Continuação dos Comentários ao Evangelho - XIII domingo do Tempo Comum - Ano C -2013 Lc 9, 51-62
Reação dos “filhos do trovão”
54“Vendo isso, os discípulos Tiago e João disseram:
‘Senhor, queres que mandemos descer fogo do céu para destruí-los?’”.
A pergunta de Tiago e João
revela, na acertada expressão de um autor francês, “um intemperante zelo”, mas
comprova o quanto eles tinham fé na onipotência de Jesus.
Certamente estavam bem
presentes na memória dos dois irmãos os episódios dos capitães de Acab sendo
devorados pelo fogo do céu por ordem do Profeta Elias, cada qual junto com seus
cinquenta soldados (cf. II Rs 1, 9-12); e o dos duzentos e cinquenta príncipes
da assembleia, membros do conselho e homens notáveis, sob o comando de Coré,
Datã e Abiron, recebendo igual castigo por terem se amotinado contra Moisés
(cf. Nm 16, 2.35).
Estando cientes do poder
recebido de Nosso Senhor, não surpreende o fato de os filhos de Zebedeu
desejarem imitar a atitude do Legislador e do Profeta, os quais eles tinham
visto, semanas antes, aparecer junto ao Mestre no Monte Tabor. Com efeito, o
“que há de estranho no fato de os ‘filhos do trovão’ quererem lançar raios?”,
pergunta-se Santo Ambrósio.6
Arrebatados por uma espécie de
“fervor de noviços”, consideravam um dever de justiça fazer cair fogo sobre
aquela cidade rebelde. Apontam nesse sentido os comentários de São Jerônimo,
São Beda e Tito Bostrense, sintetizados por Maldonado: se os “filhos do trovão”
desejaram se vingar, “não foi por sua honra, mas pela do próprio Cristo; e
nisso certamente não houve culpa, mas apenas ignorância do espírito cristão e
evangélico”.7
A repulsa e a ingratidão fazem parte da vida do
missionário
55 “Jesus, porém, voltou-Se e repreendeu-os”.
Tendo sido formados segundo os
costumes da Antiga Aliança, estavam os irmãos habituados à pena de talião e
julgavam que todo ato de rejeição ao bem devia ser castigado sem demora. Ora,
as perspectivas de Nosso Senhor eram outras: “Amai os vossos inimigos... Orai
pelos que vos injuriam... Sede misericordiosos, como também vosso Pai é
misericordioso” (Lc 6, 27-28.36), ensinara-lhes recentemente. Por isso os
repreendeu.
A proposta de Tiago e João
mostra quão longe estavam ainda os discípulos desse novo Mandamento.
Faltava-lhes conhecer e assumir uma das mais dolorosas provações do
missionário: a ingratidão, a repulsa e até a perseguição por parte daqueles a
quem se quis fazer o bem.
Como observa o Crisóstomo, os
Apóstolos “seriam os doutores do mundo e percorreriam as cidades e aldeias
pregando a doutrina evangélica, e haveria de lhes ocorrer que alguns não
recebessem a sagrada pregação, como se não permitissem que Jesus permanecesse
com eles. Ensinou-lhes, pois, que quando anunciassem a celestial doutrina,
deveriam estar cheios de paciência e mansidão, sem se mostrar hostis nem
irascíveis, nem vingativos contra seus perseguidores”.8
Bem assinala, por sua vez, São
Beda: “O Senhor repreendeu neles não o exemplo de um Profeta santo, mas a
ignorância de querer vingar-se que havia neles, homens ainda rudes, fazendo-os
ver que não desejavam a emenda por amor, mas a vingança por ódio”.9
Não devemos permanecer onde nosso apostolado
não é bem aceito
56“E partiram para outro povoado”.
Estas poucas palavras do
Evangelista contêm um importante ensinamento. Durante a viagem, como vimos,
estava Jesus formando os Seus discípulos nas lides do apostolado, e quis mostrar-lhes
com o episódio anteriormente narrado que o missionário não deve perturbar-se, e
menos ainda mostrar-se irritado, quando sua ação evangelizadora é recusada.
Isso seria sintoma de amor-próprio, ou de apego às próprias atividades.
Pelo contrário, se acharmos em
nosso caminho “aldeias de Samaria”, não queiramos castigá-la com “fogo do Céu”
como o fizeram Tiago e João, mas também não percamos tempo onde nossa atividade
apostólica é infrutífera.
Um pequeno tratado da vocação
Na segunda parte do Evangelho
de hoje, as Sagradas Escrituras nos apresentam os casos de três homens
desejosos de seguir Nosso Senhor Jesus Cristo, mas sem terem noção da
integridade de entrega a ser feita. Esses três episódios podem ter ocorrido em
lugares e ocasiões diferentes, como bem observa o padre Truyols, mas quiçá
foram reunidos pelo Evangelista devido à sua semelhança. Com efeito, acrescenta
esse exegeta, constituem eles, no seu conjunto, um pequeno tratado da vocação
divina, isto é, “das condições requeridas para seguir a Cristo”.10
Um oferecimento com segundas intenções
57“Enquanto estavam caminhando, alguém na estrada disse
a Jesus: ‘Eu Te seguirei para onde quer que fores’”.
No primeiro caso, alguém
manifesta a Nosso Senhor a disposição de segui-Lo a qualquer lugar e a todo
custo. São Mateus aduz um detalhe omitido por São Lucas: era um escriba (Mt 8,
19). À primeira vista, parece tratar-se de uma alma generosa, desejosa de
sempre estar com Jesus.
Fillion descreve esse
personagem como sendo “entusiasmado, embora superficial e muito confiado em si
mesmo”.11 Observa tratar-se de um homem que “fala a linguagem da emoção
passageira e irrefletida, que despreza os obstáculos enquanto estão longe e,
sem ter sido chamado, se oferece para enfrentá-los”.12
Penetrando mais a fundo a
psicologia deste escriba, São Cirilo mostra não estar ele movido pelo desejo de
ser discípulo, mas sim pela soberba: “Havia uma grande ignorância nessa pessoa
que se aproximou, e ela era excessivamente presunçosa. Certamente não desejava
ser de fato um seguidor de Cristo, como muitos outros judeus, mas queria, isto
sim, ostentar as dignidades apostólicas”.13
Teofilato, por sua vez, chama a
atenção para o seu espírito ganancioso: “Como via que o Senhor levava atrás de
si muita afluência, esperava lucrar algo com isso e reunir algum dinheiro, se O
seguisse”.14
Desapego e simplicidade no seguimento de Jesus
58a “Jesus lhe respondeu: ‘As raposas têm suas tocas e
os pássaros têm ninhos’...”.
O Divino Mestre não se
pronuncia sobre a proposta do escriba, nem o admite em Sua companhia.
Abstraindo do caso concreto, responde com uma metáfora que deixa sentenciada
para todo o sempre a radicalidade com a qual devem se entregar as almas
chamadas às atividades missionárias.
As raposas preparam tocas, e os
pássaros, ninhos, porque faz parte do instinto dos animais procurar um lugar
onde se abrigar. Mas um verdadeiro apóstolo precisa estar totalmente devotado à
missão de converter as almas, sem cuidar de suas próprias conveniências.
Ocupar-se-ão outros de preparar-lhe o “ninho”, ou a “toca”. A entrega de quem
deseja seguir a Cristo deve ser total, dando-se por inteiro, sem nada reservar
para si.
Mas, qual a razão de Jesus
escolher esses animais, e não outros, para ilustrar sua pregação?
Santo Ambrósio analisa os
instintos da raposa, ser astuto e enganoso, e mostra como ela gosta de se
ocultar em sua toca para poder surpreender as presas. É bem a imagem do herege,
pois este procura encobrir seus erros sob as aparências de boa doutrina, a fim
de desviar da verdade aqueles que a procuram.15
Quanto às aves, comenta São
Cirilo de Alexandria: “Ele não falou de pássaros físicos e visíveis, mas de
espíritos imundos e iníquos que com frequência caem sobre os corações dos
homens, arrebatam a semente celeste e a levam longe, a fim de que não produzam
fruto algum”.16
Nem nessas tocas, nem nesses
ninhos pode o Filho do homem fazer sua morada, pois Ele é a Verdade e o Bem.
Jesus jamais agirá como a raposa nem como as aves da metáfora. Pelo contrário,
Ele convida com clareza ao Reino dos Céus e expõe com integridade sua doutrina,
ainda que a radicalidade do seu chamado contunda quem não tem verdadeira
vocação.
Analisada nessa perspectiva, a
metáfora elaborada por Nosso Senhor adquire os traços de uma clara rejeição ao
pretensioso pedido do escriba, ao qual Ele parece dizer: “As raposas têm
esconderijos em seu coração: és um falaz. As aves do céu têm ninhos em seu coração:
és um soberbo. Sendo mentiroso e soberbo, não podes seguir-Me. Como pode a
falsidade seguir a Simplicidade?”.17
Pensamentos elevados à Jerusalém Celeste
58b “...‘mas o Filho do Homem não tem onde repousar a
cabeça’”.
A expressão “repousar a cabeça”
pode ser interpretada aqui como uma alusão ao instinto de sociabilidade, pois o
homem descansa ao encontrar alguém com quem possa se abrir e compartilhar suas
preocupações e receios. Assim, nesta passagem o Divino Mestre estaria alertando
a quem assume as vias do apostolado — ou começa a praticar com integridade as
exigências da Fé — para os riscos de, em determinado momento, se sentir só, sem
ter quem o auxilie e console. Até mesmo a esse gênero de entrega deve estar
disposto todo aquele que almeja ser verdadeiro missionário, a exemplo de Jesus.
Mas essas palavras do Messias
também podem ser explicadas no sentido de estarem seus pensamentos nesta terra
continuamente elevados para a Jerusalém Celeste. Ensina-nos, assim, que o
coração do missionário tem de estar posto por inteiro no plano sobrenatural,
evitando “apoiar a cabeça” no simbólico “travesseiro” dos assuntos terrenos.
Uma obrigação moral exigida pela Lei
59 “Jesus disse a outro: ‘Segue-Me’. Este respondeu:
‘Deixa-me primeiro ir enterrar meu pai’”.
Neste segundo episódio, é Jesus
quem toma a iniciativa. Ao pousar o olhar sobre um dos que O acompanham,
discerne nele o sinal da vocação lhe diz com suavidade toda divina: “Segue-Me”.
Isto é, “abandona tudo, deixa para trás o que tens e vem após Mim”.
Vê-se, pelo desenrolar da
narração, que as palavras de Jesus penetraram a fundo no espírito daquele
homem. Ora, seu pai havia falecido — ou, segundo alguns comentaristas, estava
para morrer — e, antes de começar sua vida de missionário, queria ele resolver
todos os problemas de família, a fim de poder mais livremente seguir Nosso
Senhor.
O pedido não podia ser mais
legítimo e razoável. Acaso não manda o Decálogo honrar pai e mãe? Além disto, o
sepultamento do progenitor falecido era uma obrigação imposta pela Lei judaica.
Acima do amor ao pai, deve estar o amor a Deus
60“Jesus respondeu: ‘Deixa que os mortos enterrem os
seus mortos; mas tu, vai anunciar o Reino de Deus’”.
Jesus, entretanto, rejeita o
pedido de seu discípulo, utilizando para isto uma expressão enigmática que não
pode ser entendida em sentido literal. Com efeito, pergunta-se Santo Ambrósio:
“Como podem, porém, os mortos enterrar os mortos se não se entender aqui duas
mortes: uma da natureza e outra do pecado?”.18
Das palavras do Divino Mestre,
Crisóstomo deduz que o pai havia falecido na infidelidade, isto é fora do amor
a Deus e da prática da Lei. Ademais, certamente “havia outros que podiam
cumprir essa obrigação, o pai não ficaria por isso sem sepultura”.19
Contudo, a resposta do Divino
Mestre àquele discípulo ultrapassa de longe a situação concreta e permanece
como uma valiosa lição para todos quantos foram, são e serão chamados a
segui-Lo ao longo da História. “Quando Nosso Senhor Jesus Cristo destina os
homens à pregação do Evangelho, não quer que se interponha desculpa alguma de
piedade carnal ou temporal”, afirma Santo Agostinho.20
Lembremo-nos, nesse sentido, do
ensinamento de Santo Ambrósio: “A piedade para com Deus deve estar acima do
amor aos pais, aos quais reverenciamos porque nos geraram. Mas Deus nos deu o
ser quando ainda não existíamos, enquanto nossos pais foram apenas os Seus
instrumentos para nossa entrada na vida”.21 Quando alguém ouve a voz de Jesus:
“Vem e segue-Me”, deve considerar como “mundo dos mortos” tudo quanto ficou
para trás e não mais se interessar pelos assuntos que antes lhe preocupavam. E
isto de uma forma radical, pois “quem deseja fazer-se discípulo do Senhor deve
recusar as obrigações humanas, inclusive quando pareçam razoáveis, se por causa
delas se protela, mesmo em ponto mínimo, a obediência devida a Deus”.22
Além do desapego total dos bens
temporais e de um coração elevado à Jerusalém Celeste, Jesus exige do apóstolo
a ruptura completa de todos os laços que o vinculavam ao mundo.
Não voltar o olhar para o que abandonamos
61“Um outro ainda Lhe disse: ‘Eu Te seguirei, Senhor,
mas deixa-me primeiro despedir-me dos meus familiares’. 62 Jesus, porém,
respondeu-lhe: ‘Quem põe a mão no arado e olha para trás, não está apto para o
Reino de Deus’”.
Nosso Senhor serve-Se, neste
terceiro episódio, de uma imagem extraordinariamente significativa naquela
época. Um sulco sinuoso na terra dificulta tanto a semeadura quanto a colheita.
Era preciso, portanto, aplicar muita atenção para traçar uma linha reta com o
arado. Por isso, o agricultor não podia ficar olhando para trás. Da mesma
maneira deve proceder quem lavra e semeia nesta terra pretendendo colher frutos
na eternidade: tem de estar com os olhos sempre postos no seu fim sobrenatural,
sem desviá-los por nenhum motivo. O missionário precisa renunciar completamente
aos laços que antes o prendiam ao pecado ou à tibieza e jamais olhar para trás,
a fim de que, segundo adverte São Cipriano de Cartago “não nos aconteça de
voltarmos ao demônio e ao mundo, aos quais renunciamos e dos quais nos
libertamos”.23 Pois, na expressão de São Nilo, “os repetidos olhares para
aquilo que deixamos nos fazem voltar ao costume abandonado”.24
Continua no próximo post.
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