Comentários ao Evangelho
2º Domingo da Páscoa – Ano C - Jo 20, 19-31
19Ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana, estando fechadas, por
medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam, Jesus entrou
e, pondo-se no meio deles, disse: “A paz esteja convosco”.
20Depois dessas palavras, mostrou-lhes as mãos e o lado. Então os
discípulos se alegraram por verem o Senhor.
21Novamente, Jesus disse: “A paz esteja convosco. Como o Pai me enviou,
também eu vos envio”.
22E, depois de ter dito isso, soprou sobre eles e disse: “Recebei o
Espírito Santo. 23A quem perdoardes os pecados, eles lhes serão perdoados; a
quem os não perdoardes, eles lhes serão retidos”.
24Tomé, chamado Dídimo, que era um dos doze, não estava com eles quando
Jesus veio. 25Os outros discípulos contaram-lhe depois: “Vimos o Senhor!”
Mas Tomé disse-lhes: “Se eu não vir a marca dos pregos em suas mãos, se
eu não puser o dedo nas marcas dos pregos e não puser a mão no seu lado, não
acreditarei”.
26Oito dias depois, encontravam-se os discípulos novamente reunidos em
casa, e Tomé estava com eles. Estando fechadas as portas, Jesus entrou, pôs-se
no meio deles e disse: “A paz esteja convosco”.
27Depois disse a Tomé: “Põe o teu dedo aqui e olha as minhas mãos.
Estende a tua mão e coloca-a no meu lado. E não sejas incrédulo, mas fiel”.
28Tomé respondeu: “Meu Senhor e meu Deus!”
29Jesus lhe disse: “Acreditaste, porque me viste? Bem-aventurados os que
creram sem terem visto!”
30Jesus realizou muitos outros sinais diante dos discípulos, que não
estão escritos neste livro. 31Mas estes foram escritos para que acrediteis que
Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais a vida em seu
nome. (Jo 20, 19-31).
É para nosso benefício
que os Apóstolos viram Jesus ressurrecto, creram na Ressurreição e dela deram
testemunho: para que nós, acreditando, tenhamos a vida eterna.
I - "Estando
fechadas as portas"
19Ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana, estando fechadas, por
medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam, Jesus entrou
e, pondo-se no meio deles, disse: “A paz esteja convosco”.
Devido a motivos vários,
a redação dos Evangelhos, embora de uma precisão insuperável, é sintética. Por
um sábio sopro do Espírito Santo, seus autores escolhem não só os termos ideais,
como também os aspectos essenciais e mais importantes dos episódios narrados
para transmitir aos fiéis a mensagem inspirada. Vemos, por exemplo, como é
expressiva esta sucinta afirmação: "Estando fechadas as portas".
Medo e insegurança dos Apóstolos
Muitos são os
comentaristas que ressaltam esse particular. Beda mostra que o motivo da
dispersão dos Apóstolos, por ocasião da Paixão - o temor dos judeus -, é o
mesmo que os mantém depois reunidos e com as portas fechadas. Segundo
Crisóstomo, o medo entre eles deveria ter aumentado de intensidade, ao cair da
tarde. E, realmente, é provável que a insegurança tenha pervadido as almas de
todos a partir da comunicação de Madalena e da constatação de Pedro e João, ou
seja, de que o Corpo do Divino Mestre desaparecera do sepulcro. Na certa o
Sinédrio tomaria medidas de represálias ao ser informado do acontecimento pelos
guardas.
O medo é quase sempre um
fator de aglutinação, e às vezes de dispersão. Esta última já se havia
verificado. Entretanto, perseguidos pela dor de consciência e pela perda
completa de rumo na qual haviam mergulhado, só mesm o reunidos poderiam eles
obter uma certa sustentação moral. O instinto de sociabilidade exigia essa
junção de todos diante da grande perplexidade causada pelos trágicos acontecimentos
daqueles dias.
Esses são os aspectos de
ordem natural e psicológica que explicam aquela situação. Entretanto, de maior
relevância são os desígnios de Deus.
Demonstração irrefutável da Ressurreição
O medo que, por uma
eficaz ação da graça, não encontrara acolhida no coração de Maria Madalena nem
nos dos Discípulos de Emaús, penetra no âmago dos Apóstolos, mesclando-se com
as angústias de tantos sofrimentos acumulados. Qual a razão disso? Se para uns
a Providência reservava provas de muito consolo e carinho, para outros estava
destinada a demonstração de uma irrefutável e autêntica ressurreição. Portas
trancadas e intransponíveis tornavam evidentes as qualidades do glorioso estado
do corpo do Salvador. Dessa opinião compartilham autores de peso, como, por
exemplo, Teófilo, ao fazer notar como Jesus penetrou naquele recinto fortemente
trancado usando a mesma capacidade pela qual havia saído do sepulcro. Santo
Agostinho faz uma aproximação entre o nascer do Divino Infante, que deixou o
claustro materno de Maria Santíssima sem tocar em sua Virgindade, e esta
penetração no ambiente dos Apóstolos, afirmando que nada poderia impedir a
passagem de um corpo habitado pela Divindade.
Características do corpo glorioso
De fato, a Teologia nos
ensina que a glória do corpo encontra sua causa na glória da alma, pois, sendo
o homem uma criatura mista, é indispensável que tanto o corpo quanto a alma
sejam objeto da glorificação celeste; portanto, é essencial que quando a alma é
glorificada, também o corpo o seja. Essa é a doutrina claramente expressa por
São Tomás de Aquino:
"Vemos que da alma
quatro coisas provêm ao corpo, e tanto mais perfeitamente quanto mais vigorosa
é a alma. Primeiramente lhe dá o ser; portanto, quando a alma alcançar o sumo
da perfeição, dar-lhe-á um ser espiritual. Segunda, preserva-o da corrupção
(...); logo, quando ela for perfeitíssima, conservará o corpo inteiramente
impassível. Terceira, lhe dá formosura e esplendor (...); e quando chegar à suma
perfeição, tornará o corpo luminoso e refulgente. Quarta, lhe dá movimento, e
tanto mais ligeiro será o corpo quanto mais potente for o vigor da alma sobre
ele. Por isso, quando a alma já estiver no extremo de sua perfeição, dará ao
corpo agilidade" (1).
Eis aí o resultado dessa
entranhada união, na qual a alma é a forma do corpo. Neste estado de prova em
que nos encontramos, quase sempre o corpo é um lastro e um obstáculo para os
vôos da alma, tal qual nos diz o Evangelho: "O espírito está pronto, mas a
carne é fraca" (Mt 26, 41). Mas, na bem-aventurança eterna, o corpo
espiritualizado estará plenamente harmonizado com a alma, a qual terá um
domínio absoluto sobre todos os movimentos corpóreos, e nisso consistirá sua
agilidade. Os próprios sentidos físicos, dentro de sua natureza, poderão ser
usados pela alma conforme queira deles dispor. Por isso, após nossa
ressurreição, poderemos passear pelos astros e estrelas sem auxílio de nenhuma
nave espacial; e, no extremo oposto, ser-nos-á facílimo contemplar as moléculas
ou os átomos constitutivos de uma bela pedra preciosa.
Deixando de lado as
outras características dos corpos gloriosos - aliás,também elas
extraordinariamente maravilhosas -, para nos encantar bastaria considerarmos
esta: a sutileza, utilizada pelo Salvador, ao entrar no recinto do Cenáculo
através das "portas fechadas". Explica- nos São Tomás que os corpos
gloriosos terão "cada vez e sempre que o queiram" a faculdade de
passar, ou não, através de outros corpos (2). Cita a este propósito precisamente
a saída de Jesus ressurrecto do Santo Sepulcro, como também sua entrada no
Cenáculo com portas fechadas, que ora analisamos, além de seu Nascimento (3).
Jesus os cumprimenta desejando-lhes a paz
Os Apóstolos estavam
mergulhados numa dolorosa orfandade e Jesus tinha pena do grande sofrimento que
lhes ocasionava aquela circunstância, por isso não deixa o dia terminar sem Se
mostrar mais uma vez aos homens. Anteriormente fizera-Se ver pelas santas
mulheres, por Pedro e pelos discípulos de Emaús. Dessa vez, à noite,
apresenta-Se aos Apóstolos reunidos, "estando fechadas as portas", e
assim torna patente sua miraculosa ressurreição.
Jesus aproveitou a
chegada da noite, pois era o momento em que todos estariam juntos, e colocou-Se
no meio deles, para assim poder ser mais bem analisado por todos.
Segundo um belo
comentário de São Gregório Nazianzeno, Jesus os cumprimenta desejando-lhes a
paz - o que, aliás, era comum entre os judeus - não só para ser por eles
reconhecido imediatamente como também para servir-nos de exemplo. Só mesmo
àqueles que fecham as portas da alma às deletérias influências do mundo, Cristo
aparece oferecendo-lhes os consolos da verdadeira paz.
II - Jesus envia os apóstolos
20Depois dessas palavras, mostrou-lhes as mãos e o lado. Então os
discípulos se alegraram por verem o Senhor.
Tudo leva a crer que
estavam dez Apóstolos no Cenáculo, e, como anteriormente comentávamos, um forte
medo dominava a todos. Embora João omita a afirmação de Lucas:
"Acreditavam estar vendo um espírito", a pergunta que Jesus lhes faz
mostra o estado de espírito em que se encontravam: "Por que vos
perturbais? (24, 37-38). Compreende-se o temor de todos, vendo o Senhor entrar
quando estavam bem fechadas as portas e janelas, pois não conheciam ainda o
ensino teológico a respeito das características dos corpos gloriosos, e nem
sequer lhes cruzava a mente uma consideração que seria formulada por Santo
Agostinho nos seguintes termos: "As portas fechadas não podiam impedir a
passagem a um corpo no qual habitava a Divindade; assim pôde penetrar as portas
Aquele que, ao nascer, deixou imaculada sua Mãe" (4).
"Mostrou-lhes as mãos e o lado"
Essa é a razão pela qual
Ele chama a atenção dos Apóstolos para suas chagas, ou seja, para tornar
patente tratar-se de Quem foi crucificado, morreu e ressuscitou. Os autores são
unânimes a propósito dessa observação, como, por exemplo, Santo Agostinho:
"Os cravos haviam transpassado as mãos, a lança havia aberto o costado, e
as feridas foram conservadas para curar o coração dos que duvidavam" (5).
Três questões emergem
deste versículo:
1) Como foi possível
aos Apóstolos contemplar a glória de Jesus ressurrecto, sendo que, no Tabor,
três deles não haviam suportado vê-Lo em sua transfiguração?
A isso responde Santo
Agostinho: "É de crer-se que a claridade com a qual, como o sol,
resplandecerão os justos em sua ressurreição, foi velada no corpo de Cristo
ressurrecto aos olhos dos discípulos, porque a debilidade do olhar humano não a
teria podido suportar, e era necessário que eles O reconhecessem e
ouvissem" (6).
2) Sendo as
cicatrizes um defeito produzido por ferimentos, como puderam se conservar no
Sagrado Corpo do Senhor?
Das mais variadas formas
se expressam os autores a esse respeito, mas são concordes em observar que se
trata de cicatrizes de triunfo e, portanto, gloriosas e não defectivas. No Céu,
todos os mártires trarão à mostra suas cicatrizes como símbolo triunfante de
seu testemunho, tal qual na terra o fazem os militares vencedores em suas
batalhas.
3) Os Apóstolos
apenas viram as chagas, ou também as tocaram? Tomé terá sido o único a apalpar
as cicatrizes do Senhor?
O Evangelista João
afirma apenas que Jesus mostrou suas chagas. Lucas vai mais longe:
"Apalpai e vede, porque um espírito não tem carne nem osso" (24, 39).
Entretanto, o dito de
São João em sua primeira Epístola: "O que vimos com os nossos olhos, o que
contemplamos, o que tocamos com as nossas mãos relativamente ao Verbo da
Vida" (1, 1), e a condição posta por São Tomé para dar sua adesão de fé: "Se
não vir nas suas mãos ... se não meter a minha mão" (v. 25), levam os
autores à conclusão de que, de fato, não só Tomé, mas também os outros tocaram
nas Santas Chagas de Jesus.
Qual não deve ter sido a
consolação dos Apóstolos ao tocarem no Sagrado Corpo do Salvador? Nós hoje
temos a graça, não de tocá-Lo, mas, muito mais, de recebê-Lo em comunhão.
Oh! sacrossantas chagas,
manancial de toda santidade, quantos dons receberam os Apóstolos ao tocá-las!
Sem embargo, o fato de
Jesus as haver mostrado nessa ocasião não significa que Ele deva sempre
ostentar os sinais de sua Paixão. Apareceu como um peregrino aos discípulos de
Emaús, e, para a fé robusta de Madalena, não só Se apresentou sem as chagas,
como não lhe permitiu que O tocasse, para não diminuir os seus méritos. Aos
Apóstolos, convida-os a apalparem-nas por razões didáticas. A forma de
apresentar-Se depende de sua vontade e conveniência.
A alegria que sentiram
eles, nessa ocasião, era o cumprimento da promessa do próprio Salvador:
"Outra vez vos verei e alegrar-se-á vosso coração" (Jo 16, 22).
Jesus lhes dá o Espírito Santo
21Novamente, Jesus disse: “A paz esteja convosco. Como o Pai me enviou,
também eu vos envio”.
Jesus deseja-lhes
novamente a paz. Ele os quer serenos e confiantes para receberem a grande
missão que lhes outorgará. Com a mesma autoridade com a qual o Pai enviou o
Filho, este envia seus discípulos. Essa autoridade reside n'Ele enquanto Homem:
"Foi-me dado todo o poder no céu e na terra" (Mt 28, 18); e enquanto
Deus, Ele a possui por natureza. Os Apóstolos são "enviados",
portanto, possuem um poder por delegação.
22E, depois de ter dito isso, soprou sobre eles e disse: “Recebei o
Espírito Santo.
A exegese se inclina a interpretar
esta passagem no sentido de que Cristo não soprou sobre cada um dos Apóstolos,
mas o fez somente de modo genérico, o que era suficiente para todos, incluindo
o próprio Tomé, ausente naquele momento.
Como entender a anterior
afirmação de Jesus: "A vós convém que Eu vá, porque, se não for, o
Paráclito não virá a vós; mas, se for, Eu vo-Lo enviarei" (Jo 16, 7)?
É preciso distinguir
entre "enviar" e "dar". No presente versículo, Jesus
"dá" aos Apóstolos o Espírito Santo com o único objetivo - conforme
veremos a seguir - de conferir-lhes o poder de perdoar os pecados, um dos
vários dons do mesmo Espírito. Em Pentecostes, sim, foi "enviado"
sobre Maria e as demais pessoas reunidas no Cenáculo, o Espírito Santo, com
seus dons.
A esse propósito diz Santo
Agostinho: "O sopro corporal da boca [de Cristo] não foi a substância do
Espírito Santo, mas uma conveniente demonstração de que o Espírito Santo não
procede somente do Pai, mas também do Filho" (7).
E São Gregório Magno
acrescenta: "Por que razão Ele O dá a seus discípulos, primeiro quando
ainda está na terra, para depois o enviar do Céu? Porque são dois os preceitos
da caridade: o do amor a Deus e o do amor ao próximo. Na terra foi dado o
Espírito de amor ao próximo, e do Céu, o Espírito de amor a Deus; (...) porque
o amor ao próximo nos ensina como podemos chegar ao amor a Deus" (8).
O Sacramento da Reconciliação
23A quem perdoardes os pecados, eles lhes serão perdoados; a quem os não
perdoardes, eles lhes serão retidos”.
Quando se realiza uma
ordenação sacerdotal, o bispo ordenante profere as palavras desses dois
versículos (22 e 23), pelas quais os sacerdotes são constituídos ministros do
Sacramento da Penitência e juízes dos pecados, com a faculdade de retê-los ou
de perdoá-los. Ministério de indizível elevação, mas que exige luzes,
prudência, pureza de coração e, sobretudo, zelo pelas almas. "Noblesse
oblige!", dizem os franceses. E isso a tal ponto que São João Crisóstomo
chega a opinar: "Um sacerdote que levasse uma vida bem ordenada, mas não
cuidasse com diligência da dos outros, seria condenado com os réprobos"
(9).
Por outro lado, esse
ministério pervade de consolação o coração dos fiéis, pois, apesar de
tornar-lhes necessária a confissão, confere-lhes a certeza do perdão. E mesmo
se retiver algum pecado, o sacerdote assim procederá para melhor proveito do
penitente, quando, de futuro, este se vir perdoado. Nós hoje tomamos com
naturalidade essa incomensurável dádiva de termos à disposição nossa o
Sacramento da Reconciliação, mas é ele tão extraordinário que nossa limitada
inteligência não alcança circundá- lo inteiramente.
III - O apóstolo incrédulo
24Tomé, chamado Dídimo, que era um dos doze, não estava com eles quando
Jesus veio. 25Os outros discípulos contaram-lhe depois: “Vimos o Senhor!”
Embora não haja uma
expressa indicação nos Evangelhos, deduz-se pelos fatos narrados que os
Apóstolos se dispersaram durante a Paixão. Ademais, parece que não viviam
juntos em Jerusalém até a ordem dada pelo Senhor por ocasião da Ascensão (10).
A terrível acusação de violadores do Santo Sepulcro - uma das mais criminosas
ações, punida com pesadas penas -, lançada pelo Sinédrio contra eles, levou-os
a buscar formas de segurança pessoal, em extremo cautelosas. Por essas razões,
reuniam- se somente em ocasiões esporádicas. Em concreto, com São Tomé
aconteceu que não procurou os outros e nem soube das notícias sobre as diversas
aparições, por puro temor das perseguições. A isso se deve sua ausência durante
a primeira aparição de Jesus aos Apóstolos.
Nenhum motivo válido
tinha Tomé para não crer em tão numerosas e fidedignas testemunhas. Percebe-se
nele uma imaginação fértil acompanhada de robusta obstinação, dificultando- lhe
qualquer conclusão, por mais óbvia que fosse. Além disso é preciso notar sua
presunção, pois coloca como condição para sua fé: "Se não vir ... se não
meter o meu dedo ... e não meter a minha mão". É uma verdadeira
temeridade. Tomé determina quais devem ser os caminhos de Deus, e, se não forem
observadas as condições por ele impostas, não crerá. O Senhor deverá render-se
à sua vontade.
No trato com Tomé, fulgura a extrema bondade de Jesus
26Oito dias depois, encontravam-se os discípulos novamente reunidos em
casa, e Tomé estava com eles. Estando fechadas as portas, Jesus entrou, pôs-se
no meio deles e disse: “A paz esteja convosco”.
Na falta de relatos,
podemos imaginar o quanto deveriam ter sido fervilhantes os comentários e
trocas de impressões, e variadas as hipóteses, durante a semana que mediou
entre uma e outra aparição. Tomé, ao encontrar- se com estes ou aqueles,
ouviria calado as manifestações de incontida euforia de seus irmãos de vocação.
Seu fundo de alma era bom; não havia malícia em sua dúvida, mas pura fraqueza.
Esses oito dias de ansiosa espera foram, por divina didática, certamente
benfazejos a todos.
Era necessário que eles
fossem encontrados reunidos em plenário na primeira ocasião, e isso só seria
possível na semana seguinte. Alguns autores levantam a hipótese de querer Jesus
ir iniciando a substituição do sábado judaico pelo domingo católico. Outros
aplicam a Tomé a sentença de Paulo: "Os pecadores públicos devem ser
publicamente admoestados" (1 Tm 5, 20). E, portanto, era bom que, quem
diante de todos havia faltado com a fé, fosse corrigido diante das testemunhas
de sua falta.
Tenham ou não razão, o
certo é que Jesus, repetindo todo o seu proceder tal como na primeira aparição,
usou de extrema bondade para com Tomé. Assim manifestava o seu inteiro perdão
ao Apóstolo incrédulo.
Não nos é difícil
imaginar a surpresa de São Tomé ao reencontrar o Senhor. Essa será a situação
pela qual passaremos todos nós ao deixarmos os umbrais do tempo e penetrarmos
nas infinitudes da eternidade...
Qual o grau de fé que
nos acompanhará nessa ocasião?
27Depois disse a Tomé: “Põe o teu dedo aqui e olha as minhas mãos.
Estende a tua mão e coloca-a no meu lado. E não sejas incrédulo, mas fiel”.
Jesus não espera a
iniciativa de Tomé, e a ele se dirige, repetindo as mesmas palavras
condicionais do discípulo incrédulo. E aqui vemos o quanto é melhor ser amado
do que amar: nesse amor que desce do Sagrado Coração, nossas faltas são
consumidas e somos afetuosamente corrigidos. Neste versículo podese notar mais
uma demonstração da divindade de Jesus, o qual, sem ter presenciado as
afirmações de incredulidade de Tomé, conhecia-as perfeitamente.
Discutem os exegetas se
Tomé tocou nas santas chagas ou se lhe bastou rever o Salvador. Como também, se
lhe seria possível, ou não, apalpar um corpo glorioso. Prevalece a opinião da
maioria, segundo a qual Jesus, em sua bondade infinita, fez com que suas
adoráveis cicatrizes fossem tocadas por aquele Apóstolo sujeito à falta de fé.
Se a orla de seu manto, e até sua sombra, curavam as mais terríveis
enfermidades, o que dizer de seu Corpo?
E qual foi a reação de
Tomé?
28Tomé respondeu: “Meu Senhor e meu Deus!”
Entre os Padres da
Igreja, Teófilo é um dos que melhor comentam esta passagem: "Aquele que
antes se havia mostrado infiel converteu-se no melhor teólogo, depois de tocar
o lado do Senhor, pois dissertou sobre as duas naturezas de Cristo em uma só Pessoa;
porque dizendo ‘Senhor meu', confessou a natureza humana, e dizendo ‘meu Deus',
confessou a divina, e um só Deus e Senhor" (11).
Outros autores ressaltam
o poder da graça sobre certas almas, transformando- as de um extremo de mal a
um oposto pólo de virtude, e fazem uma aproximação entre a conversão de Paulo e
a boa atitude final de Tomé.
Testemunhas preparadas para, no futuro, beneficiar-nos
29Jesus lhe disse: “Acreditaste, porque me viste? Bem-aventurados os que
creram sem terem visto!”
Com muita clareza,
objetividade e discernimento, Frei Manuel de Tuya OP (de quem guardo saudosas
lembranças) explica-nos esse versículo. Ressalta ele que a intenção de Jesus
não é recriminar "os motivos racionais da fé", nem as pessoas às
quais havia Se mostrado. Era, sim, bendizer "os fiéis futuros que
aceitassem, por tradição contínua, a fé daqueles que Deus ‘escolhera' para
serem ‘testemunhas oficiais' de sua ressurreição e para transmiti-la a outros.
É o que Cristo pediu na ‘Oração Sacerdotal': ‘Não rogo só por estes [os
Apóstolos], mas por todos os que por sua palavra hão de crer em Mim' (Jo 17,
20)" (12).
30Jesus realizou muitos outros sinais diante dos discípulos, que não
estão escritos neste livro. 31Mas estes foram escritos para que acrediteis que
Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais a vida em seu
nome.
Em face do escândalo da
Crucifixão, os Apóstolos tinham necessidade desse auxílio. Depois de
comprovarem os maiores milagres efetuados pelo Divino Mestre, viram-No preso,
flagelado, preterido a um Barrabás, levantado no Madeiro entre dois criminosos
e morto na rejeição geral. Aqueles eleitos pelo Pai para serem os arautos não
só da Paixão, mas também da Ressurreição, necessitavam ver o Messias em seu
Sagrado Corpo glorificado. A incredulidade deles, culposa ou não, deve ser
tomada como extremamente vantajosa para nós: "Para que acrediteis".
Em sua sabedoria eterna e infinita, a Providência Divina concebeu essas
insuperáveis testemunhas, esses primeiríssimos arautos do Evangelho. Para nós
eles viram, para nós eles foram provados, para nós eles creram, para nós eles
escreveram. E agora chegou a nossa vez de dar o nosso testemunho e, se não
acreditarmos, não teremos escusas.
Estamos destinados à
bem-aventurança de crer sem ter visto, para, assim, ingressarmos na vida
eterna.
* * *
Neste mundo ateu,
relativista e pervadido de egoísmo, voltemos nosso olhar Àquela que jamais vacilou
na fé, ou em qualquer outra virtude, e imploremos sua poderosa intercessão para
obtermos de seu Filho ressurrecto graças eficazes e superabundantes para
praticarmos em grau heroico as virtudes teologais e cardeais. Ou seja, para
alcançarmos uma plena santidade de perfil mariano.
1) São
Tomás de Aquino, Super Epistolas S. Pauli lectura, t. 1: Super primam Epistolam
ad Corinthios lectura, cap. 15, l. 6.
2) São
Tomás de Aquino, Suma Teológica, Suppl, q. 83, a. 2, ad 4.
3) Idem, ad
1.
4) Apud São
Tomás de Aquino, Catena Aurea, in Io.
5) Ibidem.
6) Ibidem.
7) Ibidem.
8) Ibidem.
9) Apud São
Tomás de Aquino, Catena Aurea.
10) Cf. Lc
24, 49 e At 1, 4.
11) Apud
São Tomás de Aquino, Catena Aurea.
12) Bíblia
Comentada, BAC, Madrid, 1964, v. II, p. 1316.
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