COMENTÁRIOS AO EVANGELHO – COMEMORAÇÃO DE TODOS OS FIÉIS DEFUNTOS – 2 DE
NOVEMBRO
Purgatório! Como evitá-lo?
A
Comemoração dos Fiéis Defuntos é uma ocasião feliz que a Igreja nos proporciona
para aliviarmos os que padecem no Purgatório. Mas ela também traz consigo um
ensinamento para nosso proveito espiritual: temos uma responsabilidade e, se
não agirmos como devemos, poderemos escutar esta terrível sentença do Divino
Juiz: “Não estás preparado!”.
I - APÓS A MORTE, UMA DÍVIDA PENDENTE
A Santa Igreja, em sua
sabedoria e inerrância divinas, inseriu no calendário litúrgico a comemoração
de Todos os Fiéis Defuntos no dia seguinte à Solenidade de Todos os Santos — no
Brasil adiada para o domingo seguinte por motivos pastorais —, com o intuito de
unir os três estados da Igreja, Corpo Místico de Nosso Senhor Jesus Cristo, do
qual Ele é a Cabeça. Ontem, a Igreja militante — constituída pelos que na
Terra, em estado de prova, combatem o bom combate para receber depois o prêmio
da glória (cf. II Tim 4, 7-8) — festejava a Igreja triunfante, louvando e glorificando
os Santos que já se encontram na eterna bem-aventurança. Hoje volta ela seu
olhar para os irmãos que, sendo também justos, ainda estão no Purgatório — a
Igreja padecente —, cumprindo as penas temporais devidas por suas faltas.
A tripla dimensão do pecado
Deus todo-poderoso
nada pode criar que não seja para Si mesmo. Ele nos deu o ser a fim de
praticarmos a virtude para louvá-Lo, reverenciá-Lo e servi-Lo acima de tudo, e
não é outra a nossa obrigação, uma vez que nossos pais não criaram nossa alma
imortal, mas sim Deus, de quem na verdade nascemos.
Ora, quando pecamos,
fazemos mau uso das criaturas, dando as costas a Deus e ofendendo-O. O
Salvador, porém, em sua infinita bondade, nos deixou o Sacramento do Batismo
para apagar a culpa original e de todos os pecados cometidos até o momento de
recebê-lo, sejá tivermos o uso da razão, bem como o da Penitência, para
absolver as faltas em que incorremos depois do Batismo.1 E ao sermos perdoados pelo
próprio Nosso Senhor Jesus Cristo, através dos lábios do sacerdote, evitamos a
condenação ao inferno. No entanto, além da injúria feita a Deus, o pecado atenta
também contra outras duas ordens — a consciência e o universo — e, em
consequência, é lógico sermos por elas humilhados e punidos.2
O julgamento da consciência
Todos nós temos a Lei
de Deus gravada na mente e no coração, como critério para discernir quão
insensato é abraçar a via do pecado. A consciência nos acusa quando procedemos mal,
e mostra o caminho verdadeiro. Por tal motivo, se alguém, de fato, comete um
pecado, não lhe cabe a dúvida; antes, está certo de sua queda porque agiu
contra a própria consciência. O pecado vulnera a ordem perfeita da criação Deus
criou o universo numa ordenação perfeita: cada astro segue sua trajetória com exatidão;
o Sol não se choca com a Terra, nem a Lua sai de sua órbita. A vegetação também
tem suas leis, que a fazem procurar sempre o Sol e a água, e os animais são
dotados de instintos regrados. O homem, contudo, tem a possibilidade de andar em
ordem ou em desordem. Ao caminhar na linha da virtude, ele adquire méritos — o
que não acontece com os seres inferiores, como os animais ou as plantas —, mas
se, pelo contrário, envereda pelas vias do mal, ofende a ordem do universo,
como ensina o Magistério: “Todo pecado, efetivamente acarreta uma perturbação
da ordem universal, por Deus estabelecida com indizível sabedoria e caridade
infinita, e uma destruição de bens imensos, quer se considere o pecador como
tal, quer a comunidade humana”.
Por causa disso,
quando alguém comete uma falta grave, a ordem do universo, abalada, quereria
voltar-se contra o transgressor e esmagá-lo, desencadeando todos os seus
elementos. Dentre estas possíveis manifestações da natureza contra o pecador,
podemos imaginar, por exemplo, a terra se abrindo para engoli-lo ou o fogo
caindo do céu para devorá-lo, a ponto de encontrarmos na própria Escritura esta
afirmação: “A criatura que Vos é submissa, a Vós, seu Criador, aumenta sua
força para castigar os maus, e os modera para o bem dos que puseram em Vós sua
fé” (Sb 16, 24). Deus, entretanto, contém a natureza vulnerada para não
aniquilar o culpado, à espera de que este faça penitência e venha a alcançar a
salvação.
Depois da Confissão, uma dívida pendente
Não obstante, devemos
nos lembrar de que se o Batismo perdoa a dupla pena à qual está sujeito o
pecador a eterna, em consequência da rejeição de Deus, e a temporal, devido à
adesão desordenada às criaturas , a Confissão, ao absolver da primeira, nem
sempre livra totalmente da segunda, pois a remissão desta depende da
intensidade e da perfeição do arrependimento de cada alma.4 Assim, na maior
parte dos casos, permanece pendente uma dívida que exige reparação, quer na
Terra, por meio da penitência, quer na outra vida, submetendo-se a alma aos
rigores do Purgatório.
No que consiste,
então, essa dívida, e como poderá a alma pagá-la? Imaginemos alguém que,
andando pela rua num dia de chuva, se vê de repente coberto de lama da cabeça
aos pés pela passagem de um veículo em alta velocidade. Por mais que essa pessoa
lave o rosto, sabe que, além disso, precisa limpar a roupa, sobretudo se está a
caminho de uma festa de casamento, onde jamais poderia aparecer manchada de
barro.
Da mesma forma, no momento
em que a alma se separa do corpo e comparece ao juízo particular, recebe um
especial dom para lhe iluminar a memória e a consciência, recordando-lhe todos
os detalhes de sua vida moral e espiritual.5 Percebe ela, então, como na
Confissão lhe foram perdoadas as faltas contra Deus, bem como a pena eterna
delas decorrente: seu rosto está limpo. Mas sua consciência grita, pois
sente-se suja e necessitada de “trocar de roupa”, isto é, de pagar a pena
temporal. Ademais, pode ela ter certa mentalidade pouco conforme à boa ordem, à
sabedoria, sobretudo nos dias atuais, em nosso mundo dominado pelo mecanicismo
e pela técnica. Também pode haver ideias, caprichos ou manias que a afastam do
equilíbrio perfeito da santidade e são contrários, enquanto regra de vida, aos
princípios da Fé, com os quais ela não pode estar diante de Deus e contemplá-Lo
face a face, porque estes lhe impediriam de entendê-Lo, de amá-Lo e de
relacionar-se com Ele.
A razão da existência do Purgatório
Como obter o perdão
da pena temporal e adequar os critérios, a fim de se estar pronto para ver a
Deus? Na vida terrena podemos alcançar isto mediante a aquisição dos méritos
que nos advêm das boas obras — penitências, orações, atos de misericórdia, etc.
— ou pelas indulgências que a Igreja nos concede, pois, “usando de seu poder de
administradora da Redenção de Cristo Senhor, [...] por sua autoridade abre ao
fiel convenientemente disposto o tesouro das satisfações de Cristo e dos
Santos”.6
No caso de terem sido
desdenhados estes meios, torna-se necessária a existência do Purgatório para,
post mortem, “purificar [a alma] das sequelas do pecado”7 e obter a remissão da
pena, como diz São Tomás,8 pagando durante um período a dívida imposta pela
ofensa à consciência e à ordem do universo. “E portanto necessário” — continua o
ensinamento da Igreja — “para o que se chama plena remissão e reparação dos
pecados não só que, graças a uma sincera conversão, se restabeleça a amizade
com Deus e se expie a ofensa feita à sua sabedoria e bondade, mas também que
todos os bens, ou pessoais ou comuns à sociedade ou relativos à própria ordem
universal, diminuídos ou destruídos pelo pecado, sejam plenamente
restaurados”.9
O reformatório de nosso egoísmo
Desejando, pois, que
entremos no convívio com Ele sem mancha alguma, puros e perfeitos — porque lá
“não entrará nada de profano nem ninguém que pratique abominações e mentiras”
(Ap 21, 27) —, Deus criou o Purgatório, à maneira de reformatório do nosso
egoísmo, onde este é queimado no fogo e somos reeducados na verdadeira visualização
de todas as coisas e no amor à virtude. Concluído este período, nossa alma está
santificada e, por isso, pode-se afirmar que todos os que estão no Céu são
santos.
Esta também é a razão
pela qual quem já houver alcançado a santidade aqui na Terra não passe pelo
Purgatório ou, em certos casos, apenas muito rapidamente para fazer, por
exemplo, uma genuflexão, como se conta ter acontecido a Santa Teresa de Avila.
Ou então como São Severino, Arcebispo de Colônia, que, apesar de haver
consumido seus anos em fecundas obras de apostolado pela expansão do Reino de
Deus, foi obrigado a permanecer seis meses no Purgatório a fim de expiar seu
pouco recolhimento na recitação do Breviário.10
Esperança no meio de grandes tormentos
As almas do Purgatório
sofrem terrivelmente, mas com uma grande vantagem sobre nós: a esperança segura
do Céu. E esta uma virtude que causa alegria e consolação, porque nos promete
uma posse futura. Todavia, nossa esperança nesta vida é duvidosa e incerta,
porque estando aqui de passagem podemos em qualquer ocasião vacilar e cometer
uma falta grave, arriscando perder a vida eterna se a morte nos colher logo
depois. No Purgatório, pelo contrário, essa esperança já é absoluta, pois traz
consigo a certeza de ter atingido o termo, isto é, de ter conquistado a
salvação.11
De resto, grandes são
os tormentos desse lugar que, sem serem iguais aos do inferno — pois os
demônios não podem torturar as almas benditas’2 —, entretanto, são produzidos
pelo mesmo fogo.13 Para termos uma pálida ideia de quão intenso é este calor,
imaginemos uma enorme fogueira e, ao lado, sua representação numa pintura. Se
tocarmos no quadro, este não nos queima, enquanto bastará aproximar o dedo da
fogueira verdadeira para, aí sim, experimentarmos uma insuportável dor. Pois
bem, a diferença existente entre a imagem representada no quadro e o fogo real
é a que há entre o fogo deste mundo e o do Purgatório. No dizer de Santo
Agostinho: “aquele fogo será mais violento do que qualquer coisa que possa
padecer o homem nesta vida”;14 e São Tomás completa: “a menor pena do Purgatório
excederá a maior pena desta vida”.’5
O Venerável
Estanislau Ghoscoca, dominicano polonês, estava certo dia rezando, quando lhe
apareceu uma alma do Purgatório envolta em chamas. Ele perguntou-lhe, então, se
aquele fogo era mais ativo e penetrante que o terrestre, e a alma, gemendo,
exclamou: “Em comparação com o fogo do Purgatório, o da Terra parece uma rajada
de ar leve e refrescante”. Como Estanislau, cheio de coragem, lhe pedisse uma
prova, ela respondeu: “É impossível a um mortal suportar tais tormentos;
contudo, se quereis uma experiência, estendei a mão”. Ele assim o fez e o defunto
deixou cair nela uma gotinha de suor escaldante. No mesmo instante, dando um
agudo grito, o religioso caiu desmaiado no chão, num estado semelhante à morte.
Tendo sido reanimado por seus confrades, que acorreram para ajudá-lo,
contou-lhes o que acontecera, recomendando a publicação do fato a fim de precaver
as pessoas contra a terrível expiação do Purgatório. Por fim, após um ano, ao
longo do qual sentiu continuamente aquela dor na mão direita, frei Estanislau faleceu,
exortando seus irmãos a fugirem do pecado para evitar atrozes suplícios na
outra vida.’6
As almas do Purgatório desejam essa purificação
Apesar de tais penas,
as almas que se encontram no Purgatório não estão ali acorrentadas, desejando
fugir. Pelo contrário, aceitam todos os sofrimentos.’7 E se
soubessem da existência de mil Purgatórios, ainda mais ardentes, quereriam
neles se lançar, pois, na verdade, o que se lhes afigura mais intolerável é
verem-se cobertas de manchas que as afastam de Deus. Elas anseiam por ser
inteiramente puras e virginais para entrar no Céu. Esta atitude assemelha-se à
de um arminho — animalzinho tão alvo, símbolo da castidade e da inocência — que
prefere morrer a ver suja sua pelagem branca.
II - A IGREJA QUE LUTA REZA PELA IGREJA QUE PADECE
Nós temos uma
sensibilidade errônea, pela qual, quando assistimos junto ao leito de algum
moribundo à sua agonia, seguida do terrível drama da morte, nos impressionamos
com facilidade por acreditar ser o término da carreira daquela pessoa. Mas, na
realidade — a Fé nos diz — ali tudo começa. Longe de julgar desligados de nós
os que partiram, devemos nos compenetrar de que, estando no Céu ou no Purgatório,
o vínculo com eles é muito mais estreito do que imaginamos. Assim, qualquer
oração ou ato com mérito sobrenatural, até mesmo o uso da água benta, praticado
por quem permanece na Terra na intenção de beneficiar as almas do Purgatório, é
considerado por Deus com grande benevolência e tomado pelas próprias almas com
muito agrado, já que não podem mais rezar por si. Nossas preces, aplicadas em
sufrágio delas, abreviam a duração de seus padecimentos.
Por isso a Igreja,
como Mãe amorosa, escolheu um dia do Ano Litúrgico para a comemoração dos Fiéis
Defuntos, no qual concede aos sacerdotes o direito de celebrar três Missas, com
“a condição que uma das três seja aplicada a livre escolha, com possibilidade
de receber oferta; a segunda Missa, sem nenhuma oferta, seja dedicada a todos
os Fiéis Defuntos; a terceira seja celebrada segundo as intenções do Sumo
Pontífice”.’8 Esta obrigação em relação à última das três
Missas encontra sua origem no zelo do Vigário de Cristo pela pronta liberação
das santas almas do Purgatório. Com o passar do tempo, grande número de
instituições pias, estabelecidas para a celebração de Missas em sufrágio das
almas de determinados defuntos, foram sendo abandonadas e negligenciadas,
resultando daí um sério prejuízo para as almas do Purgatório. Acrescentou-se
ainda a I Guerra Mundial, que assolou a Europa arrebatando incalculáveis
vidas, sobretudo entre os jovens. Facultando a celebração desta terceira Missa
no dia dos Fiéis Defuntos, Sua Santidade Bento XV, com paternal largueza,
assumiu para si esta dívida da Igreja para com as almas sofredoras.
Não nos esqueçamos,
porém, de que, embora uma só Eucaristia tenha um poder impetratório infinito,
lucrarão mais as almas que em vida tiveram maior devoção a ela.19
Portanto, também nós
devemos ter especial empenho em aumentar nosso fervor pela participação
na renovação incruenta do Santo Sacrifício do Calvário.
A Santa Igreja dá
ainda aos fiéis o privilégio de obter uma indulgência plenária em favor de uma
alma do Purgatório,20 recitando neste dia — ou nos dias subsequentes, até 8 de
novembro — um Pai Nosso e um Credo em alguma igreja ou oratório, ou visitamo um
cemitério para rezar nessa intenção.
O valor de nossas orações é superior a qualquer oferta material
É verdade que nós nos
comprazemos em depositar sobre os túmulos coroas de flores ou velas, costume
este muito bom e legítimo. No entanto, nossa maior manifestação de carinho
pelas
almas deve consistir em pedir por elas, pois o efeito da oração supera em muito
o de qualquer oferta material, segundo a famosa sentença atribuída a Santo
Agostinho: “Uma lágrima por um defunto se evapora. Uma flor sobre o túmulo
murcha. Uma oração por sua alma, Deus a recolhe”.
É preciso levar em conta
que, como Deus não está na dependência do tempo, diante d’Ele não existe
passado nem futuro e todos os acontecimentos se desenrolam num perpétuo
presente, desde toda a eternidade e por toda a eternidade. Deste modo, se hoje
rezamos pela boa morte de algum parente ou conhecido — ainda que esta possa se
ter dado há cinco ou quinhentos anos —, nossa oração já foi considerada por
Deus no instante exato de sua passagem desta vida à outra, contribuindo para um
trânsito mais feliz e assistido por graças eficazes e abundantes.
Um “negócio” com as almas do Purgatório
Esta piedosa prática
nos permite fazer amizade com aqueles que, por causa de nossas preces, saem do
Purgatório e são admitidos no Céu, onde adquirem um poder de audiência colossal
junto a Deus. Decerto, a gratidão deles nos beneficiará. Se nesta Terra somos
agradecidos aos nossos benfeitores, quanto mais as almas que entram na glória
saberão interceder em favor de quem por elas rezou.
Nesse sentido, bem
cabe aqui a aplicação da parábola do administrador infiel (cf. Lc 16, 1-8).
Este homem, ao perceber que perderia o emprego devido à má gestão nos negócios
de seu senhor, travou amizade com todos os devedores deste a fim de ser
sustentado por eles na hora da amargura e da necessidade, já que, por sua
avançada idade, carecia de forças para trabalhar. E, uma vez despedido, foi ele
amparado por todos aqueles de quem fraudulentamente aliviara a dívida. Nosso
Senhor não elogia o roubo do administrador, mas louva, isto sim, sua esperteza.
Hoje é, então, o dia
da esperteza! Devemos pedir por todos os que se encontram no Purgatório,
sobretudo os mais ligados a nós. Este ato de caridade nos renderá bons amigos,
que retribuirão em qualidade e quantidade o favor recebido e, por conseguinte,
muito nos ajudarão na hora da dificuldade.
III - DEVEMOS EVITAR A TODO CUSTO A PASSAGEM PELO PURGATÓRIO
Esta comemoração
também traz consigo um ensinamento de grande proveito espiritual, no qual
deitaremos a atenção, sem nos determos demasiado no amplo leque de leituras que
a Liturgia oferece neste dia.
A tragédia da morte
Todos nós somos
obrigados a enfrentar dificuldades e dores nesta vida, pois ninguém está isento
delas. O sofrimento suportado com resignação cristã tem um papel purificador,
corretivo, que faz dele como que um oitavo sacramento.21 Entre as muitas
tribulações há uma que, embora seja mera possibilidade quanto à data, de si é
uma certeza absoluta para todos: a morte. Com efeito, estamos na Terra apenas
de passagem, e nossa meta final é o Céu. Todavia, por ser esta uma verdade tão
dura, custa-nos mantê-la diante dos olhos, pois gostaríamos de transpor os umbrais
da eternidade sem suportar o trágico transe em que a alma se separa do corpo.
Com o intuito de
manter viva na mente dos fiéis tal realidade, Santo Afonso Maria de Ligório 22
recomendava que se representasse na imaginação o cadáver de um recém-falecido, e
se meditasse sobre o processo que se segue à morte: como o corpo é comido pelos
vermes, e até mesmo os ossos, com o tempo, se esfarelam e se convertem em pó. E
a situação, quanto ao corpo, de quem partiu deste mundo. Mas quantos já
“viajaram” e ainda não alcançaram a felicidade eterna, e estão penando no fogo
do Purgatório! É o que pode acontecer a qualquer um de nós hoje, amanhã ou mais
tarde: perde as forças, dá os últimos suspiros, percebe que a alma vai abandonar
o corpo, vê-lo-á como se fosse o de um terceiro, imóvel, inerte, gelando... A seguir
vem o juízo. Depois, para onde irá? Não sabemos. Para nós mesmos é impossível,
nesta vida, prever se vamos para o Purgatório ou não...
A seriedade do Purgatório
Ora, não pensemos
que, pelo fato de termos praticado este ou aquele ato bom ao longo da
existência, na hora do julgamento particular poderemos evitar o Purgatório com
um sorriso dirigido ao Juiz — o próprio Nosso Senhor Jesus Cristo! —, que O
enternece e, esquecendo todas as nossas faltas, nos introduz na glória... Não é
o que Ele afirmou no Evangelho e está registrado nas Escrituras Sagradas, como,
por exemplo, no Livro da Sabedoria, em que encontramos inúmeras comparações
entre a morte do justo e a do ímpio (cf. Sb 3, 1-19; 4,16-20; 5, 14-15).
Portanto, se estamos
convictos da obrigação de orar pelas almas do Purgatório, mais ainda — segundo
reza o conhecido adágio popular: “a caridade começa pela própria casa” —
necessitamos nos convencer de que não basta temer apenas o inferno, pois é
preciso temer também o Purgatório. Para isto devemos, antes de tudo, eliminar a
ideia de irrelevância do pecado venial e tomá-lo a sério como Deus o toma, não
só esforçando-nos por manter o estado de graça, mas procurando a santidade com
uma perseverança cheia de vigilância, de amor e de receio de se aproximar das
ocasiões de pecado. Se uma amizade, certa situação ou programa de televisão me fazem
escorregar, hei de fugir, preferindo mortificar-me aqui a ter de padecer no
Purgatório. Quanto tempo, em meio a tormentos tremendos, poderá custar-me a
recusa de uma hora de sacrifício na Terra?
Alimentando nossa
alma pela fé, rumo à eternidade, esforcemo-nos para levar uma vida íntegra e
santa, de maneira a merecer ir direto para o Céu. Se, pelo contrário, não nos compenetrarmos
da perfeição que Deus exige de nós, quando morrermos — queira Deus que na sua
graça! — teremos de nos purificar no Purgatório.
A exigência da vigilância
Ao contar a parábola
das dez virgens — uma das opções de Evangelho que a Liturgia propõe para este
dia (Mt 25, 1-13) —, Nosso Senhor quis nos mostrar o quanto é preciso estar
preparado para a morte, pois ela vem na hora mais inesperada. Naquele tempo o
ato principal das festas de casamento era o ingresso da esposa na casa do
esposo. Rodeada de certo número de virgens suas amigas, aguardava ela o noivo,
que vinha com os amigos, para juntos iniciarem o solene cortejo até sua nova
moradia, em geral depois do pôr do Sol, à luz de lâmpadas e tochas, cantando e
tocando alegremente. Na narração evangélica as virgens prudentes, prevendo uma
eventual demora do noivo, guardaram uma provisão de azeite a fim de estarem com
as lâmpadas acesas à chegada deste; as outras, porém, gastaram todo o azeite e
suas lâmpadas estavam prestes a apagar-se quando o noivo foi anunciado, pelo que
suplicaram às primeiras lhes cedessem um pouco do que tinham. Mas as prudentes,
receando não ser suficiente para todas, negaram-no às companheiras. Eis uma
imagem a respeito da morte, face à qual cada um terá de arcar com sua própria
“provisão” de méritos, não podendo confiar na alheia. Ante Deus há uma
responsabilidade pessoal intransferível, da qual teremos de prestar contas. Se
não agirmos como devemos, poderemos escutar a terrível sentença do Juiz: “Não
vos conheço!” (Mt 25, 12). E se Lhe perguntarmos o porquê dessas duras
palavras, Ele nos responderá: “Porque não vivestes de acordo com os meus princípios,
a minha mentalidade e os meus Mandamentos”.
A mesma mensagem nos
é transmitida em outra das leituras evangélicas para esta comemoração (Lc 12,
35-40): a parábola dos servos que aguardam a chegada do senhor. Jesus inicia
suas palavras recomendando: “Que vossos rins estejam cingidos e as lâmpadas
acesas” (Lc 12, 35). A expressão “rins cingidos” é sinônimo de disponibilidade
para o serviço, já que, naquela época, os orientais recolhiam suas longas
túnicas não só para andar, mas também para servir à mesa. Em nosso caso,
trata-se de estarmos prontos para a prática da virtude da caridade. Quanto às
“lâmpadas acesas”, significa, mais uma vez, a importância de termos a atenção
muito viva e atilada para evitar as ocasiões próximas de pecado, bem como de
nos mantermos em espírito de oração. Permaneçamos como as virgens prudentes ou
como estes homens à espera do regresso do senhor de urna festa de casamento,
com a lamparina cheia de azeite, ou seja, sempre vigilantes, evitando tudo o
que possa nos conduzir ao Purgatório. “Vós também, ficai preparados! Porque o
Filho do Homem vai chegar na hora em que menos O esperardes” (Lc 12, 40).
IV - AO MESMO TEMPO, ESPERANÇA
Não devemos encarar a
morte como algo estritamente trágico, um drama para o qual não há solução, mas,
de acordo com a visualização da Igreja, como uma necessidade. A maneira da semente
que, segundo a expressão do Apóstolo, “não recobra vida, sem antes morrer” (I
Cor 15, 36), é preciso que em determinado momento o corpo repouse, à espera da
ressurreição. Se Jesus mesmo não tivesse morrido, o que seria de nós?
Os efeitos da Redenção
São Paulo, quiçá
tendo recebido uma revelação de Nosso Senhor, escreveu: “toda a criação geme e
sofre como que em dores de parto até o presente dia” (Rm 8, 22) para ser
“libertada do cativeiro da corrupção” (Rm 8, 21), através dos benefícios da Paixão
e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo. De fato, a natureza foi marcada pelo
pecado de Adão e ainda não teve acesso, inteiramente, aos efeitos da Redenção,
porque estes estão retidos à espera do Juízo Final. Os teólogos, em especial
São Tomás de Aquino,23 comentam que no dia do Julgamento, depois da ressurreição
dos corpos, as mãos de Deus se abrirão e toda a natureza se rejubilará pelos
frutos da Redenção. Por exemplo, a Lua vai brilhar com mais claridade do que
antes do pecado original, e o Sol adquirirá maior fulgor, deitando sobre a Terra
uma luminosidade especial. Dado que a criatura humana é um microcosmos, a razão
mais profunda desta restauração está no fato de se encontrarem reunidos em
Jesus-Homem todos os planos da criação, como verdadeira síntese do universo,
n’Ele elevada a um grau altíssimo. E preciso, pois, que a matéria que Ele
assumiu, ao se encarnar, seja glorificada.
Esperança da ressurreição
Se a própria natureza
está gemendo à espera desse dia, porque não devemos gemer também nós? Pois,
embora já gozemos, por meio dos Sacramentos, de uma parcela dos efeitos da
Redenção que é a vida sobrenatural — “as primícias do Espírito” (Rm 8, 23a) de
que nos fala o Apóstolo —, aguardamos “a adoção, a redenção do nosso corpo” (Rm
8, 23b). Peregrinos neste vale de lágrimas, longe da pátria verdadeira, a todo momento
nos sobrevém a tentação, a provação e a angústia, e muitas vezes nos
perguntamos: “Quando iremos?”. Sabemos que, da mesma forma que a alma, nosso
corpo foi plasmado por Deus com vistas a durar eternamente, livre das contingências
— doenças, sono, fome, limitações — que nosso atual estado comporta, conforme
reza o Prefácio para os Fiéis Defuntos: “desfeito o nosso corpo mortal, nos é
dado, nos Céus, um corpo imperecível” 24
Em uma das numerosas
leituras a serem escolhidas para esta comemoração, São Paulo usa uma imagem
muito realista, comparando o corpo a uma tenda (cf. II Cor 5, 1.6-10), como as
que tinha de fabricar para seu próprio sustento (cf. At 18, 3). Exorta a não
nos preocuparmos se esta for destruída, porque Deus nos dará outra muito melhor
(cf. II Cor 5, 1). Como incansável apóstolo da Ressurreição, escreve também em
sua Primeira Carta aos Coríntios: “Semeado na corrupção, o corpo ressuscita
incorruptível; semeado no desprezo, ressuscita glorioso; semeado na fraqueza,
ressuscita vigoroso; semeado corpo animal, ressuscita corpo espiritual” (I Cor
15, 42-44).
Com efeito, o corpo
glorioso gozará de quatro qualidades, a saber: claridade, impassibilidade,
agilidade e sutileza.25 E-nos permitido conjecturar que, graças a elas, o corpo
poderá fazer-se imperceptível no lugar em que quiser, passar através das substâncias
sólidas, deslocar-se como lhe aprouver à velocidade do pensamento... Além
disso, não necessitará do concurso de um alfaiate para se vestir, pois a roupa
será trabalhada pela própria imaginação, que terá equilíbrio perfeito, sem as
loucuras decorrentes do pecado.
A esperança de
recuperar o corpo deve alimentar nossa existência, dando-nos forças para
abandonar um prazer fugaz e ilícito, para evitar o pecado e praticar a virtude,
porque seremos altamente recompensados no dia da ressurreição da carne. Então
assistiremos, com estes mesmos olhos com que agora vemos, ao esplendor da
criação renovada.
Assim, embora o Dia de
Finados seja marcado com uma nota de tristeza pela ausência de quem já partiu,
é com alegria que rezamos por eles, se nos pusermos diante da perspectiva apresentada
pela Igreja: atravessados os trágicos umbrais da morte, todos nos encontraremos
no outro lado, num convívio de intimidade e júbilo extraordinários, até
retomarmos o corpo em estado de glória, com a ressurreição.
Peçamos a Nossa Senhora
da Boa Morte, bem como aos Santos e aos Anjos, que nos ajudem e obtenham o
favor de morrer na plenitude da graça que nos cabe, na plenitude do cumprimento
da nossa missão e na plenitude da nossa perfeição de alma e de vida espiritual,
de modo a nem sequer conhecer o Purgatório.
1) Cf. Dz 1672.
2) Cf. SAO
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. I-II, q.87, a.1.
3) PAULO VI.
Indulgentiarum doctrina, n.2.
4) Cf. SAO
TOMAS DE AQUINO, op. cit., III, q.86, a.4, ad 3.
5) Cf.
GARRIGOULAGP.JJGE OP, Réginald. L
‘éternelle vie et la profondeur de l’âme. Paris: Desclée de Brouwer, 1953, p.95.
6) PAULO VI,op. cit., n.8.
7) SAO TOMAS DE
AQUINO. Super Sent. LIV, ap.l, a.2, ad 2.
8) Cf. Idem, a.1.
9) PAULO VI,
op. cit., 11.3.
10) Cf. LOUVET. Le Purgatoire d’après les révélations
des saints. 3.ed.
Albi: Apprentis-orphelins, 1899, p.130-131.
11) Cf. GARRIGOU-LAGRANGE,
op. cit., p.232-233.
12) Cf. SÃO
TOMÁS DE AQUINO. Super Sent. L.IV, ap.1,
a.5.
13) Cf. Idem,
a.2.
14) SANTO
AGOSTINHO. Enarratio in psalmum XXXVII, n.3. In: Obras. Madrid:
BAC, 1964, v.XIX, p.654.
15) SAO TOMAS
DE AQUINO. Super Sent. L.IV, ap.I, a.3.
16) Cf.
ROSSIGNOLI, SJ, Grégoire. Les merveilles divines dans les âmes du Purgatoire.
2.ed. Bordeaux: Barets, 1870, v.11, p.51-53.
17) Cf. SÃO
TOMÁS DE AQUINO. Super Sent. L.IV, ap.1,
a.4.
18) BENTO XV.
Incruentum altaris, de 10/8/1915.
19) Cf. SANTO
AGOSTINHO. De cura pro mortuis gerenda, XVIII, 22. In: Obras. Madrid: BAC,
1995, v.XL, p.473-474.
20) Cf.
PÆNTTENTIARIA APOSTOLICA Enchiridjon indulgentiarum. Concessiones 29. Pro
fidelibus defunctis, §1, 12e 2.
21) Cf. FABER,
apud CHAUTARD, OCSO, Jean-Baptiste. A alma de todo apostolado. São Paulo: FTD,
1962, p.112.
22) Cf. SANTO
AFONSO MARIA DE LIGORIO. Máximas eternas. Porto: Fonseca, 1946, p.7-8.
23) Cf. SÃO
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. Suppi., q.91, a l.
24) RITO DA
MISSA. Oração Eucarística: Prefácio dos Fiéis Defuntos, I. In: MISSAL ROMANO.
Trad. Portuguesa da 2a. edição típica para o Brasil realizada e publicada pela
CNBB com acréscimos aprovados pela Sé Apostólica. 9.ed. São Paulo: Paulus,
2004, p.462.
25) Cf. SÃO
TOMÁS DE AQUINO. In SymbolumApostolorum. Art.11.
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