Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP
Naquele tempo, 17 quando Jesus saiu a caminhar, veio alguém correndo,
ajoelhou-se diante dele, e perguntou: “Bom Mestre, que devo fazer para ganhar a
vida eterna?”
18 Jesus disse: “Por que me chamas de bom? Só Deus é bom, e mais ninguém.
19Tu conheces os mandamentos: não matarás; não cometerás adultério; não
roubarás; não levantarás falso testemunho; não prejudicarás ninguém; honra teu
pai e tua mãe!”
20 Ele respondeu: “Mestre, tudo isso tenho observado desde a minha
juventude”. 21 Jesus olhou para ele com amor, e disse: “Só uma coisa te falta:
vai, vende tudo o que tens e dá aos pobres, e terás um tesouro no céu. Depois
vem e segue-me!”
22 Mas quando ele ouviu isso, ficou abatido e foi embora cheio de
tristeza, porque era muito rico. 23 Jesus então olhou ao redor e disse aos
discípulos: “Como é difícil para os ricos entrar no Reino de Deus!”
24 Os discípulos se admiravam com estas palavras, mas ele disse de novo:
“Meus filhos, como é difícil entrar no Reino de Deus! 25É mais fácil um camelo
passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus!”
26 Eles ficaram muito espantados ao ouvirem isso, e perguntavam uns aos
outros: “Então, quem pode ser salvo?”27Jesus olhou para eles e disse: “Para os
homens isso é impossível, mas não para Deus. Para Deus tudo é possível”.
28 Pedro então começou a dizer-lhe: 'Eis que nós deixamos tudo e te
seguimos'. 29 Respondeu Jesus: 'Em verdade vos digo, quem tiver deixado
casa, irmãos, irmãs, mãe, pai, filhos, campos,
por causa de mim e do Evangelho, 30 receberá cem vezes mais agora, durante esta
vida - casa, irmãos, irmãs, mães, filhos e campos, com perseguições - e, no
mundo futuro, a vida eterna. Mc 10,17-30
O décimo terceiro Apóstolo?
Aquele que
chegara correndo e se ajoelhara sôfrego diante de Nosso Senhor, retirou-se
triste e abatido de Sua presença. Preferiu conservar os seus bens terrenos,
desprezando — fato inédito no Evangelho — o “tesouro no Céu” oferecido pelo
próprio Deus.
I – Fomos criados com uma vocação
Desde toda a eternidade, esteve
prevista na mente divina a criação, no tempo, de Nosso Senhor Jesus Cristo,
enquanto homem,1 e de Sua Mãe, Maria Santíssima.2
Mas Deus não concebeu ambos
isoladamente. Queria Ele que, à maneira de uma corte, houvesse quem os
servisse. Todos nós estávamos incluídos nesse ato de pensamento e fomos amados
por Ele como foi revelado a Jeremias: “Eu amo-te com eterno amor, e por isso a
ti estendi o meu favor” (Jr 31, 3).
Nosso Senhor é o modelo tomado
por Deus para a nossa criação, é Ele a nossa causa exemplar. Havendo de tornar
possível, por Seus méritos, a nossa existência enquanto filhos de Deus, pois
“todos nós recebemos da sua plenitude graça sobre graça” (Jo 1, 16),
constitui-Se em nossa causa eficiente. E, por termos sido criados para servi-Lo
e adorá-Lo, é também a nossa causa final.
Fomos, em suma, concebidos em,
por e para Jesus, pois “nEle foram criadas todas as coisas nos Céus e na terra,
as criaturas visíveis e as invisíveis. Tronos, dominações, principados,
potestades: tudo foi criado por Ele e para Ele” (Cl 1, 16). Isto configura um
chamado feito a nós desde todo o sempre, tal como afirma o Apóstolo: “Deus nos
salvou e chamou para a santidade, não em atenção às nossas obras, mas em
virtude do seu desígnio, da graça que desde a eternidade nos destinou em Cristo
Jesus” (II Tm 1, 9). Deus nos convida a fazer parte da Santa Igreja, e nos
chama à santidade. Mas, junto com esse apelo genérico, somos chamados a exercer
uma função específica dentro do Corpo Místico de Cristo. É uma missão que cada
um tem particularmente e não será dada a mais ninguém.
O Novo Testamento nos apresenta
inúmeros exemplos no chamado feito pelo próprio Jesus aos escolhidos para serem
Seus Apóstolos: vê Mateus na coletoria de impostos e lhe diz: “Segue-Me” (Mt 9,
9); no caminho de Damasco, São Paulo é lançado por terra e, ao ouvir a voz que
o interpelava, responde: “Senhor, que quereis que eu faça?” (At 9, 6); cheio de
pasmo após a pesca milagrosa, Pedro se prosterna diante do Mestre, exclamando:
“Retira-Te de mim, Senhor, porque sou um homem pecador”, e escuta a divina
promessa: “Doravante, serás pescador de homens” (cf. Lc 5, 8-10).
Tal como Mateus, Paulo ou
Pedro, que tudo abandonaram imediatamente para seguir o Mestre, precisamos
responder com prontidão, generosidade e alegria ao chamado que Jesus faz a cada
um de nós.
Este é o ensinamento contido no
Evangelho do 28º Domingo do Tempo Comum, como veremos a seguir.
II – O episódio do jovem rico
São Marcos, tão sintético em
outras passagens, mostra-se minucioso ao narrar o episódio do jovem rico. Já o
primeiro versículo contém interessantes pormenores dignos de especial atenção.
Naquele tempo, 17quando Jesus saiu a caminhar, veio alguém correndo,
ajoelhou-se diante dele, e perguntou: “Bom Mestre, que devo fazer para ganhar a
vida eterna?”
Pelo fato de vir “correndo” ao
encontro de Nosso Senhor, podemos supor o quanto esse “alguém” estava sôfrego
de obter aquilo que ia pedir. Certamente ouvira a pregação de Jesus e, sob o
impulso de uma graça sensível, deixou-se arrebatar por Seus divinos
ensinamentos. Almejando, de um lado, alcançar a vida eterna e, de outro, não
tendo a certeza de merecê-la, sentiu no fundo da alma ser Jesus capaz de
mostrar-lhe com segurança o caminho da salvação.
A própria pergunta feita por
ele ao Salvador, fala neste sentido, pois, como aponta Didon, ela “revelava uma
natureza superior e uma alma sincera. As doutrinas da escola sobre o mérito das
obras legais, sobre a santidade pela virtude dos ritos, não satisfaziam sua
consciência; certamente ouviu o Mestre falar da vida eterna com uma acentuação
que o tinha penetrado”.3
Daí o fato de ele correr até
Jesus, ajoelhar-se e chamá-Lo de “Bom Mestre”, um qualificativo alheio aos
costumes e gentilezas correntes na época. “Não se conhece exemplo de que alguém
tenha chamado assim um rabino”, comenta Lagrange, acrescentando que essa
saudação “ultrapassava os hábitos de cortesia então vigentes”.4
É também interessante destacar
o teor da pergunta, tão diferente dos temas sobre os quais se conversa hoje em
dia. Naquela época, as pessoas se preocupavam em saber como ganhar o Reino dos
Céus. E nos dias de hoje?...
Sobre a pressa do jovem,
observa Fillion: “Corria para não perder aquela ocasião de fazer ao Salvador
uma pergunta que muito o preocupava”.5 Duquesne elogia essa atitude e a propõe
como exemplo: “É com este fervor de espírito e esta rapidez de corpo, esta
presteza e esta alegria espiritual que se deve ir a Jesus”.6
Jesus o ama e faz-lhe um convite: “Vem e segue-Me”
18 Jesus disse: “Por que me chamas de bom? Só Deus é bom, e mais
ninguém.
Esta resposta causa
perplexidade à primeira vista, mas logo se compreendem as divinas razões que
levaram Nosso Senhor a dá-la.
Não visava o Messias
repreendê-lo, mas sim chamar sua atenção para esta realidade: só Deus é a
Bondade e, portanto, bondade absoluta só há em Deus. Santo Efrém ensina a este
respeito que Cristo “recusa o título de ‘bom’, dado por um homem, para indicar
que Ele tinha essa bondade adquirida do Pai, por natureza e geração, que não a
tinha simplesmente de nome”.7
Ao chamá-Lo de “Bom Mestre”, o
jovem rico mostrava ver principalmente o lado humano do Messias: sua
inteligência, capacidade e sabedoria naturais. Ora, Jesus quer que ele O
considere não só como homem, mas sobretudo como Deus. E por isso o interpela:
“Por que Me chamas bom?”.
Com essa pergunta, o convida a
dar um passo a mais, como quem diz: “Estás vendo só o meu lado humano,
contempla também o divino. No fundo, sem te dar conta, estás Me atribuindo uma
divindade que de fato tenho, porque sou Deus. Mas toma consciência disto,
compreende esta realidade com clareza e, compreendendo, ama-a ainda mais”.
Este convite é suave e
altamente didático, como afirma o padre Duquesne: “Jesus apenas insinua-lhe que
ele não tem a Seu respeito a noção inteira que deveria ter; e, dizendo-lhe que
tal título convém somente a Deus, leva-o a entender que deveria considerar como
Filho de Deus Aquele a quem ele o dá, e não como um mestre simplesmente
humano”.8
19Tu conheces os mandamentos: não matarás; não cometerás adultério; não
roubarás; não levantarás falso testemunho; não prejudicarás ninguém; honra teu
pai e tua mãe!” 20Ele respondeu: “Mestre, tudo isso tenho observado desde a
minha juventude”.
Nova mostra da divindade de
Jesus nos dá este versículo. Ele não pergunta ao jovem se conhece os
Mandamentos, mas o afirma com certeza. A quem agora via com Seus olhos humanos,
já conhecia, enquanto Deus, desde toda a eternidade. E sabia que ele praticava
a virtude, observando a Lei.
21Jesus olhou para ele com amor, e disse: “Só uma coisa te falta: vai,
vende tudo o que tens e dá aos pobres, e terás um tesouro no céu. Depois vem e
segue-me!”
Cristo olhou-o com amor e
fez-lhe o mesmo convite que fizera aos Apóstolos: “Vem e segue-Me”. Comenta
Fillion: “Portanto, estava Jesus disposto a admitir esse jovem entre os Seus
discípulos íntimos, com os quais, seguindo-O por toda parte e em companhia do
melhor e mais santo dos mestres, poderia adquirir sem tardança a perfeição pela
qual conseguiria facilmente o Céu”.9 E Maldonado corrobora essa opinião: “Que
entende Cristo por ‘vem e segue-Me’? A palavra ‘vem’ parece exprimir, mais do
que a simples imitação, o seguimento material: convida-o a fazer parte de seus
Apóstolos e familiares”.10
Àquele homem, que praticava os
Mandamentos, havia Deus reservado desde toda a eternidade a altíssima vocação
de seguir Jesus. Para cumpri-la, era-lhe pedida uma renúncia: “Vai, vende tudo
o que tens e dá-o aos pobres”; e oferecida uma recompensa infinita: “terás um
tesouro no Céu”. Cabia-lhe responder a esse chamado com inteira alegria e
prontidão, como haviam feito Simão, Levi e tantos outros.
A causa mais profunda da recusa
22Mas quando ele ouviu isso, ficou abatido e foi embora cheio de
tristeza, porque era muito rico.
Entretanto, o mesmo que chegara
correndo e se ajoelhara sôfrego diante de Nosso Senhor, retirou-se triste e
“abatido”, porque “possuía muitos bens” e preferiu conservá-los a seguir sua
vocação, desprezando o “tesouro no Céu” que o próprio Messias lhe oferecera.
Fato inédito, pois os Evangelistas não narram recusa semelhante a esta.
Não pensemos, entretanto, ter
sido o apego às riquezas a principal causa de sua defecção. O jovem rico
praticara os Mandamentos desde sua infância, mas não na perfeição.
Negligenciara, sobretudo, o primeiro e mais fundamental: “Amarás o Senhor teu
Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todas as tuas forças” (Dt
6, 5). Como bem observa o conhecido biblista M. J. Lagrange, os preceitos
mencionados a ele por Nosso Senhor “bem podem ser observados sem heroísmo. Se
Jesus lhe tivesse perguntado se amava a Deus de todo o coração, teria ficado
bem mais incomodado”.11
O grande pecado desse homem não
foi, portanto, de avareza, mas sim de orgulho. Ao ser convidado a seguir Nosso
Senhor e sentir em si a própria debilidade e insuficiência, deveria ter dito:
“Senhor, não tenho forças para seguir-vos. Tenho apego a minhas riquezas e,
sobretudo, falta-me amor exclusivo por Vós”.
Perante esse ato de humildade, Jesus lhe teria
dado graças superabundantes para corresponder ao chamado. E bem poderíamos ter
hoje no Calendário Romano uma festa dedicada ao jovem rico, que se tornou pobre
para adquirir uma riqueza muito maior: o décimo terceiro Apóstolo!
Entretanto, faltou-lhe
reconhecer que, se praticava os Mandamentos, não era por suas próprias forças,
mas pela graça divina. E que, portanto, sem o auxílio da graça, não conseguiria
desprezar as riquezas e seguir Jesus.
III – Só os pobres de espírito entrarão no reino dos céus
23Jesus então olhou ao redor e
disse aos discípulos: “Como é difícil para os ricos entrar no Reino de Deus!” 24Os
discípulos se admiravam com estas palavras, mas ele disse de novo: “Meus
filhos, como é difícil entrar no Reino de Deus! 25É mais fácil um camelo passar
pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus!”
Neste último versículo, Nosso
Senhor Se serve de um provérbio utilizado pelos judeus para expressar algo
extremamente difícil e quase impossível. Recorre propositalmente a essa
comparação na aparência exagerada — “é mais fácil passar o camelo pelo buraco de
uma agulha...” — para mostrar a gravidade da “desordem própria dessa paixão,
consistente em apegar o coração à terra, endurecê-lo no que diz respeito a Deus
e ao próximo, torná-lo insensível às coisas do Céu”.12
Para bem analisar essas
palavras de Jesus, é preciso começar por evitar a interpretação errada, segundo
a qual todo rico estaria condenado e todo pobre, ao contrário, estaria no
caminho certo para a salvação. Pois o Mestre não se refere aqui à riqueza
material, mas sim ao desvio que leva o homem a depositar sua confiança nos bens
terrenos, antepondo-os aos bens superiores.
Sobre este particular,
esclarece Fillion: “Não se trata aqui dos ricos enquanto tais, pois a posse dos
bens temporais não é, de si, um estado de pecado nem causa de condenação, embora
ofereça sérios perigos. Jesus não exclui de Seu Reino senão aqueles ricos que
se apegam às suas riquezas e nelas põem — digamos assim — sua finalidade e todo
o seu afeto”.13
Como valer-se da riqueza para alcançar a vida eterna
A finalidade última do homem
está no Céu. O dinheiro e as riquezas podem ser apenas meios — efêmeros,
instáveis e dispensáveis — para alcançar esse supremo fim. Assim, é legítimo
acumular bens e deles usufruir, desde que sejam adquiridos de forma lícita e
seu uso esteja subordinado à glória de Deus.
Nesta linha se insere o
comentário feito por São Clemente de Alexandria a esta passagem do Evangelho:
“A parábola ensina aos ricos que não devem descuidar-se de sua salvação eterna,
como se de antemão dela se desesperassem, não que seja preciso jogar ao mar a
riqueza, nem condená-la como insidiosa e inimiga da vida eterna. O que importa
é saber qual a maneira de valer-se dela para possuir a vida eterna”.14
Com efeito, quantos reis,
príncipes ou simples pessoas abastadas que, administrando o que tinham com
inteiro desprendimento, encontram-se hoje no Céu como atesta o catálogo dos
santos?
Por outro lado, quantos pobres
há que se recusam a praticar a virtude! Bem fariam estes em ouvir a conclamação
de São Cesário de Arles: “Ricos e pobres, escutai o que diz Cristo. Falo ao
povo de Deus. Em vossa maioria, sois pobres ou deveis aprender a sê-lo. No
entanto, escutai, pois podemos inclusive nos vangloriarmos de ser pobres; tende
cuidado com a soberba, não aconteça que os ricos humildes vos superem;
acautelai-vos contra a impiedade, não aconteça que os ricos piedosos vos deixem
para trás”.15
O problema não está, portanto,
na quantidade de bens materiais possuídos por alguém, mas no uso que deles se
faz. Para poder entrar no Reino dos Céus, é preciso não ter apego algum a eles.
A pobreza de espírito consiste em nos compenetrarmos que somos criaturas
contingentes, que dependem de Deus. Pode-se lutar para se ter recursos, mas com
vistas a espalhar o Reino de Deus, e fazer com que Ele reine de fato em todos
os corações.
Por nosso simples esforço, jamais conquistaremos o Céu
26Eles ficaram muito espantados ao ouvirem isso, e perguntavam uns aos
outros: “Então, quem pode ser salvo?”27Jesus olhou para eles e disse: “Para os
homens isso é impossível, mas não para Deus. Para Deus tudo é possível”.
Não é de estranhar o espanto
dos discípulos perante a força da comparação usada por Nosso Senhor. Mas essa
mesma perplexidade os leva a considerar melhor a própria contingência e a fixar
no espírito o duplo ensinamento do Divino Mestre: pelos seus simples esforços,
o homem jamais conseguirá conquistar o Céu; mas aquilo que para o homem é
impossível, não o é para Deus.
Deus é onipotente, ama-nos
desde toda a eternidade e está desejoso de abrir-nos as portas do Céu. Para
nele entrar, é preciso apenas que sejamos humildes e reconheçamos nossas
misérias, pedindo o auxílio divino, sem desanimar.
A salvação, como a própria
vida, é uma dádiva de Deus. É Sua graça que nos dá forças para praticar os
Mandamentos e nos torna dignos de entrar no Seu Reino. Não façamos, pois, como
o moço rico, mas confiemos humildemente na Sua bondade, como ensina São Paulo
na segunda leitura deste domingo: “Aproximemo-nos confiadamente do trono da
graça, a fim de alcançar misericórdia e achar a graça de um auxílio oportuno”
(Hb 4, 16).
Ainda sobre estes dois
versículos, convém notar, com Maldonado, que a pergunta “quem pode então
salvar-se?”, os Apóstolos a fizeram “a si próprios”, isto é, somente eles
puderam ouvi-la. Cristo, entretanto, olhou para eles e deu-lhes a resposta,
mostrando assim que “lia seus pensamentos e ouvia suas conversas, por mais
reservadas que fossem”.16
O cêntuplo já neste mundo
28 Pedro então começou a dizer-lhe: 'Eis que nós deixamos tudo e te
seguimos'. 29Respondeu Jesus: 'Em verdade vos digo, quem tiver deixado
casa, irmãos, irmãs, mãe, pai, filhos,
campos, por causa de mim e do Evangelho, 30receberá cem vezes mais agora,
durante esta vida - casa, irmãos, irmãs, mães, filhos e campos, com
perseguições - e, no mundo futuro, a vida eterna.
Talvez pelo fato de se sentirem
apanhados, São Pedro, impulsivo porta-voz de todas as perplexidades dos
Apóstolos, formula uma frase que, no dizer de Lagrange, “resume todo o episódio
precedente, do ponto de vista dos discípulos”.17
Segundo Maldonado — o qual
segue a opinião de Orígenes, São Jerônimo e São João Crisóstomo — quis Pedro,
com sua afirmação, lembrar a Cristo o fato de terem os Apóstolos já cumprido
anteriormente aquilo que era agora pedido ao jovem rico.18 No mesmo sentido se
pronuncia Lagrange, observando que a afirmação do Príncipe dos Apóstolos foi
feita “com uma certa satisfação que parece solicitar uma aprovação”.19
Mas caberia perguntar, com
Maldonado: “Por que, então, duvidava? Por que não creu firmemente que também
para eles havia um tesouro no Céu?”. Ao que ele próprio responde: “Talvez
porque pensassem que Cristo prometia tão grande recompensa àquele jovem por causa
das muitas riquezas que este devia abandonar; ora, como os Apóstolos possuíam
apenas coisas de pouco valor, esperavam receber algo, sim, mas não se atreviam
a esperar tanto; por isso perguntam como e quanto será”.20
No fundo da afirmação de Pedro
havia uma desconfiança e uma objeção. Jesus, entretanto, não os repreende.
Sendo a Bondade em essência, Ele os trata com carinho e acrescenta, ao prêmio
da vida eterna no Céu, uma recompensa ainda aqui na terra.
Comentam certos autores que o
Senhor, fazendo essa promessa, quis afirmar que quem por causa dEle deixar os
bens desta terra, receberá em troca bens de valor infinito. Ou seja: quem por
Ele abandonar aquilo que é “carnal”, receberá em troca o prêmio do bem
“espiritual”.
Parece-nos, entretanto, que as palavras
do versículo 30 — “já neste século” — tornam claro o caráter terreno dessa
recompensa, cuja efetivação concreta na era apostólica é assim assinalada por
Fillion: “Nos primórdios da Igreja, quando tão amiúde os neófitos precisavam
romper os mais estreitos laços de família para se alistarem no serviço de
Cristo, encontravam eles na grande comunidade cristã irmãos e irmãs, pais e
mães que lhes suavizavam os padecimentos causados por uma violenta separação e
enchiam de consolo seus doloridos corações”.21
Sob uma perspectiva mais
atemporal, assinala o padre Didon que o Espírito divino “não só traz a todos
aqueles que invisivelmente O recebem o antegozo dos bens celestiais, eternos,
infinitos, mas, além disso, exalta ainda a vida deste mundo, aumenta seus
recursos, harmoniza as suas energias, transfigura todos os seus atos. Entre os
seres eleitos que este Espírito aproxima, formam-se laços mais íntimos, mais
profundos, mais doces que entre aqueles que são parentes do mesmo sangue”.22
E o padre Fernández Truyols,
referindo-se especificamente às pessoas que correspondem à vocação religiosa e
fazem a entrega completa de si mesmas, comenta: “O sacrifício dos bens terrenos
terá sua recompensa já nesta vida. E não só em vantagens exclusivamente
espirituais, mas também em bens temporais, embora num plano superior ao
puramente material. Quem se despoja de tudo para seguir Cristo Jesus receberá
da Divina Providência, quiçá com acréscimo e superabundantemente, o quanto
necessitar para sua subsistência. Deixa seu pai e sua mãe, e Deus dá-lhe pais e
mães que o adotam como um filho muito querido. Donzelas na flor da juventude
renunciam à maternidade, e Deus as faz mães não de alguns, mas de inumeráveis
filhos, nos quais derramam todas as ternuras de um coração verdadeiramente
maternal”.23
IV – Uma pergunta decisiva para nossa vida espiritual
Somos todos “participantes da
vocação celestial” (Hb 3, 1). Contudo, enquanto Jesus nos chama a segui-Lo a
caminho do Reino de Deus, as nossas tendências desordenadas em consequência do
pecado original nos arrastam para aquilo que é inferior.
Exemplo paradigmático dessa
dicotomia é o episódio do Evangelho que acabamos de comentar. O jovem rico era
bom. Praticava os Mandamentos a ponto de Nosso Senhor o fitar com amor. Quando,
porém, o Mestre o convidou a ser um dos Seus discípulos, afastou-se triste e
abatido, pois sempre que alguém recusa um convite da graça, é pervadido pela
tristeza e pelo remorso. O padre Duquesne descreve com notável clareza essa
lamentável situação de alma: “Ninguém renuncia à sua vocação sem uma dor de
coração, sem uma secreta tristeza que increpa sua covardia, tristeza que
difunde amargura ao longo de todo o curso da vida e aumenta na hora da
morte”.24
A liturgia deste domingo nos
coloca, assim, diante de uma pergunta decisiva para nossa vida espiritual: a
que distância se encontra nossa alma da atitude do moço rico? Se Cristo nos
convidasse hoje a segui-Lo, como Lhe responderíamos? Bradaríamos com alegria,
como Samuel: “Præsto sum” (I Sm 3, 16) – “Eis-me aqui”? Ou, tomados pela
tristeza, recusaríamos o convite de nosso Salvador?
Quando chegar esse chamado — e
ele pode vir em hora inesperada —, seremos muito mais capazes de dar resposta
afirmativa se nos tivermos preparado previamente. Para isso, é necessário que,
em todas as circunstâncias da vida, nosso coração esteja à procura do Divino
Mestre, combatendo o apego aos bens terrenos, aumentando sem cessar o fogo do
amor a Deus e fazendo a pergunta de São Paulo no caminho de Damasco: “Senhor,
que quereis que eu faça?” (At 9, 6).
A isto nos incita o Príncipe
dos Apóstolos: “Irmãos, cuidai cada vez mais em assegurar a vossa vocação e
eleição. Procedendo deste modo, não tropeçareis jamais. Assim vos será aberta
largamente a entrada no Reino eterno de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo”
(II Pd 1, 10-11).
1AQUINO, São Tomás de. Suma
Teológica. III q. 24, a. 1, resp. “A predestinação propriamente dita é a eterna
pré-ordenação divina com relação às coisas que, pela graça de Deus, devem
realizar-se no tempo. Ora, pela graça da união, Deus fez com que, no tempo, o
homem fosse Deus e Deus fosse homem. E não se pode afirmar que Deus não tenha
pré-ordenado desde a eternidade que Ele faria isso no tempo, porque daí se
seguiria que algo de novo poderia acontecer para o entendimento divino. Por
isso é preciso afirmar que a união das naturezas na pessoa de Cristo entra na
predestinação eterna de Deus”.
2 JOÃO PAULO II. Encíclica
Redemptoris Mater, n. 8. “No mistério de Cristo, Maria está presente já ‘antes
da criação do mundo’, como aquela a quem o Pai ‘escolheu’ para Mãe do seu Filho
na Encarnação — e, conjuntamente ao Pai, escolheu-a também o Filho, confiando-a
eternamente ao Espírito de santidade. Maria está unida a Cristo, de um modo
absolutamente especial e excepcional; e é amada neste ‘Filho muito amado’ desde
toda a eternidade, neste Filho consubstancial ao Pai, no qual se concentra toda
‘a magnificência da graça’”.
3 DIDON, OP, Pe. Henri. Jesus Christo. Porto:
Chardron, 1895, p. 381.
4 LAGRANGE, OP, Pe. M.J. Évangile selon Saint Marc. Paris:
Lecoffre, 1929, p. 264.
5 FILLION, Louis-Claude. Vida
de Nuestro Señor Jesucristo. Madrid: Rialp, v. 2, p. 429.
6 DUQUESNE. L’Évangile médité.
Paris-Lyon: Perisse Frères, 1849, p. 266.
7 SAN EFRÉN DE NISIBE,
Comentario al Diatessaron, 15, 210 apud ODEN, Thomas C. e HALL, Cristopher A.
La Biblia comentada por los Padres de la Iglesia – Nuevo Testamento 2 San
Marcos. Madrid: Ciudad Nueva,
2000, p. 199.
8 DUQUESNE. Op. cit., p. 267.
9 FILLION. Op. cit., p. 431.
10 MALDONADO, SJ, Pe. Juan de.
Comentarios a los cuatro evangelios – I Evangelio de San Mateo. Madrid: BAC, 1950, p. 692.
11 LAGRANGE, OP. Op. cit., p. 266.
12 DUQUESNE. Op. cit., p. 273.
13 FILLION. Op. cit., p. 431.
14 CLEMENTE DE ALEJANDRÍA. Quis
dives salvetur? c. XXVII.
15 CESÁREO DE ARLES, Sermo 153,
156 apud ODEN e HALL. Op. cit., p. 202.
16 MALDONADO, SJ. Op. cit., p.
695.
17 LAGRANGE, OP. Op. cit., p.
271.
18 Cf. MALDONADO, SJ. Op. cit., p. 695.
19 LAGRANGE, OP. Op. cit., p. 271.
20 MALDONADO, SJ. Op. cit., p. 695.
21 FILLION. Op. cit., p. 433.
22 DIDON, OP. Op. cit., p. 385.
23 FERNÁNDEZ TRUYOLS, SJ,
Andrés. Vida de Nuestro Señor Jesucristo. Madrid: BAC, 1954, p. 482.
24 DUQUESNE. Op. cit., p. 270-271.
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