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segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Evangelho segundo São Lucas

Reconstituir o fio cronológico dos acontecimentos e, a partir daí, reestruturar ordenadamente as circunstâncias que cercaram a vida do Salvador, mesmo antes de seu nascimento como também depois de sua morte, tem sido uma tarefa de grande alcance e levada a cabo com êxito por numerosos autores, ao longo dos séculos.
Mas, quem seria capaz de revelar as sábias e especialíssimas intervenções de Deus no curso da História, para criar o clima psicológico e preparar os espíritos com vistas à magna obra redentora? Quiçá somente no dia do Juízo possamos ter uma visão global e minuciosa desse mais belo agir da Providência.
“Lucas, o médico querido” (Col 4, 14), sob esse ponto de vista, foi o escritor sagrado mais bem-sucedido. A tal respeito, encontramos interessantes considerações na obra Comentários a la Bíblia Litúrgica (1):
“A atitude de Lucas é diferente. Não é como Marcos e Mateus, um simples pastor que recolhe o ensinamento da Igreja e o transmite num outro contexto. Sendo pastor, Lucas é também um erudito que conhece as leis da história de seu tempo; vive ancorado na tradição cultural do helenismo e pensa que os fatos da vida de Jesus e o Cristianismo podem ser apresentados dentro das exigências próprias à cultura grega, e por isso escreve seu Evangelho e o livro dos Atos.
“Por mover-se na confluência destas duas tradições (helenista e judeu-cristã), Lucas foi capaz de formular uma visão nova e esplêndida do significado de Jesus e de sua obra. A característica fundamental dessa visão é o sentido ou ritmo da História, com seu passado (Antigo Testamento), seu centro (vida de Jesus) e seu futuro (tempo da Igreja). (...)
“Lucas é o evangelista do Espírito. O laço de união do Velho Testamento, de Jesus e da Igreja, é o Espírito de Deus que realiza sua ação entre os homens. O Espírito agia sobre os profetas da Antiga Aliança e se mostrou de uma forma decisiva no surgimento de Jesus; no tempo de sua vida, Jesus realizou a missão escatológica do Espírito de Deus sobre a terra e o deixou à Igreja como herança. Tal é a tríplice epifania do Espírito na História (Antigo Testamento, Jesus e Igreja).”
Dentre as testemunhas oculares, a própria Virgem Maria!
É fácil compreender que muitos tentassem “pôr em ordem a narração das coisas” (v. 1). Porém, nem sempre atingiram esse objetivo com pleno acerto. São Lucas, com polidez, insinua isso ao afirmar: “muitos já empreenderam”, ou seja, numerosos autores não haviam conseguido lograr o necessário êxito.
Por isso conclui Beda (2): “Cita outros muitos, não tanto pelo número, quanto pela multidão de heresias que encerram; porque, como seus autores não estavam inspirados pelo Espírito Santo, fizeram um trabalho inútil, uma vez que teceram a narração a seu gosto, sem preocupar-se com a unidade histórica.”
Numa época muito distante da máquina fotográfica e do vídeo, nada poderia melhor comprovar a veracidade de um acontecimento do que a presença de observadores.
O relato feito por estes, sobretudo quando coincidentes em seu cerne e também nos seus detalhes, indicava altíssimo grau de credibilidade. Assim, Lucas se reporta às “coisas (...) como no-las referiram os que desde o princípio foram testemunhas oculares e vieram a ser ministros da palavra”. Como bom historiador e escritor, Lucas demonstra especial zelo em deixar claro tratarem-se de testemunhas que presenciaram os acontecimentos “desde o princípio”, e levanta a ponta de um véu que nos coloca diante de bela perspectiva: quem teria sido “testemunha ocular” da Anunciação, do Nascimento e da Infância de Jesus?
Realmente, não poderia ser outra pessoa senão a própria Santíssima Virgem. De onde se conclui ter ele ouvido santas e maternais narrações feitas por Maria, com base nas quais redigiu os primeiros capítulos de seu Evangelho.
Lucas atesta sua objectividade enquanto historiador: “depois de ter investigado tudo cuidadosamente desde o princípio”, decide escrever “por ordem a sua narração”, compilando os relatos orais e escritos, frutos de sua escrupulosa investigação. Ele deseja fazer uma obra que sirva de referência a outros tantos arautos da vida de Jesus, incluindo o período da infância, levando em conta, porém, o ambiente cultural daqueles tempos. Ou seja, mesclando a cronologia histórica com algo da psicologia humana.
Dedica o livro ao “excelentíssimo Teófilo”, certamente alta personalidade de sua época, pois dessa forma conferiria maior valor a sua obra. Esse era, aliás, um costume muito em voga naqueles tempos: oferecer a pessoas de escol, os trabalhos intelectuais.

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