COMENTÁRIOS AO EVANGELHO DO XXVII
DOMINGO DO TEMPO COMUM –ANO B – Mc
10,2-16
Naquele tempo, 2alguns fariseus se aproximaram de Jesus. Para pô-lo à
prova, perguntaram se era permitido ao homem divorciar-se de sua mulher. 3Jesus
perguntou: “O que Moisés vos ordenou?” 4Os fariseus responderam: “Moisés
permitiu escrever uma certidão de divórcio e despedi-la”. 5Jesus então disse:
“Foi por causa da dureza do vosso coração que Moisés vos escreveu este
mandamento. 6No entanto, desde o começo da criação, Deus os fez homem e mulher.
7Por isso, o homem deixará seu pai e sua mãe e os dois serão uma só carne.
8Assim, já não são dois, mas uma só carne. 9Portanto, o que Deus uniu o homem
não separe!”
10Em casa, os discípulos fizeram, novamente, perguntas sobre o mesmo
assunto. 11Jesus respondeu: “Quem se divorciar de sua mulher e casar com outra,
cometerá adultério contra a primeira. 12E se a mulher se divorciar de seu
marido e se casar com outro, cometerá adultério”.
13Depois disso, traziam crianças para que Jesus as tocasse. Mas os
discípulos as repreendiam. 14Vendo isso, Jesus se aborreceu e disse: “Deixai
vir a mim as crianças. Não as proibais, porque o Reino de Deus é dos que são
como elas. 15Em verdade vos digo: quem não receber o Reino de Deus como uma
criança, não entrará nele”. 16Ele abraçava as crianças e as abençoava,
impondo-lhes as mãos. (Mc
10,2-16)
A inocência, a eterna Lei...
Depois de restituir ao matrimônio a sua original pureza, o
Divino estre ensina que a inocência deve reger o ser humano em qualquer estado
de vida.
I – A Origem da instituição Matrimonial
A Liturgia do 27 Domingo do
Tempo Comum nos apresenta, em palavras da Revelação, uma perfeita síntese da
moral católica a respeito do matrimônio. A primeira leitura (Gn 2, 18-24),
extraída do Gênesis, explica claramente por que Deus criou o homem e a mulher.
Valendo-se de um recurso literário de extraordinário valor, o Autor Sagrado
descreve os fatos de maneira poética e atraente, como se Deus fosse aos poucos
dando-Se conta das reações de Adão e agindo em consequência.
Deus criou Adão com instinto de sociabilidade
Ao criar o primogênito do
gênero humano, Deus pôs em sua alma o instinto de sociabilidade, que se
manifesta pela necessidade de uma companhia e por um desejo inextinguível de amar
e de ser amado. Depois de o introduzir no Jardim do Eden, disse Ele: “Não é bom
que o homem esteja só” (Gn 2, 18a), e fez desfilar diante de Adão todos os
animais — que no Paraíso lhe obedeciam’ —, a fim de que lhes desse um nome.
Deus assim o fez para que o primeiro homem, extremamente equilibrado, percebesse
que, embora possuidores de rica simbologia, nenhum deles era capaz de preencher
sua aspiração de amar, nem estava à sua altura, enquanto criatura racional.
Terminado, pois, o cortejo da fauna criada por Deus, Adão desencantou-se,
porque “não encontrou uma auxiliar semelhante a ele”(Gn 2, 20), e se sentiu só.
Uma vez que chegou a esta
conclusão, “Deus fez cair um sono profundo sobre Adão” (Gn 2, 21) — já que era
conveniente causar-lhe surpresa — e retirou-lhe uma das costelas, da qual
formou Eva. Bem poderia ter modelado outro boneco de barro, mas preferiu
tirá-la dele, visando deixar patente que um era feito para o outro. Deste modo,
promovia entre ambos uma união completa.2
Um trampolim para chegar até Deus
Ao despertar e deparar-se com a
primeira mulher, Adão exclamou: “Desta vez, sim, é osso dos meus ossos e carne
da minha carne!” (On 2, 23). Ela lhe servia de complemento, era um ser com quem
podia estabelecer uma relação que satisfizesse aquela apetência de amor com que
o Todo-Poderoso o dotara, para uma altíssima finalidade. Destinado para Deus, o
homem vive à sua procura, impulsionado por certo “instinto do divino” — correlacionado
intimamente com o instinto de sociabilidade —,que não se sacia em nada da
criação. Contudo, porque é composto de corpo e alma, precisa de algo externo
que, pela via dos sentidos, lhe facilite a contemplação interior e lhe sirva de
elemento de ligação com Deus, enquanto não O vê face a face.
Além disso, era impossível que
a totalidade dos atributos divinos fosse representada tão só pelo varão, pois,
por exemplo, Deus é fortaleza e vigor e, ao mesmo tempo, suavidade e afeto, extremos
que em geral não cabem no gênero masculino. Por isso quis o Senhor dar-lhe uma
“auxiliar semelhante” (Gn 2, 18b) — e não igual — que, conjugada com ele, o
completasse, refletindo de Deus os aspectos contrários, mas harmônicos. Assim —
tendo em vista a realização do plano que, desde todo o sempre, Ele arquitetara
para a humanidade —, homem e mulher deveriam ser “uma só carne” (Gn 2, 24),
isto é, unir-se para constituir família, com o objetivo de gerar uma prole e
educá-la nos caminhos de Deus.
É através desta troca de amores
que a pessoa tem noção de quanto ela é estimada por Deus, e é neste relacionamento
de doação recíproca que ela encontra um trampolim para chegar até o Infinito.
Eis a base e a solidez de qualquer convívio! E não apenas entre os que se casam
— e a isto é chamada a maioria —, mas ainda entre aqueles que, à imitação de
Cristo Virgem, abraçam o celibato “por amor do Reino dos Céus” (Mt 19, 12) e
realizam um conúbio com o ideal religioso, com a obrigação de fazer bem aos
outros e de entregar-se ao apostolado.
Como o matrimônio, também esta
vocação é indissolúvel e, nos dois casos, aplica-se sem distinção a sentença de
Nosso Senhor Jesus Cristo: “o que Deus uniu, o homem não separe!”.
II - O PLANO ORIGINAL DE DEUS É RESTAURADO E ELEVADO
É uma lei da História que as
maiores convulsões se produzem quando a verdade se manifesta onde impera a moral
relativista, alheia a Deus. Foi o que se verificou, de forma arquetípica, com o
aparecimento da Verdade com “V” maiúsculo: Nosso Senhor Jesus Cristo. O mundo
inteiro estava, então, imerso numa terrível crise, sobretudo moral, da qual não
escapava sequer o povo eleito. E Jesus, sem intervir na política nem instigar
revolução alguma, mas apenas pregando sua doutrina, provocou um tremendo abalo
em toda a Terra.
Expressivo, nesse sentido, é o
episódio relatado no Evangelho deste domingo. Após o pecado original, a mulher
foi sendo paulatinamente relegada da consideração do homem e a poligamia — que
teve sua origem na linhagem de Cairn (cf. Gn 4, 19) — tornou-se um hábito
generalizado em muitas civilizações pagãs da Antiguidade, e era tolerada,
inclusive, entre os hebreus. Mesmo sob o regime da Lei de Moisés, o trato
dispensado ao elemento feminino estava marcado pelo desprezo. O Divino Mestre
veio restabelecer a primitiva pureza da instituição do matrimônio.
Uma pergunta formulada com perversa intenção
Naquele tempo, 2 alguns fariseus se aproximaram de Jesus. Para pô-lo à
prova, perguntaram se era permitido ao homem divorciar-se de sua mulher.
Encontrava-Se o Divino Mestre
evangelizando “a região da Judeia, além do Jordão” (Mc 10, 1). Enquanto
ensinava as multidões, os fariseus, adeptos de uma moral de exterioridades, se
aproximaram d’Ele. Não queriam aprender, mas destruir, como ressalta São Beda:
“E de se notar a diferença que há entre o espírito do povo e o dos fariseus: o
primeiro vem para ser instruído pelo Senhor, para que cure seus enfermos, [...J
os últimos, para enganá-Lo, tentando-O”.3
Cientes de que o Redentor já
havia defendido o casamento indissolúvel (cf. Mt 5, 3 1-32), seus adversários
quiseram pô-Lo à prova, confrontando-O com Moisés, que permitira o divórcio. Pretendiam,
assim, colocá-Lo numa posição difícil, pois se Ele respondesse com uma
negativa, estaria Se pronunciando contra o profeta; se dissesse que sim, rejeitaria
sua própria doutrina. Ademais, tanto uma quanto outra solução dividiria a
opinião pública, dado que os judeus seguiam as mais variadas tendências a esse
respeito.
A Sabedoria Divina desmonta uma armadilha humana
3 Jesus perguntou: “O que Moisés vos ordenou?”
Nosso Senhor é a Sabedoria
Eterna e Encarnada e, enquanto Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, não só
conhece tudo, desde toda a eternidade, como também contempla tudo num perpétuo
presente, pois para Ele não há passado nem futuro. Enquanto Homem, sua Alma foi
criada na visão beatífica, dotada de ciência infusa e, portanto, em constante e
plena consonância com sua visão divina. Para Ele, então, não constituía novidade
o fato de Lhe apresentarem tal problema. Sabendo qual era o péssimo intuito dos
fariseus ao montar aquela armadilha, Jesus responde com inteira naturalidade e
de modo peremptório, indo diretamente ao ponto aonde tencionavam levá-Lo. Os
interpeladores, uma vez descobertos, tiveram que confessar suas intenções.
A lei positiva deformada pela casuística
4 Os fariseus responderam: Moisés permitiu escrever uma certidão de
divórcio e despedi-la”.
Com efeito, estava consignado
por Moisés que o marido podia despedir sua mulher “por descobrir nela qualquer
coisa inconveniente” (Dt 24, 1). Termos muito genéricos, que — como sói
acontecer — com o tempo deram margem a numerosas controvérsias entre os estudiosos
da Lei. Discutiam eles os casos em que tal concessão seria cabível, mas como
não eram dotados de infalibilidade — da qual goza o Papa para não errar em
matéria de Fé e de moral —, se desviaram, chegando a extremos inimagináveis nas
suas interpretações e multiplicando as casuísticas até o absurdo. Alguns eram
rigoristas, partidários das maiores restrições na aplicação do preceito;
outros, laxistas, favoráveis a uma dissolubilidade quase sem limites do matrimônio.
Estes últimos eram da opinião de que se a mulher deixasse queimar a comida, o
marido já tinha motivo suficiente para repudiá-la.4 Além de ser uma insensatez
que feria o próprio direito natural, a facilitação do divórcio concorria para desvalorizar
cada vez mais a mulher e escravizar o homem às suas próprias paixões.
Ora, isto não condizia com o
desígnio de Deus ao criar Eva da costela de Adão. Se fosse da vontade d’Ele
“que o homem pudesse deixar uma e tomar outra, depois de criar um só varão
teria formado muitas mulheres”,5 pondera São João Crisóstomo. Adão ficou
agradado ao contemplar Eva porque viu nela o que não encontrara em nenhum dos
animais, isto é, um ser racional, capaz de entrar em consonância com ele para,
juntos, subirem até Deus, num mútuo aperfeiçoamento, em que as qualidades
fossem “se temperando e se equilibrando umas às outras, e as virtudes comunicando
umas às outras nuances harmoniosas” 6
Uma permissão motivada pela dureza de coração
5 Jesus então disse: “Foi por causa da dureza do vosso coração que
Moisés vos escreveu este mandamento”.
Ao situar Moisés no centro da
discussão, Nosso Senhor põe os fariseus “contra a parede”, pois lhes demonstra
que aquela era uma lei humana, embora promulgada sob inspiração divina. O
grande legislador não havia errado; todavia, tanto aquela permissão quanto a
poligamia, no Antigo Testamento, não eram senão uma contingência, provocada
pela dureza de coração dos hebreus. Em suma, “o estado inferior da civilização
dos israelitas daquela época, uma triste insensibilidade às ordens de Deus, um
egoísmo desenfreado, tais eram as razões pelas quais Moisés havia tolerado o
divórcio; e ainda esta tolerância visava restringir os abusos”,7 comenta
Fillion.
No entanto, o Redentor veio
para restabelecer a ordem. Tinha Ele o direito de decretar qualquer lei, não só
enquanto Deus, mas também enquanto Profeta, previsto pelo próprio Moisés (cf.
Dt 18, 15). Por conseguinte, sua palavra valia muito mais que a dele! A fim de
evidenciar isto para os fariseus, Ele vai fazer uma afirmação rigorosa,
apontando o plano original de Deus a respeito do casamento.
A primitiva pureza do matrimônio é restabelecida
6 “No entanto, desde o começo da criação, Deus os fez homem e mulher. Por isso, o homem deixará seu pai e sua mãe e
os dois serão uma só carne. 8 Assim, já não são dois, mas uma só carne. Portanto,
o que Deus uniu, o homem não separe!”
Visto não ter chegado o momento
de manifestar plenamente sua divindade — pois não a aceitariam —, Jesus
apresenta um argumento irrefutável: as palavras da Escritura, inspiradas por
Ele mesmo. Citando o texto do Gênesis, Se reporta ao princípio da criação, ou
seja, ao relacionamento que existia entre homem e mulher antes do pecado: união
santa, monogâmica e indissolúvel, em total conformidade com a natureza de
ambos. Se esta situação foi alterada, deveu-se à dureza de coração das gerações
posteriores, consequência da queda original.
Nesta passagem, o Salvador
consagra o matrimônio na Nova Lei, restabelecendo o vínculo conjugal exclusivo
e perene, que só a morte pode desfazer. Com efeito, este não permanece no Céu,
como Jesus esclarece mais tarde, a propósito de uma discussão com os saduceus
(cf. Mt 22, 30); trata-se de uma aliança permanente apenas nesta vida, O
casamento é uma vocação, e os que forem chamados a abraçá-la hão de deixar seus
pais “e os dois serão uma só carne”. Ao instaurar o regime da graça, o próprio
Redentor proporciona à humanidade a força para tornar isto possível.
Não é difícil imaginar o quanto
esta sentença do Divino Mestre arranhou os fariseus... Em todas estas
contendas, “sempre é Ele quem lhes cose a
boca e põe freio ao desaforo de sua língua, e com isso os afasta de Si. Sem
embargo, nem assim retrocedem em seu empenho. Tal é naturalmente a malícia, tal
a inveja, descarada e insolente”.8
O contrato natural elevado a Sacramento
10 Em casa, os discípulos fizeram, novamente, perguntas sobre o mesmo
assunto. ‘‘Jesus respondeu: “Quem se divorciar de sua mulher e casar com outra,
cometerá adultério contra a primeira. 2 E se a mulher se divorciar de seu
marido e casar com outro, cometerá adultério”.
A polêmica suscitou dúvidas nos
discípulos, pois, nascidos naquele ambiente, conheciam muito bem as diversas
teorias que circulavam acerca do matrimônio. Iria o Mestre, agora, mudar a Lei?
Por isso fizeram perguntas a
Jesus, e Ele aproveitou para expor esta doutrina com maior profundidade a seus
mais próximos. Se o casamento é indissolúvel, o marido que se separa da mulher,
ou vice-versa, e contrai uma nova união, comete adultério.
Surge, então, o problema: seria
suficiente restaurar o matrimônio em sua primitiva pureza ou haveria algo a
acrescentar a esta visão essencial?
A resposta é simples. Nosso
Senhor Jesus Cristo elevou o matrimônio — de si um contrato natural — à
categoria de Sacramento. Na celebração das núpcias, os ministros são os
próprios nubentes. Ao pronunciarem a fórmula pela qual manifestam o consentimento
para sua união, além de terem aumentada a graça santificante, lhes é dada uma
assistência especial para mais facilmente manterem a fidelidade mútua e
cumprirem os deveres de seu novo estado.
União de dois que resolveram abraçar juntos a cruz
Isto quebra a ideia romântica —
tão difundida pelas produções cinematográficas de Hollywood e pelas novelas
televisivas — de que a vida matrimonial é uma realidade feita de rosas... Sim,
há rosas perfumadas, de pétalas muito bonitas, mas com caules crivados de
espinhos terríveis... Porque não existem dois temperamentos iguais! Se não há
dois grãos de areia ou duas folhas de árvore idênticas, menos ainda duas
criaturas humanas, pois quanto mais se sobe na escala dos seres, maior é a
diferença entre eles. A utopia da igualdade absoluta dos homens é uma loucura!
Costumava dizer o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira que Deus não é tartamudo e,
portanto, não repete suas obras: “Cada ser é uma sílaba única e perfeita da
ação criadora de Deus naquela gama, o que é verdadeiramente uma maravilha” .
Às vezes há processos de separação
por causa de bagatelas. Qual a raiz de tais desentendimentos? A dificuldade em
aceitar a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, da qual, na segunda leitura (Hb 2,
9-11), nos fala São Paulo: “Convinha de fato que Aquele, por quem e para quem
todas as coisas existem, e que desejou conduzir muitos filhos à glória, levasse
o iniciador da salvação deles à consumação, por meio de sofrimentos” (fib 2,
10). Para nos redimir, bastaria que Jesus oferecesse ao Pai um gesto — pois
todos os seus atos têm mérito infinito —, mas Ele preferiu padecer os tormentos
da Crucifixão, o suplício mais ignominioso daqueles tempos, dando-nos assim o
exemplo de como devemos abraçar a nossa própria cruz.
É o Apóstolo que, escrevendo
aos efésios, se refere ao matrimônio como símbolo da união entre Nosso Senhor
Jesus Cristo e a Santa Igreja (cf. Ef 5, 22-32). 0 Salvador a ama a ponto de
por ela ter derramado todo o seu Sangue, e é essencial que os cônjuges estejam
dispostos a fazer o mesmo um pelo outro. Só quando ambos se determinam a abraçar
a cruz e carregá-la juntos, o matrimônio atinge sua plenitude e seu esplendor.
Desta forma, “onde há uma só carne, há um só espírito: rezam unidos, se
prostram unidos, jejuam unidos; se instruem mutuamente, se exortam mutuamente,
se alentam mutuamente. São iguais na Igreja de Deus, no banquete de Deus, nas
provas, nas perseguições e nos consolos”.’0
Não nos iludamos! Em qualquer
estado de vida, o verdadeiro caminho a ser trilhado é o da cruz! Depois do
pecado original, eia sempre estará presente no convívio social, havendo
desavenças e desencaixes inclusive entre esposos. Falsa seria a afirmação de
que é possível existir um casal tão inteiramente harmônico, que cada um dos consortes
nunca tenha de fazer esforço para adaptar-se ao outro. Daí a importância do
Sacramento, que “purifica os olhos da natureza, faz suportáveis as desgraças,
enternecedoras as enfermidades, amáveis a velhice e os cabelos brancos. A graça
torna o amor paciente. Ela o fortifica face ao choque dos defeitos com que ele
se deparou”.11
Age com grande insensatez quem
se baseia na estrita beleza física ao contrair matrimônio, esquecendo-se de
que, com o correr dos anos, a fisionomia e a pele vão adquirindo outra aparência...
Pior ainda é o erro no qual incorre quem se casa por sensualidade, acreditando
na mentira de que a felicidade está em dar vazão a paixões voluptuosas no
relacionamento matrimonial. Neste não pode haver libertinagem; cada um deve respeitar
a si mesmo e o outro, tendo como objetivo a prole. O que se fizer sem esta
intenção é pura e simplesmente pecaminoso, como ensina Santo Agostinho: “tudo
quanto os esposos realizem contra a moderação, a castidade e o pudor é um vício
e um abuso, que não provém do autêntico matrimônio, mas sim de homens mal
refreados”.’2 Soltar as rédeas das paixões é inconcebível em qualquer
circunstância, pois o combate a elas é o cerne de nossa luta e de nossa cruz.
III - A INOCÊNCIA, SUSTENTÁCULO DE QUALQUER ESTADO DE VIDA
Uma vez que — como até agora consideramos
— o Evangelho de hoje se centra no casamento, poderíamos julgar descabidos
neste contexto os próximos versículos, dedicados ao convívio de Jesus com as
crianças. Na verdade, eles complementam o tema e indicam qual a postura ideal
do homem na sociedade.
É evidente que Deus quer o
crescimento do gênero humano, com o intuito de povoar o Céu com mais filhos e
filhas. Tal conquista foi por Ele condicionada à união do homem e da mulher.
“Levem em conta, portanto, os pais cristãos, que não estão destinados
unicamente a propagar e conservar o gênero humano na Terra, mais ainda, nem
sequer a educar qualquer classe de adoradores do Deus verdadeiro, mas a
enxertar nova descendência na Igreja de Cristo, a procriar cidadãos dos Santos
e familiares de Deus [...]. A eles compete oferecer à Igreja seus próprios
filhos, a fim de que esta fecundíssima mãe dos filhos de Deus os regenere à
justiça sobrenatural pela água do Batismo e se tornem membros vivos de Cristo,
partícipes da vida imortal e, por fim, herdeiros da glória eterna”.13 Ou seja,
não basta que nasçam crianças; incumbe também à família a missão de lhes
conservar a inocência.
Uma concepção autossuficiente da vida espiritual
13 Depois disso, traziam crianças para que Jesus as tocasse. Mas os
discípulos as repreendiam.
Certamente eram as mães que,
movidas pelo instinto materno, levavam seus filhinhos até Jesus, em busca do
melhor para eles. Nosso Senhor era capaz de obter qualquer benefício, por mais
extraordinário que fosse — afinal, tão só por tocar seu manto os doentes
ficavam curados! —, e talvez tivessem percebido que quando acariciava a cabeça
de alguma criança, ela se tornava mais inteligente. Conduziam, pois, os
pequeninos para perto do Salvador, a fim de que, impondo-lhes as mãos, lhes concedesse
saúde, força, sabedoria e, sobretudo, graças. Ora, com sua vivacidade infantil,
faziam alvoroço em volta d’Ele... Por este motivo, alguns comentaristas sugerem
que os Apóstolos estavam preocupados em pôr ordem na multidão e, para evitar
que as crianças atrapalhassem o Mestre, repreendiam-nas.
A realidade, porém, é mais profunda.
Não só as mulheres conforme consideramos acima —, mas também as crianças eram
tratadas com desprezo na Antiguidade, situação que só mudaria pelos efeitos do
preciosíssimo Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo. De acordo com a mentalidade
israelita, a prática da Religião competia exclusivamente aos homens e partia de
uma iniciativa própria: a pessoa, depois de uma detida análise, tomava a
resolução de seguir as sendas de Deus; logo, ela mesma era a causa de sua
adesão à Fé. Mais tarde, Jesus retificaria este conceito, ensinando aos seus:
“Não fostes vós que Me escolhestes, mas Eu vos escolhi” (Jo 15, 16). Por isso,
tanto os fariseus quanto os discípulos reputavam as crianças elementos alheios
à Religião. Assuntos relativos ao Reino dos Céus se discutiam com gente madura,
capaz de raciocinar e descobrir por si onde estava a verdade.
Para entrar no Reino, precisamos ser dependentes de Deus
14 Vendo isso, Jesus Se aborreceu e disse: “Deixai vir a Mim as
crianças. Não as proibais, porque o Reino de Deus é dos que são como elas”.
“Vendo isso” — o erro clássico
de supor que a salvação é fruto do esforço —, o Divino Redentor ficou
entristecido. Ao afirmar que o Céu pertence àqueles que são como as crianças, ensina
que a iniciativa é tomada por Deus, pois é Ele quem distribui as graças,
designa a cada um sua vocação e santifica. Cabe-nos aceitar seu chamado como
crianças em relação a Deus, e como adultos no governo das criaturas.
Quem é pequenino não se julga
um colosso nem autossuficiente, mas dependente; é o que Nosso Senhor elogia e
aponta como modelo a ser imitado. Segundo explica São João Crisóstomo, “a alma
do menino está limpa de todas as paixões. [...] E por mais que sua mãe o
castigue, vai buscá-la e a prefere entre todos os outros. [...j Daí o Senhor
dizer: ‘Deles é o Reino dos Céus’, a fim de que façamos por livre vontade o
mesmo que o menino tem por dom da natureza”.14
A fórmula para conquistar o Céu
15 “Em verdade vos digo: quem não receber o Reino de Deus como uma
criança, não entrará nele”. 6 Ele abraçava as crianças e as abençoava,
impondo-lhes as mãos.
Compenetremo-nos disto: somos
criaturas contingentes, necessitamos do auxílio de Deus! E preciso ser “como
uma criança” para reconhecer a vontade d’Ele e cumpri-la: seja no matrimônio,
com a disposição de harmonizar-se com o cônjuge: seja no estado religioso, com
a alma aberta a tudo o que vem do alto, à maneira do filho dócil aos
ensinamentos dos pais.
Ser como criança significa
também ser inocente, isto é, ter a alma semelhante a um cristal que nunca foi
riscado: límpida, transparente e cheia de luz, jamais manchada por qualquer falta.
O Reino de Deus é constituído por aqueles que se empenham em conservar a
própria inocência e a dos demais. Quando rezamos no Pai Nosso “venha a nós o
vosso Reino”, devemos arder do desejo de que na Terra e em nosso interior se
estabeleça a supremacia da inocência! Se abraçarmos este ideal, seremos abraçados
por Nosso Senhor, porque Ele abençoa os que se fazem pequenos.
Entretanto, quem perdeu a
inocência, não pense estar numa situação irremediável. Este tesouro pode ser
restaurado, como se verificou no caso de Santa Maria Madalena, de Santo Agostinho
e tantos outros, ao longo dos tempos. E é sobretudo no amor à Inocência que
recuperamos a nossa inocência!
A fonte de nossa inocência, conservada ou restaurada
Em síntese, a Liturgia do 27
Domingo do Tempo Comum é uma apologia da inocência. Ouvimos as palavras de São
Paulo na segunda leitura: “Aquele, por quem e para quem todas as coisas
existem” — Jesus Cristo — “e que desejou conduzir muitos filhos à glória”. Sim,
Ele quer os filhos nascidos da união entre o homem e a mulher para levá-los,
inocentes, à eterna bem-aventurança! “Pois tanto Jesus, o Santificador, quanto
os santificados, são descendentes do mesmo ancestral; por esta razão, Ele não
Se envergonha de os chamar irmãos” (FIb 2, 11). Eis a causa de toda a
inocência, a fonte de nossa vida espiritual! Cada um de nós esteve na mente de
Deus desde toda a eternidade e, em certo momento, passou a existir. No campo
sobrenatural temos a mesma origem de Nosso Senhor Jesus Cristo, somos todos ir mãos,
pertencemos à família divina, e é com vistas a aumentar o número de seus membros
que foi instituída a familia terrena. Peçamos o indispensável amparo da graça
para conservarmos intacta a inocência, ou para reconquistá-la, e sejamos
arautos da Inocência Eterna, Nosso Senhor Jesus Cristo, e da Inocente por excelência,
Maria Santíssima. Brilhe a inocência sobre a face da Terra de forma gloriosa,
portentosa e extraordinária, e divida a História, como Cristo o fez, sendo
pedra de escândalo para salvação de uns e condenação de outros!
1) Cf. SÃO TOMÁS DE
AQUINO. Suma Teológica. I, q.96, a.1.
2) Cf. Idem, q.92, a.2; a.3.
3) SÃO BEDA. In Marci
Evangelium Expositio. LIII, c.lO: ML 92, 229.
4) Cf. MIDRASH SIFRE DEUT 24, 1, §269. In: BONSIRVEN, SJ, Joseph (Ed.). Textes rabbiniques des
deux premiers siècles chrétiens. Roma: Pontificio listituto Biblico, 1955,
p.76.
5) SAO JOAO CRISOSTOMO.
Homilía LXII, nl. In: Obras. Homilús sobre elEvangelio de San Mateo (46-90). 2.ed. Madrid: BAC, 2007, v.fl, p.288.
6) MONSABRÉ, OP, Jacques-Marie-Louis. La sainteté du manage. In:
Exposition du Dogme Catholique. Grâce de Jésus-Christ. V - Madage. Caréme 1887.
10.ed. Paris: P. Lethielleux, 1903, v.X’V p.13-14.
7) PILLION, Louis-Claude.
Vida de Nuestro Señor Jesucristo. Vïda pública. Madrid: Rialp, 2000, v.11,
p.420.
8) SÃO JOÃO CRISÓSTOMO,
op. cit., p.286-287.
9) CORRÊA DE OLIVEIRA,
Plinio. Palestra. Säo Paulo, 16 abr. 1966.
10) TERTULIANO. Ad
uxorem. LII, c.9: ML 1, 1302-1303.
11) MONSABRE, op. cit.,
p.41.
12) SANTO AGOSTINHO. De
bono coniugali. C.VI, 11.5. In: Obras. Madrid: BAC, 1954, v.XII, p.55.
13) PIO XI. Casti
connubü, 11.7.
14) SÃO JOÃO CRISÓSTOMO,
op. cit., n.4, p.297.
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