Conclusão dos comentários ao Evangelho — 3º Domingo Da Páscoa - Ano B - Lc 24, 35-48
Prova de Seu ilimitado amor de Salvador
Os Santos Padres
afirmam ter Nosso Senhor querido conservar as marcas dos tormentos sofridos por
Ele, com vistas ao Juízo Final, para a confusão dos maus e alegria dos bons.
Serão elas um símbolo de Sua infinita misericórdia, prova de Seu ilimitado amor
de Salvador, desprezado, renegado e ultrajado por alguns, e fonte inesgotável
de bênçãos e graças para outros, objeto de ação de graças e adoração por toda a
eternidade.
Confusão para uns,
júbilo para outros. Naquele dia, dies iræ, todas as criaturas humanas verão as
chagas dEle; portanto, também eu poderei adorá-las e nelas me alegrar, se tiver
andado pelos caminhos da virtude, da graça e da santidade. Através desse meio,
Jesus fortificava a Fé dos Apóstolos, eliminando qualquer pretexto para a
incredulidade, ou até mesmo para uma simples dúvida, tornando-os verdadeiras
testemunhas, pelos séculos afora. Manifesta, ademais, seu amor por eles e, em
consequência, também por nós, proporcionando-nos um poderoso estímulo para
retribuirmos Seu incomensurável afeto, pela disposição de a Ele nos entregarmos
inteiramente.
Ali, naquelas santas
chagas, encontramos uma excelente âncora para a nossa confiança. Elas como que
nos dizem: “Não temais, Eu venci o mundo!” (Jo 16, 33). Vivamos o conselho dado
por São Paulo: “Corramos com perseverança ao combate proposto, com o olhar fixo
no autor e consumador de nossa Fé, Jesus. Em vez de gozo que Se lhe oferecera,
Ele suportou a Cruz e está sentado à direita do trono de Deus” (Hb 12, 1-2).
Incutem-lhes forças para aceitar os suplícios
Não podemos descartar
a hipótese de que Jesus quis fazer os Apóstolos apalparem Suas santas chagas
para facilitar-lhes a paciência que deveriam praticar, face às imensas dificuldades
que sobre eles adviriam, na difusão do Evangelho, de parte dos tiranos, gentios
e dos seus próprios conacionais. Os sagrados estigmas, ora glorificados,
incutiam-lhes forças para aceitar com resignação, fortaleza e ânimo todos os
suplícios a eles reservados.
Dessa forma, também
nós, na adoração a essas chagas, somos estimulados a, com calma, serenidade e
paz, suportar as adversidades tão comuns à nossa passagem por este vale de
lágrimas. Quando algo desagradável, doloroso ou dramático vier atravessar nossa
caminhada, adoremos as marcas dos tormentos aceitos pelo Salvador em nosso
benefício, e saibamos, em algo, retribuir tão incomensurável misericórdia. E,
no Céu, teremos inegável alegria em considerar as chagas que nos obtiveram a
salvação eterna: “Vosso coração se alegrará e ninguém tirará vossa alegria” (Jo
16, 22).
Os Apóstolos as viram e apalparam
Teriam os Apóstolos
tocado as Chagas de Jesus? Sim, tal qual fez São Tomé. Oh felix culpa! Autores
de peso são de parecer que os Apóstolos contaram-lhe a graça de terem posto o
dedo na chaga de Jesus, e daí seu famoso dito (Jo 20, 25).
“Não só os convidara
a ver e apalpar, mas mostrou-lhes Seus pés e mãos. Não parece, pois, crível que
eles deixassem de tocá-Lo, curiosos como estavam de conhecê-Lo. Além disso, se
não O tivessem tocado, seria pelo fato de acreditarem, sem necessidade dessa
prova; consta, porém que não creram somente por vê-Lo, como se diz em
seguida”.6
Essa reação dos
Apóstolos pareceria, à primeira vista, ocasionada por pura incredulidade, mas
bem poderia ser o fruto de tal inebriamento que mais se julgavam em estado de
sonho do que de realidade. Estavam penetrados de tão grande júbilo por vê-Lo
ressuscitado, que não podiam crer no que os próprios olhos lhes mostravam.
“O Evangelista
escreve isso como sendo uma atenuante para a falta dos discípulos em não
acreditar, insinuando que, se eles não creram, foi mais pelo desejo da verdade
do que por obstinação contra a verdade. Às vezes nos acontece de não acreditar
naquilo que mais desejamos, como sucedeu a Jacó, quando lhe contaram que seu
filho José estava vivo; e com São Pedro, ao ser libertado do cárcere contra
todas as suas expectativas: julgava ser um sonho, e não realidade, o que se
passava com ele. [...]
“Tomando-se ao pé da
letra o que aqui está dito (que eles não acreditavam), não se deve estender
essa descrença a todos quantos se encontravam no Cenáculo, pois pelo menos
aqueles que disseram ter visto o Senhor — como São Pedro e talvez algum outro —
certamente criam”.7
Jesus come para fortalecer-lhes a Fé
41 “Mas, estando eles, por causa da alegria, ainda sem
querer acreditar e estupefatos, disse-lhes: 42 ‘Tendes alguma coisa que se
coma?’ Eles apresentaram-Lhe uma posta de peixe assado. 43 Tendo-o tomado,
comeu-o à vista deles”.
Uma prova evidente de
estar Jesus entre eles, em corpo e alma, não sendo, portanto, um fantasma, era
o fato de Ele comer diante de todos. Esta é uma explicação unânime entre os
comentaristas; porém, parece ser também que Jesus desejava manifestar de modo
especial Sua estima por eles, aceitando algum alimento que Lhe pudessem
oferecer.
Sendo glorioso Seu
Sagrado Corpo, não tinha Ele nenhuma necessidade de alimentar-Se; entretanto,
por pura caridade e divina didática, deseja auxiliá-los, fortalecendo-lhes a
virtude da Fé ao comer “à vista deles”. É o que a esse respeito comenta São
Cirilo de Alexandria: “Para fortalecer mais ainda sua fé na Ressurreição,
pediu-lhes algo para comer. Tratava-se de um pedaço de peixe assado, que Jesus
tomou e comeu na presença deles. Não fez isso senão para mostrar com clareza
que era Ele mesmo, ressuscitado, Ele que — como antes e durante todo o tempo de
Sua Encarnação — comia e bebia com eles”.8
Abriu-lhes o entendimento e o coração
44 “Depois disse-lhes: ‘Isto é o que Eu vos dizia quando
ainda estava convosco; que era necessário que se cumprisse tudo
o que de Mim estava escrito na Lei de Moisés, nos
Profetas e nos Salmos’”.
É interessante notar
a diferença apontada por Jesus — “quando ainda estava convosco” — entre Seu
corpo padecente e, agora, glorioso. No primeiro caso, segundo Ele mesmo afirma,
encontrava-Se em meio aos Apóstolos porque as Suas condições físicas possuíam
as mesmas características que as dos outros. Após a Ressurreição, porém, já não
mais Se acha entre eles, por não estar em carne mortal.
A Lei de Moisés, os
Profetas e os Salmos correspondem à divisão das Sagradas Escrituras, conforme o
costume hebraico: o Pentateuco, os Profetas e os livros poéticos; entre estes
últimos, os Salmos.
45 “Então abriu-lhes o entendimento para compreenderem as
Escrituras”.
Face aos
acontecimentos tão grandiosos verificados naqueles últimos dias, as revelações
feitas anteriormente pelo Divino Mestre retornavam à memória dos Apóstolos com
mais colorido e contornos mais definidos. “Quando seus pensamentos se amainaram
pelo que Jesus dissera — pois O haviam tocado e Ele tinha comido —, o Senhor
abriu-lhes o entendimento para compreenderem ter sido necessário que Ele sofresse
cravado na Cruz. Move, portanto, Seus discípulos a recordarem o que lhes havia
dito, isto é, que já lhes tinha anunciado Sua Paixão na Cruz, da qual
antecipadamente falaram os profetas. Abre-lhes, ademais, os olhos da mente,
para que compreendam as antigas profecias”.9
Precisaram eles de um
especial auxílio da graça, para entenderem as revelações. “Sem Mim, nada podeis
fazer” (Jo 15, 5), afirmara Nosso Senhor. É necessário que o próprio Cristo
Jesus nos ajude a interpretar as Sagradas Escrituras: “...o qual ensine como a
realidade se ajusta à profecia; mais ainda, nem isto nos basta, é preciso que
Ele nos abra os olhos da mente para podermos vê-Lo. É este o sentido próprio da
frase grega: ‘Abriu-lhes então as mentes, para que pudessem entender as
Escrituras’. Como observa muito bem São Beda, ‘apresentou Seu corpo para ser
visto com os olhos e apalpado com as mãos pelos discípulos. Isto não basta:
recordou-lhes as Escrituras. Ainda não é suficiente: abriu-lhes as mentes para
que entendam o que leem’”.10
46 “E disse-lhes: ‘Assim está escrito que o
Cristo devia padecer e ressuscitar dos mortos ao terceiro dia’ ...”.
São inúmeras as
profecias a esse respeito, e certamente eram muito conhecidas pelos Apóstolos.
Sobre essa matéria, é riquíssimo o caudal de comentários surgidos da pluma dos
Doutores e Padres da Igreja.
III – Jesus continua operando por meio de seus ministros
47 “...‘e que em Seu nome havia de ser pregado o
arrependimento e a remissão dos pecados a todas as nações, começando por
Jerusalém. 48 Vós sois as testemunhas dessas coisas’”.
Encerra-se o
Evangelho deste III Domingo da Páscoa com o esclarecimento formal e categórico
da parte de Jesus aos Apóstolos, a respeito da missão que lhes outorgava.
Aproveita essa ocasião para conversar sobre o mais importante tema para eles e,
portanto, para a Santa Igreja nascente. Tratava-se de assumirem a mesma missão
de Nosso Senhor Jesus Cristo, pois Este permaneceria no mundo por meio deles.
Nada deveria ser
olvidado: nem a Paixão com seus méritos, nem a própria vida do Divino Mestre,
com Seus ensinamentos. Concretiza-se, nessa ocasião, uma identidade de missão
entre Jesus e os Apóstolos. Aliás, na oração dirigida ao Pai, na Última Ceia,
havia já Ele revelado essa aproximação: “Eu lhes transmiti as palavras que Me
confiaste e eles as receberam e reconheceram verdadeiramente que saí de Ti, e
creram que Me enviaste. Dei-lhes a Tua palavra, mas o mundo os odeia, porque
eles não são do mundo, como também Eu não sou do mundo. Como Tu me enviaste ao
mundo, também Eu os enviei ao mundo” (Jo 17, 8.14.18).
Anteriormente,
chegara mesmo a afirmar: “Quem vos ouve, a Mim ouve, quem vos rejeita, a Mim
rejeita, e quem Me rejeita, rejeita Aquele que Me enviou” (Lc 10, 16).
Por isso São Paulo
diria mais tarde, em tom de plena certeza: “O apóstolo é ministro de Cristo” (I
Cor 4, 1); e “Deus mesmo é que fala por seus lábios” (II Cor 5, 20). Os
discípulos deverão pregar e implantar a Igreja em todas as partes, com a mesma
autoridade divina com que Cristo realizou Sua missão no mundo, tal como nos
relata São Mateus: “Tudo o que ligardes sobre a Terra será ligado no Céu; e
tudo o que desligardes sobre a Terra, será desligado no Céu” (18, 18). E São
Marcos: “Ide por todo o mundo, e pregai o Evangelho a toda criatura” (16, 15).
Cristo os constituiu
sacerdotes da Igreja, para salvação e santificação das almas, fazendo-os
herdeiros e participantes de Seu sumo e eterno sacerdócio. Esta missão continua
ainda nos dias atuais e deverá perdurar até o fim dos tempos, através do
ministério sacerdotal. Tal como Jesus, o presbítero dá “glória a Deus no mais
alto dos Céus, e paz na Terra aos homens objeto da boa vontade de Deus” (Lc 2,
14). É ele alter Christus: “Como o Pai Me enviou, assim Eu vos envio” (Jo 20,
21). Assim, a obra universal de redenção e de transformação do mundo trazida
por Nosso Senhor Jesus Cristo, com toda a sua divina eficácia, Ele continua a
operá-la, e continuará sempre, por meio de seus ministros.11
1 Suma Teológica II-II, q. 29, a. 3 ad 1.
2 MALDONADO, SJ, Pe. Juan de. Comentarios a los
cuatro Evangelios – II Evangelios de San Marcos y San Lucas. Madrid:
BAC, 1951, p. 817.
3 Cf. idem, ibidem.
4 PETRARCHA,
Franciscus. De remediis utriusque fortunæ. l. 2, 77.
5 AMBROSIUS
MEDIOLANENSIS, Sanctus. Expositio Evangelii Secundum Lucam, l. 10 (PL
15:1.846).
6 MALDONADO, SJ, Op. cit., p. 820.
7 Idem, ibidem.
8 CIRILLUS
ALEXANDRINUS, Sanctus. Explanatio in Lucæ Evangelium, 24, 38 (PG 72, 948).
9 Idem, in Lc. 24, 45
(PG 72, 949).
10 MALDONADO, SJ, Op. cit., p. 826827.
11 Cf. PIO XI. Encíclica Ad
catholici sacerdotii, 20/12/1935, n.12.
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