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quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Evangelho XXVIII Domingo do Tempo Comum - Ano B - Mc 10,17-30

Conclusão dos comentários ao Evangelho XXVIII Domingo do Tempo Comum - Ano B

III – Só os pobres de espírito entrarão no reino dos céus
 23 Jesus então olhou ao redor e disse aos discípulos: “Como é difícil para os ricos entrar no Reino de Deus!” 24Os discípulos se admiravam com estas palavras, mas ele disse de novo: “Meus filhos, como é difícil entrar no Reino de Deus! 25É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus!”
Neste último versículo, Nosso Senhor Se serve de um provérbio utilizado pelos judeus para expressar algo extremamente difícil e quase impossível. Recorre propositalmente a essa comparação na aparência exagerada — “é mais fácil passar o camelo pelo buraco de uma agulha...” — para mostrar a gravidade da “desordem própria dessa paixão, consistente em apegar o coração à terra, endurecê-lo no que diz respeito a Deus e ao próximo, torná-lo insensível às coisas do Céu”.12
Para bem analisar essas palavras de Jesus, é preciso começar por evitar a interpretação errada, segundo a qual todo rico estaria condenado e todo pobre, ao contrário, estaria no caminho certo para a salvação. Pois o Mestre não se refere aqui à riqueza material, mas sim ao desvio que leva o homem a depositar sua confiança nos bens terrenos, antepondo-os aos bens superiores.
Sobre este particular, esclarece Fillion: “Não se trata aqui dos ricos enquanto tais, pois a posse dos bens temporais não é, de si, um estado de pecado nem causa de condenação, embora ofereça sérios perigos. Jesus não exclui de Seu Reino senão aqueles ricos que se apegam às suas riquezas e nelas põem — digamos assim — sua finalidade e todo o seu afeto”.13
Como valer-se da riqueza para alcançar a vida eterna

A finalidade última do homem está no Céu. O dinheiro e as riquezas podem ser apenas meios — efêmeros, instáveis e dispensáveis — para alcançar esse supremo fim. Assim, é legítimo acumular bens e deles usufruir, desde que sejam adquiridos de forma lícita e seu uso esteja subordinado à glória de Deus.
Nesta linha se insere o comentário feito por São Clemente de Alexandria a esta passagem do Evangelho: “A parábola ensina aos ricos que não devem descuidar-se de sua salvação eterna, como se de antemão dela se desesperassem, não que seja preciso jogar ao mar a riqueza, nem condená-la como insidiosa e inimiga da vida eterna. O que importa é saber qual a maneira de valer-se dela para possuir a vida eterna”.14
Com efeito, quantos reis, príncipes ou simples pessoas abastadas que, administrando o que tinham com inteiro desprendimento, encontram-se hoje no Céu como atesta o catálogo dos santos?
Por outro lado, quantos pobres há que se recusam a praticar a virtude! Bem fariam estes em ouvir a conclamação de São Cesário de Arles: “Ricos e pobres, escutai o que diz Cristo. Falo ao povo de Deus. Em vossa maioria, sois pobres ou deveis aprender a sê-lo. No entanto, escutai, pois podemos inclusive nos vangloriarmos de ser pobres; tende cuidado com a soberba, não aconteça que os ricos humildes vos superem; acautelai-vos contra a impiedade, não aconteça que os ricos piedosos vos deixem para trás”.15
O problema não está, portanto, na quantidade de bens materiais possuídos por alguém, mas no uso que deles se faz. Para poder entrar no Reino dos Céus, é preciso não ter apego algum a eles. A pobreza de espírito consiste em nos compenetrarmos que somos criaturas contingentes, que dependem de Deus. Pode-se lutar para se ter recursos, mas com vistas a espalhar o Reino de Deus, e fazer com que Ele reine de fato em todos os corações.
Por nosso simples esforço, jamais conquistaremos o Céu
26Eles ficaram muito espantados ao ouvirem isso, e perguntavam uns aos outros: “Então, quem pode ser salvo?”27Jesus olhou para eles e disse: “Para os homens isso é impossível, mas não para Deus. Para Deus tudo é possível”.
Não é de estranhar o espanto dos discípulos perante a força da comparação usada por Nosso Senhor. Mas essa mesma perplexidade os leva a considerar melhor a própria contingência e a fixar no espírito o duplo ensinamento do Divino Mestre: pelos seus simples esforços, o homem jamais conseguirá conquistar o Céu; mas aquilo que para o homem é impossível, não o é para Deus.
Deus é onipotente, ama-nos desde toda a eternidade e está desejoso de abrir-nos as portas do Céu. Para nele entrar, é preciso apenas que sejamos humildes e reconheçamos nossas misérias, pedindo o auxílio divino, sem desanimar.
A salvação, como a própria vida, é uma dádiva de Deus. É Sua graça que nos dá forças para praticar os Mandamentos e nos torna dignos de entrar no Seu Reino. Não façamos, pois, como o moço rico, mas confiemos humildemente na Sua bondade, como ensina São Paulo na segunda leitura deste domingo: “Aproximemo-nos confiadamente do trono da graça, a fim de alcançar misericórdia e achar a graça de um auxílio oportuno” (Hb 4, 16).
Ainda sobre estes dois versículos, convém notar, com Maldonado, que a pergunta “quem pode então salvar-se?”, os Apóstolos a fizeram “a si próprios”, isto é, somente eles puderam ouvi-la. Cristo, entretanto, olhou para eles e deu-lhes a resposta, mostrando assim que “lia seus pensamentos e ouvia suas conversas, por mais reservadas que fossem”.16
O cêntuplo já neste mundo
28 Pedro então começou a dizer-lhe: 'Eis que nós deixamos tudo e te seguimos'. 29Respondeu Jesus: 'Em verdade vos digo, quem tiver deixado casa,  irmãos, irmãs, mãe, pai, filhos, campos, por causa de mim e do Evangelho, 30receberá cem vezes mais agora, durante esta vida - casa, irmãos, irmãs, mães, filhos e campos, com perseguições - e, no mundo futuro, a vida eterna.
Talvez pelo fato de se sentirem apanhados, São Pedro, impulsivo porta-voz de todas as perplexidades dos Apóstolos, formula uma frase que, no dizer de Lagrange, “resume todo o episódio precedente, do ponto de vista dos discípulos”.17
Segundo Maldonado — o qual segue a opinião de Orígenes, São Jerônimo e São João Crisóstomo — quis Pedro, com sua afirmação, lembrar a Cristo o fato de terem os Apóstolos já cumprido anteriormente aquilo que era agora pedido ao jovem rico.18 No mesmo sentido se pronuncia Lagrange, observando que a afirmação do Príncipe dos Apóstolos foi feita “com uma certa satisfação que parece solicitar uma aprovação”.19
Mas caberia perguntar, com Maldonado: “Por que, então, duvidava? Por que não creu firmemente que também para eles havia um tesouro no Céu?”. Ao que ele próprio responde: “Talvez porque pensassem que Cristo prometia tão grande recompensa àquele jovem por causa das muitas riquezas que este devia abandonar; ora, como os Apóstolos possuíam apenas coisas de pouco valor, esperavam receber algo, sim, mas não se atreviam a esperar tanto; por isso perguntam como e quanto será”.20
No fundo da afirmação de Pedro havia uma desconfiança e uma objeção. Jesus, entretanto, não os repreende. Sendo a Bondade em essência, Ele os trata com carinho e acrescenta, ao prêmio da vida eterna no Céu, uma recompensa ainda aqui na terra.
Comentam certos autores que o Senhor, fazendo essa promessa, quis afirmar que quem por causa dEle deixar os bens desta terra, receberá em troca bens de valor infinito. Ou seja: quem por Ele abandonar aquilo que é “carnal”, receberá em troca o prêmio do bem “espiritual”.
Parece-nos, entretanto, que as palavras do versículo 30 — “já neste século” — tornam claro o caráter terreno dessa recompensa, cuja efetivação concreta na era apostólica é assim assinalada por Fillion: “Nos primórdios da Igreja, quando tão amiúde os neófitos precisavam romper os mais estreitos laços de família para se alistarem no serviço de Cristo, encontravam eles na grande comunidade cristã irmãos e irmãs, pais e mães que lhes suavizavam os padecimentos causados por uma violenta separação e enchiam de consolo seus doloridos corações”.21
Sob uma perspectiva mais atemporal, assinala o padre Didon que o Espírito divino “não só traz a todos aqueles que invisivelmente O recebem o antegozo dos bens celestiais, eternos, infinitos, mas, além disso, exalta ainda a vida deste mundo, aumenta seus recursos, harmoniza as suas energias, transfigura todos os seus atos. Entre os seres eleitos que este Espírito aproxima, formam-se laços mais íntimos, mais profundos, mais doces que entre aqueles que são parentes do mesmo sangue”.22
E o padre Fernández Truyols, referindo-se especificamente às pessoas que correspondem à vocação religiosa e fazem a entrega completa de si mesmas, comenta: “O sacrifício dos bens terrenos terá sua recompensa já nesta vida. E não só em vantagens exclusivamente espirituais, mas também em bens temporais, embora num plano superior ao puramente material. Quem se despoja de tudo para seguir Cristo Jesus receberá da Divina Providência, quiçá com acréscimo e superabundantemente, o quanto necessitar para sua subsistência. Deixa seu pai e sua mãe, e Deus dá-lhe pais e mães que o adotam como um filho muito querido. Donzelas na flor da juventude renunciam à maternidade, e Deus as faz mães não de alguns, mas de inumeráveis filhos, nos quais derramam todas as ternuras de um coração verdadeiramente maternal”.23
 IV – Uma pergunta decisiva para nossa vida espiritual
Somos todos “participantes da vocação celestial” (Hb 3, 1). Contudo, enquanto Jesus nos chama a segui-Lo a caminho do Reino de Deus, as nossas tendências desordenadas em consequência do pecado original nos arrastam para aquilo que é inferior.
Exemplo paradigmático dessa dicotomia é o episódio do Evangelho que acabamos de comentar. O jovem rico era bom. Praticava os Mandamentos a ponto de Nosso Senhor o fitar com amor. Quando, porém, o Mestre o convidou a ser um dos Seus discípulos, afastou-se triste e abatido, pois sempre que alguém recusa um convite da graça, é pervadido pela tristeza e pelo remorso. O padre Duquesne descreve com notável clareza essa lamentável situação de alma: “Ninguém renuncia à sua vocação sem uma dor de coração, sem uma secreta tristeza que increpa sua covardia, tristeza que difunde amargura ao longo de todo o curso da vida e aumenta na hora da morte”.24
A liturgia deste domingo nos coloca, assim, diante de uma pergunta decisiva para nossa vida espiritual: a que distância se encontra nossa alma da atitude do moço rico? Se Cristo nos convidasse hoje a segui-Lo, como Lhe responderíamos? Bradaríamos com alegria, como Samuel: “Præsto sum” (I Sm 3, 16) – “Eis-me aqui”? Ou, tomados pela tristeza, recusaríamos o convite de nosso Salvador?
Quando chegar esse chamado — e ele pode vir em hora inesperada —, seremos muito mais capazes de dar resposta afirmativa se nos tivermos preparado previamente. Para isso, é necessário que, em todas as circunstâncias da vida, nosso coração esteja à procura do Divino Mestre, combatendo o apego aos bens terrenos, aumentando sem cessar o fogo do amor a Deus e fazendo a pergunta de São Paulo no caminho de Damasco: “Senhor, que quereis que eu faça?” (At 9, 6).
A isto nos incita o Príncipe dos Apóstolos: “Irmãos, cuidai cada vez mais em assegurar a vossa vocação e eleição. Procedendo deste modo, não tropeçareis jamais. Assim vos será aberta largamente a entrada no Reino eterno de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo” (II Pd 1, 10-11).
1AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica. III q. 24, a. 1, resp. “A predestinação propriamente dita é a eterna pré-ordenação divina com relação às coisas que, pela graça de Deus, devem realizar-se no tempo. Ora, pela graça da união, Deus fez com que, no tempo, o homem fosse Deus e Deus fosse homem. E não se pode afirmar que Deus não tenha pré-ordenado desde a eternidade que Ele faria isso no tempo, porque daí se seguiria que algo de novo poderia acontecer para o entendimento divino. Por isso é preciso afirmar que a união das naturezas na pessoa de Cristo entra na predestinação eterna de Deus”.
2 JOÃO PAULO II. Encíclica Redemptoris Mater, n. 8. “No mistério de Cristo, Maria está presente já ‘antes da criação do mundo’, como aquela a quem o Pai ‘escolheu’ para Mãe do seu Filho na Encarnação — e, conjuntamente ao Pai, escolheu-a também o Filho, confiando-a eternamente ao Espírito de santidade. Maria está unida a Cristo, de um modo absolutamente especial e excepcional; e é amada neste ‘Filho muito amado’ desde toda a eternidade, neste Filho consubstancial ao Pai, no qual se concentra toda ‘a magnificência da graça’”.
3 DIDON, OP, Pe. Henri. Jesus Christo. Porto: Chardron, 1895, p. 381.
4 LAGRANGE, OP, Pe. M.J. Évangile selon Saint Marc. Paris: Lecoffre, 1929, p. 264.
5 FILLION, Louis-Claude. Vida de Nuestro Señor Jesucristo. Madrid: Rialp, v. 2, p. 429.
6 DUQUESNE. L’Évangile médité. Paris-Lyon: Perisse Frères, 1849, p. 266.
7 SAN EFRÉN DE NISIBE, Comentario al Diatessaron, 15, 210 apud ODEN, Thomas C. e HALL, Cristopher A. La Biblia comentada por los Padres de la Iglesia – Nuevo Testamento 2 San Marcos. Madrid: Ciudad Nueva, 2000, p. 199.
8 DUQUESNE. Op. cit., p. 267.
9 FILLION. Op. cit., p. 431.
10 MALDONADO, SJ, Pe. Juan de. Comentarios a los cuatro evangelios – I Evangelio de San Mateo. Madrid: BAC, 1950, p. 692.
11 LAGRANGE, OP. Op. cit., p. 266.
12 DUQUESNE. Op. cit., p. 273.
13 FILLION. Op. cit., p. 431.
14 CLEMENTE DE ALEJANDRÍA. Quis dives salvetur? c. XXVII.
15 CESÁREO DE ARLES, Sermo 153, 156 apud ODEN e HALL. Op. cit., p. 202.
16 MALDONADO, SJ. Op. cit., p. 695.
17 LAGRANGE, OP. Op. cit., p. 271.
18  Cf. MALDONADO, SJ. Op. cit., p. 695.
19 LAGRANGE, OP. Op. cit., p. 271.
20 MALDONADO, SJ. Op. cit., p. 695.
21 FILLION. Op. cit., p. 433.
22 DIDON, OP. Op. cit., p. 385.
23 FERNÁNDEZ TRUYOLS, SJ, Andrés. Vida de Nuestro Señor Jesucristo. Madrid: BAC, 1954, p. 482.
24 DUQUESNE. Op. cit., p. 270-271.

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