CONCLUSÃO DOS COMENTÁRIOS AO III DOMINGO DA QUARESMA - ANO A - Jo 4, 5-15 - 2014
11
A mulher disse a Jesus: “Senhor, nem sequer tens balde e o poço é fundo. De
onde vais tirar a água viva? 12 Por acaso, és maior que nosso pai Jacó, que nos
deu o poço e que dele bebeu, como também seus filhos e seus animais?”
A
graça começa a trabalhar-lhe a alma com suavidade e, ao mesmo tempo, com muito
vigor. As primeiras palavras dela haviam sido um tanto desabridas: “Como é que
Tu, sendo judeu...”. A partir deste curto diálogo, passa a tratá-Lo de
“Senhor”, pois algo do mistério de Jesus ela já entreve, o que significa um
enorme passo para uma samaritana na consideração de um judeu.
Ela
não chega a entender bem a substância das afirmações feitas por Jesus, mas
decerto já estava atraída pelo todo do Divino Mestre, e por isso não as
contradiz, apenas externa sua perplexidade, disposta a aceitar uma explicação.
Por ora, sua atenção está de fato centrada na “água viva” desejada por ela, e
no fundo de seu subconsciente está se formando a hipótese de estar diante de um
homem grandioso, comparável ao “nosso pai Jacó”.
Os
samaritanos tinham a ufania de declarar ter sido sua terra habitada pelos
patriarcas (cf. Gn 12, 6; 33, 18; 35, 4; 37, 12; etc.). Pretendiam com isso
abrandar as abjeções que os judeus lhes tinham, oriundas da miscigenação de
raça e de religião. Daí a lembrança do poço de Jacó.
13
Respondeu Jesus: “Todo aquele que bebe desta água terá sede de novo. ‘ Mas quem
beber da água que Eu lhe darei, esse nunca mais terá sede. E a água que Eu lhe
der se tornará nele uma fonte de água que jorra para a vida eterna”.
Deus
criou o homem com sede de infinito. Nossa alma só repousa em Deus, pois Ele é
nosso fim último, e nada fora d’Ele nos satisfaz plenamente.
A
Sagrada Escritura nos diz: “A vista não se farta de ver, o ouvido nunca se
sacia de ouvir” (Ecl 1, 8). E este um fato realíssimo a se repetir em nós, e em
torno de nós, a todo momento: nenhuma criatura nos fornece a ilimitada
felicidade que buscamos. E ali, no próprio poço de Jacó, estava o símbolo das paixões
humanas, segundo comenta Santo Agostinho.3 Um prazer que não seja de Deus, por
mais que produza gozo, terminará por apenas causar tédio e decepção. Mas a
alma, tornando-se escrava dele, o procurará outras vezes, nas suas mais
variadas formas. A água do poço é simbólica de nossas inclinações, sempre nos
atrairão a retornar a elas.
Sem
desprezar em nada a memória de Jacó — até, pelo contrário, respeitando-a muito
— Jesus oferece à samaritana uma água extraordinariamente superior àquela do
patriarca. Mais ainda, Ele promete “uma fonte de água que jorra para a vida
eterna”.
15A
mulher disse a Jesus: “Senhor, dá-me dessa água, para que eu não tenha mais
sede e nem tenha de vir aqui para tirá-la”.
Com
a fé mais robustecida, ela crê no poder de Deus em criar uma água capaz de eliminar
definitivamente a sede e, em consequência, de dispensá-la do trabalho de
retirar daquele poço a água de todos os dias. De si, já seria uma maravilha
criar essa água, mas Jesus lhe fala de um prodigio maior e incomparável: o das
águas da graça. “O bem da graça é, para o indivíduo, melhor que o da natureza
de todo o universo”,4 afirma São Tomás de Aquino.
Santo
Agostinho5 glosa este versículo, mostrando que há tão só uma água capaz de
extinguir a sede por completo, por fazer brotar no nosso interior uma fonte
permanente, que jorrará até o feliz dia de nossa entrada para a eternidade. Se
pedíssemos a Jesus, tal qual a samaritana o fez: “Senhor, dá-me dessa água”,
Ele nos responderia: “Se alguém tiver sede, venha a Mim e beba. Quem crê em
Mim, como diz a Escritura: ‘Do seu interior manarão rios de água viva’. Dizia
isso, referindo-Se ao Espírito que haviam de receber os que cressem n’Ele” (Jo
7, 37-39).
No
entanto, num primeiro momento, ela ainda não alcança o verdadeiro sentido das
palavras de Nosso Senhor. A essa mulher se aplica o que diz São Paulo: “o homem
natural não aceita as coisas do Espírito de Deus” (I Cor 2, 14).
Apesar
disso, o Salvador não desiste. Pelo contrário, continuará a trabalhar a alma
dela com zelo divino. Quem O visse conversando com a samaritana, sentado à
beira do poço, jamais poderia imaginar não só o teor da conversa, como também o
amor manifestado por Ele em relação àquela pobre ovelha desgarrada.
Neste
ponto do diálogo terminaremos o comentário da Liturgia de hoje. Nos versículos
seguintes as maravilhas narradas são ainda maiores: Jesus lhe revela ser o
Messias (cf. Jo 4, 26), depois de mostrar-lhe que conhecia sua má vida
matrimonial (cf. Jo 4, 16-18). Transformada pela graça do Redentor, ela assume
a função de verdadeira apóstola junto a todos os seus conhecidos.
Esse
belíssimo episódio nos faz compreender melhor as PA lavras de São Paulo, que a
Liturgia também hoje seleciona para a segunda leitura (Rm 5, 1-2.5-8):
“Dificilmente alguém morrerá por um justo; por uma pessoa muito boa, talvez
alguém se anime a morrer. Pois bem, a prova de que Deus nos ama é que Cristo morreu
por nós, quando éramos ainda pecadores” (Rm 5,7-8).
CONCLUSÃO
A samaritana,
apesar de não ter vida virtuosa e de ser uma estrangeira, com todas as
implicações da Lei, possuía uma alma penetrada por comovedora simplicidade, verdadeiramente
cândida. Seu modo de ser é humilde e despretensioso. E cumpridora de suas
obrigações e conhecedora dos princípios e tradições de sua religião. Sua
conversa é elevada e sincera, como quando manifestou o quanto acreditava em
Jesus. Essas qualidades atraíram o amor do Redentor e O fizeram ir em busca da
ovelha perdida.
Muito
pelo contrário, no caso de Nicodemos, este é quem toma a iniciativa de ir em
busca do Mestre. Confiante na ciência farisaica, teve dificuldade maior em
aderir ao Senhor. Ademais, temia perder sua posição social. Assim mesmo, acabou
defendendo Jesus nos momentos mais difíceis, porque recebeu muitas graças para
tal, e a elas correspondeu.
Na
ciência ou na ignorância, na virtude ou no pecado, o fundamental é buscarmos a
água da vida, nas fontes da Santa Igreja. E indispensável não nos apegarmos a
certos conhecimentos que possamos ter adquirido e, desta forma, fugirmos do orgulho
da ciência. Ou então assumirmos a simplicidade de espírito e humildade de
coração da samaritana, ainda que, infelizmente, estejamos dentro de uma via
pecaminosa como a dela.
Em
síntese, roguemos, de modo especial neste domingo, à Santíssima Virgem para que
nos obtenha de seu Divino Filho a água da vida, fazendo jorrar em nossos
corações o líquido precioso da graça que nos conduz à morada eterna.
1)
SANTO AGOSTINHO. In bannis Evangelium. Tractatus XV, n.6. In: Obras. 2.ed.
Madrid: BAC, 1968, v.XIII, p.409.
2)
Idem, n.10, p.413.
3)
Cf. SANTO AGOSTINHO. De diversis quæstionibus octoginta tribus. Q.64, n.2. In:
Obras. Madrid: BAC, 1995, v.XL, p.187-188.
4)
SAO TOMAS DE AQUINO. Suma Teológica. I-II, q.113, a.9, ad 2.
5)
Cf. SANTO AGOSTINHO, De diversis quæstionibus octoginta tribus, op. cit., n.4,
p.190.
Nenhum comentário:
Postar um comentário