Continuação dos comentários ao Evangelho — 3º Domingo Da Páscoa - Ano B - Lc 24, 35-48
O Sinédrio considera de frente o milagre
Paralelamente ao que
se tratava com tensão, suspense e certo medo no Cenáculo, os príncipes dos
sacerdotes e o Sinédrio em geral discorriam sobre a narração feita pelos
soldados, a qual tornava patente que Jesus havia ressuscitado. Era uma hipótese
árdua igualmente para eles, mas sabiam considerá-la de frente, medindo bem
todos os prejuízos que de uma realidade dessas poderiam
decorrer.
Na cidade, celebrado
já o sábado, os trabalhos haviam sido retomados com toda normalidade, no
transcurso do dia. Só no Cenáculo e no Sinédrio dominava a febricitação,
àquelas horas de após-ceia. O tema era o mesmo, as testemunhas, porém, bem
diferentes, e muito mais os destinatários dos relatos. O dogma da Ressurreição
seria fundamentalíssimo para o futuro da Religião e era indispensável haver
vários que testemunhassem com solidez de declaração o terem visto Jesus vivo,
nos dias logo posteriores à Sua morte. Apesar de Seus insistentes avisos e
profecias, se não houvesse testemunhas visuais, difícil seria crer em tão
grande milagre.
É bem a essa altura
que, estando trancadas as portas e janelas, entrou Jesus no Cenáculo,
iniciando-se o trecho evangélico da Liturgia de hoje.
II – Aparição do Senhor no Cenáculo
As sete palavras
proferidas por Nosso Senhor no Calvário têm, com muita razão, merecido
belíssimos comentários ao longo da História. Mas a primeira palavra por Ele
dita aos Apóstolos, ao penetrar no Cenáculo, não merece menos atenção.
Jesus deseja aos Apóstolos a verdadeira paz
36 “Enquanto falavam nisto, apresentou-Se Jesus no meio
deles e disse-lhes: 37 ‘A paz seja convosco!’”.
A paz desejada por
Nosso Senhor é a única verdadeira entre tantas outras distorcidas e falsas. Quem
a deseja para os Apóstolos é o próprio Príncipe da Paz: trata-se da paz
messiânica, riquíssima de toda espécie de bens.
Cifra-se ela na
tranquilidade nascida de uma vida ordenada, como nos ensina São Tomás, ao
afirmar ser impossível sua existência fora do estado de graça: “Ninguém é
privado da graça santificante a não ser em razão do pecado, razão pela qual o
homem se afasta do verdadeiro fim e estabelece o fim em algo não verdadeiro.
Assim sendo, seu apetite não adere principalmente ao verdadeiro bem final, mas
a um bem aparente. Por esta razão, sem a graça santificante, não pode haver
verdadeira paz, mas somente uma paz aparente”.1
Quando alguém comete
um pecado, o corpo, com suas paixões, rebela-se contra a alma, à qual deveria
estar submisso. Por sua vez, a alma, que deveria estar na obediência a Deus,
fazendo Sua vontade, revolta-se contra Ele. Assim, fica destruída a ordem e, em
consequência, a própria paz. Por isso diz-nos o Espírito Santo: “Não há paz
para os ímpios” (Is 48, 22).
A única e verdadeira
paz foi, portanto, a que Jesus desejou aos discípulos, ao transpor as paredes
do Cenáculo, devido à subtileza de Seu corpo glorioso. Ali penetrou Ele da
mesma forma como um raio de Sol atravessa o cristal: sem sofrer a menor
alteração. Quão grande, divina e paternal doçura deveria caracterizar Seu
timbre de voz nessa ocasião!
Os discípulos estavam absorvidos pelo temor
“Mas eles, turbados e espantados, julgavam ver algum
espírito”.
A um medo, sucedia
outro! Os discípulos enclausuram-se, tomados pelo pânico de que o Sinédrio
pudesse acusá-los de haver roubado o corpo do Senhor, e, de forma súbita, veem
um “fantasma” que se introduz no hermético recinto através das paredes ou
portas e janelas fechadas, sem sequer se anunciar. Por mais essa reação de
todos, torna-se demonstrado o quanto lhes era difícil crer na Ressurreição do
Senhor, apesar de ser a quarta vez que Ele aparecia.
“O Evangelista indica
que o temor influiu nos discípulos para não reconhecerem Jesus, mas julgar que
estavam vendo algum espírito. O medo costuma prejudicar o conhecimento claro, e
faz com que a pessoa imagine estar vendo fantasmas ou monstros estranhos. [...]
“O motivo para os
discípulos suspeitarem que se tratava de algum espírito é certamente o fato de
Ele ter entrado — como diz São João — com as portas fechadas, coisa que só um
espírito poderia fazer”.2 Apesar de havê-los saudado com insuperável afeto e
feito ouvir o inconfundível timbre de voz do qual tantas saudades tinham, o
temor os absorvia. Outro fato determinaria tratar-se do próprio Salvador, e não
de um fantasma: Jesus penetrara em seus corações e discernira seus pensamentos,
prova patente de ser Ele o próprio Deus,3 pois isto não é possível nem a um
espírito.
As chagas, símbolo do poder do Homem-Deus contra o demônio
38 “Jesus disse-lhes: ‘Por que estais turbados, e por que
se levantam dúvidas nos vossos corações? 39 Olhai para as Minhas mãos e os Meus
pés, porque sou Eu mesmo; apalpai e vede, porque um espírito não tem carne, nem
ossos, como vós vedes que Eu tenho’. 40 Dito isto, mostrou-lhes as mãos e os
pés”.
Segundo nossos
critérios estritamente humanos, parecer-nos-ia mais lógico, após a
Ressurreição, Jesus retomar Sua integridade física, fazendo desaparecer os
sinais dos tormentos de Sua Paixão. Por outro lado, considerando os sentimentos
de nossa natureza, o exibir as chagas aos discípulos poderia causar-lhes um
maior sofrimento, por relembrar-lhes os dramas daqueles terríveis dias de
provação. Mas a boa conduta teológica toma como base o princípio infalível: se
Deus fez, era o melhor; por isso, resta-nos perguntar quais os motivos de tal
conduta.
Antes de mais nada,
para Sua própria glória, como também se dará com os santos mártires ao
retomarem seus respectivos corpos, no dia do Juízo. As cicatrizes oriundas dos
tormentos por eles sofridos em defesa da Fé reluzirão por toda a eternidade.
“Com efeito, as cicatrizes das feridas recebidas por causa digna e justa são um
eloquente e glorioso testemunho dos méritos e valor de quem as ostenta”.4 Jesus
Cristo tinha todo poder para fazer desaparecer Suas chagas cicatrizadas, mas
desejou conservá-las para levar em Si próprio um magnífico símbolo de Seu poder
contra o demônio.
Obstáculo à divina cólera
Ademais, quis
beneficiar-nos junto ao Pai. A conservação dessas cicatrizes é-nos de
fundamental importância, pois constituem elas um poderoso obstáculo a que a
santa e divina cólera desabe sobre nós, devido às nossas culpas.
“Com esse detalhe,
Ele os robustece na Fé e estimula à devoção, pois, em vez de eliminar as
feridas que por nós recebeu, preferiu levá-las para o Céu e apresentá-las a
Deus Pai como resgate de nossa liberdade. Por isso, o Pai deu-Lhe um trono à
Sua direita, abraçando os troféus de nossa salvação”.5
Na Terra, servia-Se
Ele da palavra a fim de pedir ao Pai perdão para os carrascos: “Perdoai-lhes
porque não sabem o que fazem” (Lc 23, 34). No Céu, não necessita abrir os
lábios para nos obter o beneplácito: suficiente é mostrar-Lhe Suas cicatrizes.
Continua no próximo post
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