maria
Santíssima o fez da forma mais perfeita possível. Que exemplo sublime Ela nos
dá, a nós tantas vezes preocupados em obter honrarias devidas ou indevidas!
“Será chamado Filho do Altíssimo”
31“Eis que conceberás e darás à luz
um filho, a quem porás o nome de Jesus. 32 Ele será grande, será chamado Filho
do Altíssimo, e o Senhor Deus Lhe dará o trono de seu pai Davi. 33 Ele reinará
para sempre sobre os descendentes de Jacó, e o seu reino não terá fim”.
Nestes três versículos, o Anjo indica
as extraordinárias características d’Aquele que Nossa Senhora haveria de
conceber. Elas estavam em perfeita harmonia com a Sagrada Escritura, a qual
Maria Santíssima conhecia como ninguém, e com a rica imagem do Messias formada
por Ela em seu espírito, ao longo dos anos.
Imaginemos qual seria a reação de uma
jovem recém-casada daquele tempo, ao receber de um anjo a notícia de que o seu
filho haveria de ser grande tanto na ordem sobrenatural: “será chamado Filho do
Altíssimo”, quanto na natural: “o Senhor Deus Lhe dará o trono de seu pai
Davi”. Impossível excogitar algo mais elevado!
Maria, entretanto, reage diante da
comunicação do Anjo dando novas mostras de humildade heroica. São Gabriel lhe
anuncia que será a Mãe do mais importante dos filhos de Israel: do próprio
Messias! E Ela o ouve tranquila e serena, porque as suas preocupações estavam bem
longe da glória pessoal.
Perplexidade diante do anúncio
34“Maria perguntou ao anjo: ‘Como
acontecerá isso, se Eu não conheço homem algum?’”.
Aqui resplandece a Fé de todo incomum
de Nossa Senhora, ante o anúncio feito pelo Anjo. Ao ouvi-lo dizer “conceberás
e darás à luz um filho”, reconhece tratar-se de fato de uma mensagem divina, e
não põe obstáculo algum à sua realização. Porém, entre as graças das quais Ela
estava plena, reluzia um insuperável amor à virtude da castidade. Desposada com
São José, combinou com ele manterem-se virgens por toda a vida.17 E é nesse
sentido que se deve entender a expressão “não conheço homem algum”. Podemos supor
ter havido longas conversas entre Ela e São José a esse respeito, chegando à
conclusão de ser claramente inspirado por Deus o voto de castidade feito por
ambos.
Mesmo com essa convicção bem arraigada
na alma, Ela não duvidara das palavras de São Gabriel. Apenas apresenta-lhe sua
perplexidade, visando conhecer mais a fundo como haveria de concretizar-se o
desígnio divino.
Origem inteiramente sobrenatural do Verbo
Encarnado
35 “O anjo respondeu: ‘O Espírito
virá sobre Ti, e o poder do Altíssimo Te cobrirá com sua sombra. Por isso, o
menino que vai nascer será chamado Santo, Filho de Deus. 36 Também Isabel, tua
parenta, concebeu um filho na velhice. Este já é o sexto mês daquela que era
considerada estéril, 37 porque para Deus nada é impossível’”.
Quem senão Deus, seu Criador, conhecia
o amor extraordinário da Virgem Santíssima à virtude da pureza? Por isso Ele,
que é a Delicadeza em essência, teve o cuidado de mandar o celeste mensageiro
resolver com extraordinária elevação e reverência sua santa perplexidade.
Conhecendo por instrução divina o
problema que a maternidade divina levantava n’Ela, o anjo Lhe mostra que, assim
como havia concedido à sua prima Isabel conceber um filho na velhice, a
Onipotência divina poderia fazê-La conceber sem concurso de varão. E Ela,
resplandecente de sabedoria e inteligência, entende em toda a sua profundidade
as explicações do Anjo e logo as aceita.
A origem inteiramente sobrenatural do
Verbo Encarnado foi revelada naquele momento. Que considerações não deve ter
feito Maria ao conhecer o alcance desse acontecimento!
Maria gerou no tempo a mesma Pessoa
gerada pelo Pai na eternidade
38 “Maria, então, disse: ‘Eis aqui a
serva do Senhor; faça-se em Mim segundo a tua palavra!’. E o anjo retirou-se”.
A escravidão é o estado mais deplorável
para uma criatura humana. Pelo Direito Romano, quem caía nessa situação era
considerado coisa, res, perdendo todos os direitos próprios à pessoa humana. E
quando a Virgem Maria disse: “Eis aqui a serva do Senhor”, o fez com total
consciência, colocando-Se por inteiro nas mãos de Deus, com absoluta confiança
na sua liberalidade.
A partir desse ato de radical
aceitação, todo ele feito de humildade e de fé, operou-se logo em seguida a
concepção do Verbo Encarnado no seu seio virginal.
Consideremos agora um aspecto
particularmente comovedor desse fiat.
O Verbo de Deus foi gerado pelo Pai
desde toda a eternidade. Conhecendo-Se a Si mesmo, Ele gerou um Filho eterno
sem concurso de mãe alguma, de uma forma misteriosa que nossa inteligência não
consegue compreender.
Ora, logo após o consentimento da
Virgem — “Eis aqui a serva do Senhor, faça-se em Mim segundo a tua palavra” —,
o Espírito Santo iniciou n’Ela o processo de gestação do Verbo Encarnado. Ela
tornou-Se Mãe sem concurso de pai natural.
Há, pois, entre o Padre Eterno e Maria
Santíssima um paralelo de impressionante grandeza: ao considerar suas próprias
magnificências, Este gera o Filho na eternidade; e Maria, pondo nas mãos de
Deus sua própria contingência, gera o Filho de Deus no tempo!
Por ser a mais humilde de todas as
criaturas, Nossa Senhora reproduz de algum modo a geração do Verbo na
eternidade, ao dar origem na Terra à natureza humana de Nosso Senhor. O Pai
criou todas as coisas no Verbo e pelo Verbo; pela Encarnação, Maria vai
permitir ao Filho oferecer-Se em sacrifício ao Pai, para a recuperação de todas
as coisas degradadas pelo pecado.18
O grandioso plano da Encarnação e da
Redenção do gênero humano esteve na dependência desse fiat de Maria, porque se,
por uma hipótese absurda, Ela não tivesse aceitado, não teria havido a
Redenção.
A festa da harmonia no Universo
Como vimos no início deste artigo, Deus
escolheu, entre infinitas possibilidades, criar o melhor dos universos, no qual
tudo se ajusta em função de Nosso Senhor Jesus Cristo. Porque se Ele tivesse
criado todos os seres no seu grau máximo de perfeição surgiria, paradoxalmente,
uma tremenda deficiência, maior do que qualquer outra que possamos conceber: a
do Verbo Encarnado não poder oferecer nada de Si para tornar mais elevada a
Criação.
Devemos, portanto, nos alegrar com as
nossas limitações e, em certo sentido, até com nossos pecados, pois eles
permitem a Nosso Senhor exercer a misericórdia, derramando sobre nós, por meio
de Maria Santíssima, aquilo que n’Ele existe em plenitude absoluta.
Porém, a fecundidade do Preciosíssimo
Sangue de Jesus é tal que, ao reparar e perdoar, Ele não só nos restaura aquilo
que perdemos, mas nos traz um complemento, dando-nos ainda mais do que
anteriormente possuíamos. Dessa maneira, podemos alcançar, pela graça divina,
aquilo que os seres mais perfeitos, se fossem criados, teriam por natureza.
Ora, foi a Virgem Maria, com sua
disponibilidade e obediência, quem introduziu no cerne da Obra divina a
Criatura cume e modelo arquetípico de tudo quanto existe, da Qual tudo deflui.
Por isso, a Solenidade da Anunciação do Senhor celebra a restauração da
harmonia no universo. É a comemoração do dia em que a Criação passou a
transluzir com um brilho todo divino, pelos méritos de Maria Santíssima.
1“A humanidade de Cristo, pelo fato de
estar unida a Deus; a bem-aventurança criada, por ser o deleitar-se em Deus; e
a Bem-aventurada Virgem, por ser a Mãe de Deus, têm até certo ponto infinita
dignidade, provinda do bem infinito que é Deus. Sob este aspecto, nada pode ser
feito melhor do que eles, como nada pode ser melhor do que Deus” (SÃO TOMÁS DE
AQUINO. Suma Teológica, I, q.25, a.6, ad.4).
2Idem, I, q.25, a.6, ad.3.
3SÃO BERNARDO. Obras Completas.
Homilías sobre la Virgen Madre 3,1. Madrid: BAC, 1953, t.I, p.207.
4SÃO BOAVENTURA. Meditaciones de la vida de Cristo. Buenos Aires: Santa Catalina, 1945, p.7.
5SANTO AGOSTINHO. Sermo 215, 4. ML
38, 1074.
6JOURDAIN, Zéphyr-Clément. Somme
des grandeurs de Marie. 2.ed. Paris: Hyppolite Walzer, 1900, t.II, p.268.
7CAMPANA, Emile. Marie dans le Dogme
Catholique – Les Prérogatives de Marie. Montréjeau: SoubironCardeilhac, s.d.,
t.II, p.281-282
8 Cf. ROYO
MARÍN, OP, Antonio. La Virgen María. Madrid: BAC, 1968, p.252-268.
9 CAMPANA, op. cit., p.278.
10 Idem, p.281
11 Cf. GARRIGOU-LAGRANGE, OP, Réginald.
La Mère du Sauveur et notre vie intérieure. Paris: Les Éditions du Cerf, 1954,
p.34-36.
12 Idem, p.35.
13Idem, ibidem.
14 SÃO LOURENÇO DE BRINDISI. Marial – María de Nazaret, “Virgen de la Plenitud”. Madrid: BAC, 2004, p.206.
15 SÃO TOMÁS DE AQUINO. Op. cit., III,
q.30, a.1, ad 2.
16 SÃO BERNARDO. Op. cit., Homilías sobre la Virgen Madre 1,5,
p.189.
17 Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Op. cit., III, q.28, a.4.
18 Observa a este propósito Alastruey:
“A Anunciação demonstra a participação na Encarnação e, portanto, na
restauração do mundo decaído, obtida pela Santíssima Virgem, de cujo
consentimento dignou-Se depender o próprio Deus para encarnar-Se em seu seio”
(ALASTRUEY, Gregorio. Tratado de La Virgen Santísima. Madrid: BAC, 1945, p.71).
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