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domingo, 2 de setembro de 2012

“Senhor, atende-me na tua justiça!”

As almas que amam fervorosamente a Deus, não raro se veêm opressas pela provação, a ponto de perderem a sensibilidade do amor que, por sua vez, Nosso Senhor tem por elas. Mais: afligem-nas a ideia de haver cometido graves ofensas contra seu Redentor. Tais justos sofrem uma paixão interior, a qual os faz expiar por aqueles que andam fora das vias de Deus. É esse o valioso ensinamento que se depreende do Salmo 142.
Salmo 142
Senhor, ouve a minha oração, presta ouvidos aos meus rogos, segundo a tua verdade; e atende-me na tua justiça.
E não entres em juízo com o teu servo, porque nenhum vivente será encontrado justo na tua presença.
Porque o inimigo perseguiu a minha alma; humilhou a minha vida até o chão.
Colocou-me em lugares obscuros, como a mortos de muito tempo. O meu espírito angustiou-se sobre mim; dentro de mim se turbou o meu coração.
Lembrei-me dos dias antigos, meditei em todas as tuas obras, meditei nas obras das tuas mãos.
Estendi as minhas mãos para Ti; a minha alma diante de Ti é como terra sequiosa.
Atende-me, Senhor, com presteza; o meu espírito desfaleceu.
Não apartes de mim a tua face, para que não seja semelhante aos que descem à cova.
Faz-me sentir desde manhã a tua misericórdia, porque em Ti tenho esperado.
Faz-me conhecer o caminho em que hei de andar, porque a Ti elevei a minha alma.
Livra-me dos meus inimigos, Senhor; junto de Ti me refugio. Ensina-me a fazer a tua vontade, porque Tu és o meu Deus.
O teu bom espírito me conduzirá à Terra da retidão. Por causa do teu nome, Senhor, me darás a vida segundo a tua justiça.
Tirarás a minha alma da tribulação, e pela tua misericórdia dissiparás todos os meus inimigos.
E destruirás todos os que atormentam a minha alma, porque eu sou teu servo.
Como os outros Salmos Penitenciais, este se inicia com uma súplica humilde, veemente, dirigida pelo Salmista a Deus . Porém, nota-se uma certa flexão na atitude do pecador: ele não fala apenas como faltoso, dependendo exclusivamente da misericórdia, mas também como homem reto que, segundo a justiça divina,  com o auxílio da graça, por sua penitência e virtude, pode esperar o Céu e a visão beatífica . Então diz:
Senhor, ouve a minha oração, presta ouvidos aos meus rogos, segundo a tua verdade; e atende-me na tua justiça.
Lembra, de alguma forma, as palavras de São Paulo,  as mais belas — exceção feita do consummatum est de Jesus no alto do Calvário — que uma pessoa tenha pronunciado antes de morrer: “Combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a fé . Resta-me agora receber a glória da justiça”, etc . (cf . Tm 4, 7-8) . Quer dizer,  lutou… perseverou . . .
O refúgio em Deus
E não entres em juízo com o teu servo, porque nenhum vivente será encontrado justo na tua presença.
Ou seja, “pesai, Senhor, minhas faltas para verificar se  elas sobrepujam ou não minhas qualidades; porque diante de Vós nenhum vivente será encontrado justo”.
Há uma aparente contradição, pois o Salmista fala da  justiça, mas acrescenta: “nenhum vivente será encontrado justo”. Isso, entretanto, é perfeitamente compreensível. Ainda que o homem seja muito bom, se não o secundar o auxílio divino, a assistência da graça, ele sucumbirá às tentações. Tendo devoção, entregando-se a Deus, o Altíssimo penetra nele, tornando-o virtuoso. Então, o  Salmista invoca a justiça do Criador, quando Deus está  nele. Não estando, temos o que ele diz: “nenhum homem  é justo”. A meu ver, um pensamento inteiramente lógico.
Porque o inimigo perseguiu a minha alma; humilhou a minha vida até o chão.
Refere-se a um homem provado, que sofre as  tentações mais cruéis. Ele é humilhado, pois o demônio quer continuamente o mal para o homem,  algo que lhe seja vexatório ao extremo, etc . Donde o Salmista procurar o refúgio em Deus.
A angústia do pecado resseca a alma, como a morte ao cadáver
Colocou-me em lugares obscuros, como a mortos de muito tempo. O meu espírito angustiou-se sobre mim; dentro de mim se turbou o meu coração.
Quanta beleza nessas palavras!
Convém recordarmos como eram as sepulturas daquele tempo, em Israel. Diferentes das de certos cemitérios modernos, nos quais existem apenas cruzes indicando o lugar no solo onde os mortos são enterrados.  Na época do Salmista, as famílias de posse tinham propriedade  sobre  determinada  área  num  rochedo  e  ali  abriam cavidades para nelas depositarem os cadáveres.  O corpo do defunto era envolto em faixas de tecido fino, perfumado com fragrâncias especiais, etc. Exceto  Nosso Senhor Jesus Cristo — e raríssimas pessoas que  ao longo da História tenham ressuscitado — ninguém  sai desse rochedo invisível, porém muito mais duro que  todas as pedras: a morte. Somente no Juízo Final todos  ressuscitarão.
Quer, então, dizer o Salmista: “Devido às tentações,  na angústia do pecado, fiquei ressequido, imóvel, inutilizado, como o cadáver de uma pessoa morta há  muito tempo. 
. . . dentro de mim se turbou o meu coração.
Ou seja, o seu coração começou a pulsar descompassadamente. É um modo de significar que sua alma, pelo extremo de aflição que se abateu sobre  ela, achou-se profundamente perturbada, passando  a ter movimentos descontrolados.
Ardente anseio pelo amor divino
Lembrei-me dos dias antigos, meditei em todas as tuas obras, meditei nas obras das tuas mãos.
Provavelmente, ele se recordou dos dias de sua inocência.
Estendi as minhas mãos para Ti...
Trata-se, naturalmente, da atitude de quem reza. Não,  porém, com as mãos unidas,  mas estendidas, como um  mendigo que pede auxílio a alguém .
...a minha alma diante de Ti é como terra sequiosa.
Crivado de tentações, às vezes horríveis e açuladas pelo  demônio, o homem, sob a  ação da graça, se defende,  resiste  e  permanece fiel a Deus. Sobressai  nele,  então,  o  intenso anseio por se ver  atendido e amado por  Deus, como a terra seca deseja a água que vai  limpá-la, torná-la fecunda, risonha, etc.
Os inocentes sofrem pelos pecadores
Atende-me, Senhor, com presteza; o meu espírito desfaleceu.
Quer dizer, “sofri tanto, meu Deus, que meu espírito perdeu vigor. Tenho medo de, em breve, já não possuir  forças  para  continuar  a  lutar contra meus defeitos . Vinde logo em meu socorro!”
Às vezes o demônio consegue  persuadir  uma  pessoa  de  que  ela  pecou, embora se conserve inocente. Sobrevém-lhe então a tristeza, a sensação de abandono e  miséria  que  assalta  o  justo  quando  imagina ter ofendido a Deus. Isso lhe dilacera o coração, aflige-o sobremaneira.
Permitindo essa provação, deseja o Altíssimo que o  inocente sofra para fazer bem às almas dos pecadores.  Porque christianus alter Christus, o cristão é um outro  Cristo.
Em certo sentido, em cada um de nós deve haver “copiosa redenção” (cf . Sl 19, 7), isto é, a exemplo de Jesus precisamos estar dispostos a sofrer abundantemente pelos que não são bons e não amam a Deus, pelos tíbios, por aqueles que são chamados a uma sublime vocação mas não correspondem como deveriam, antes gostariam de obter do Criador um habeas corpus para se afundarem na vida pecaminosa.
Sejam as nossas, as vias de Deus
Não apartes de mim a tua face, para que não seja semelhante aos que descem à cova.
“Cova” aqui significa inferno. Se Deus afastar do homem sua face, este provavelmente cairá na “cova”. Porém, se o Senhor lhe dirigir o olhar, ele floresce, torna-se uma espécie de girassol que sempre procura fitar seu  Criador.
Faz-me sentir desde manhã a tua misericórdia, porque em Ti tenho esperado.
O justo, mormente nos períodos de consolação que  Nossa Senhora lhe alcança, desperta de manhã e tem impressão de que toda a natureza está glorificando a Deus  e para Este o conduz . Sente a presença dos anjos ao seu  redor, a alegria do dia que desponta, a feliz disposição  para fazer tudo quanto deve a serviço de Deus.
Tal acontece, não porque a pessoa é boa, mas por ter  confiado no Senhor. Ela rezou este Salmo, em espírito e  em verdade, entendeu e experimentou aquilo que recitava.
O Salmista, sentindo-se como um homem caindo na  cova, ou seja, no inferno, estava tão horrorizado com a  tentação que, em certas horas, não sabia se era ou não  amado  por  Deus. Num determinado momento pairou sobre ele a graça, e iniciou-se uma primavera para sua alma.
Faz-me conhecer o caminho em que hei de andar, porque a Ti elevei a minha alma.
Então, animado pelo dom celeste, ele no fundo suplica: “Ó, Senhor, quero conhecer as tuas vias, pois estas devem ser as minhas. Desejo apenas saber qual a tua vontade, a fim de que seja o objeto das minhas cogitações!”*  
(Continua no próximo post)

* Plinio Correa de Oliveira. Extraído de conferência.

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