Comentários ao Evangelho da Festa da Transfiguração do Senhor -
Ano C - 6 de Agosto
Naquele tempo, 28b Jesus levou consigo Pedro, João e Tiago, e subiu à
montanha para rezar. 29 Enquanto rezava, seu rosto mudou de aparência e sua
roupa ficou muito branca e brilhante.
30 Eis que dois homens estavam conversando com Jesus: eram Moisés e
Elias. 31 Eles apareceram revestidos de glória e conversavam sobre a morte, que
Jesus iria sofrer em Jerusalém. 32 Pedro e os companheiros estavam com muito
sono. Ao despertarem, viram a glória de Jesus e os dois homens que estavam com
ele.
33 E quando estes homens se iam afastando, Pedro disse a Jesus: “Mestre,
é bom estarmos aqui. Vamos fazer três tendas: uma para ti, outra para Moisés e
outra para Elias”.
Pedro não sabia o que estava dizendo. 34 Ele estava ainda falando, quando
apareceu uma nuvem que os cobriu com sua sombra. Os discípulos ficaram com medo
ao entrarem dentro da nuvem. 35 Da nuvem, porém, saiu uma voz que dizia: “Este é
o meu Filho, o Escolhido. Escutai o que ele diz!”
36 Enquanto a voz ressoava, Jesus encontrou-se sozinho. Os discípulos
ficaram calados e naqueles dias não contaram a ninguém nada do que tinham
visto.
Como será a glória do Céu?
Fomos criados
para a bem-aventurança, mas como será ela? Na Transfiguração, o Divino Mestre
levanta o véu da eternidade que nos espera se Lhe formos fiéis até o fim.
I
- A glória do Senhor manifestou-se
Se percorrermos as páginas dos Santos Evangelhos, veremos
que não consta outra Transfiguração de Jesus além daquela do Tabor. Uma vez
ressuscitado, é verdade, apareceu aos Apóstolos no Cenáculo (cf. Mc 16, 14-18;
Lc 24, 36-49; Jo 20, 19-29), a Santa Maria Madalena (cf. Mc 16, 9; Jo 20, 1-18)
e às Santas Mulheres (cf. Mt 8, 9-10), mas nada indica ter manifestado então a
refulgência descrita nessa grandiosa cena que agora contemplamos. Ali, Ele
revelou um diminuto fulgor de sua glória, apesar de ocultar a plenitude do
resplendor que Lhe é próprio. Que interpretação dar a este fato tão sublime?
Que relação poderá ter conosco, dois mil anos depois? Embora tenhamos comentado
a Transfiguração — segundo o Evangelho correspondente aos Anos A e B —, esta
passagem presta-se a múltiplos aprofundamentos, com úteis implicações para
nossa vida espiritual.
À
primeira vista, parece não ter ela um vínculo notável com a vocação do cristão,
a qual é recordada tão oportunamente pelo Concílio Vaticano II: “ainda que, na
Igreja, nem todos sigam pelo mesmo caminho, todos são, contudo, chamados à
santidade e a todos coube a mesma fé pela justiça de Deus (cf. II Pd 1, 1)”.1 A
perfeição não é exclusividade dos clérigos nem dos religiosos, devendo brilhar
também nos leigos, de maneira que o espírito católico impregne a realidade
temporal. E para ser santo não é necessário fazer milagres, nem possuir dons
extraordinários ou transfigurar-se, como o fez Jesus. Já no Antigo Testamento,
Deus conclamava Israel à santidade: “O Senhor disse a Moisés: ‘Dirás a toda a
assembleia de Israel o seguinte: sede santos, porque Eu, o Senhor, vosso Deus,
sou Santo’” (Lv 19, 1-2). Por conseguinte, não é fácil estabelecer uma relação
próxima entre a vocação genérica dos filhos de Deus à santidade e a
Transfiguração de Nosso Senhor, que é um fenômeno miraculoso. Analisemos melhor
a questão.
Três testemunhas escolhidas
Naquele tempo, 28b Jesus levou consigo Pedro, João e Tiago, e subiu à
montanha para rezar.
Em que momento se deu a Transfiguração? Seis dias depois,
segundo São Marcos, e uns oito, segundo São Lucas, do ato tão marcante em que
São Pedro declara que Jesus é o Cristo, o Filho do Deus vivo (cf. Mt 16, 13-17;
Mc 8, 27-30; Lc 9, 18-21), e o Divino Mestre lhe responde: “Tu és Pedro, e
sobre esta pedra edificarei a minha Igreja; as portas do inferno não
prevalecerão contra ela” (Mt 16, 18). Logo a seguir, entretanto, Jesus anunciou
os sofrimentos que O aguardavam em Jerusalém, ainda que o significado de suas
palavras não tivesse sido compreendido por seus seguidores.
Os
Apóstolos seguiam Nosso Senhor havia já bastante tempo, mas, infelizmente,
tinham formado uma dupla visão a seu respeito. Uma era a humana, porque, tendo
assumido nossa natureza, sofria as contingências às quais está sujeita. Ele
tinha fome e sede; Se cansava, como se pode ver, por exemplo, no diálogo com a
samaritana junto ao poço de Jacó (cf. Jo 4, 1-26), quando Ele lhe pede água,
pois os Apóstolos tinham ido providenciar comida; ou então quando dorme na
barca (cf. Mt 8, 23-24; Mc 4, 37-38; Lc 8, 22-23). Ao lado dessas aparências
comuns havia fatos que denotavam algo de superior n’Ele, como o passar uma
noite inteira em oração sem, por tal razão, diminuir sua atividade no dia
seguinte (cf. Lc 6, 12-13); curar doentes e expulsar demônios com toda
facilidade, por meio de uma simples ordem, ou mesmo ensinar uma doutrina nova e
alheia a qualquer escola então existente, sem ter estudos. Ambos os aspectos
davam uma ideia de Nosso Senhor difícil de abarcar num só golpe de vista...
Havia facetas humanas e divinas que iam se alternando n’Ele, e todos, Apóstolos
e discípulos, viam que ali estava o Salvador. Não obstante, devido à errada
concepção messiânica que tinham, vê-Lo crucificado seria um desmentido tremendo
de tudo quanto esperavam, um verdadeiro abalo em suas convicções, o que lhes
faria perder psicologicamente o rumo. Seus mais ardentes anseios se
confrontariam com o doloroso desenlace da Paixão, e ante a Morte de Cristo
surgiria a pergunta crucial: Ele era ou não o Messias prometido?
Zeloso
pastor de seu pequeno rebanho, empenhava-Se Jesus em prepará-los para
esses acontecimentos quase iminentes. Sabia Ele o quanto
precisavam de um reforço, de um estímulo, para se manterem firmes na fé.
Todavia, não convinha ser dado a todos por igual, como afirma São Tomás de
Villanueva, ao explicar o motivo de apenas três Apóstolos terem assistido à
prodigiosa cena da Transfiguração: “A fim de que o testemunho do que foi visto
fosse melhor e mais concludente para os outros, foi necessário ser presenciado
por poucos, para que a evidência do fato e a grande quantidade de
testemunhas não fizessem perder o mérito da fé”.2 Os três deveriam,
depois, sustentar os outros no momento da provação, diminuindo a sensação de
insegurança que tinham diante da aparente derrota do Messias. Assim, todos
continuariam crendo na divindade de Jesus, apoiados nas palavras dos que haviam
presenciado a Transfiguração.
Aqueles eleitos haveriam de presenciar muitas das
humilhações de Nosso Senhor Jesus Cristo, durante sua Paixão e agonia no Horto
das Oliveiras. Segundo o modo de agir habitual da Providência, Ela pede mais
sacrifícios a quem é mais favorecido pela graça, a quem é mais amado. E se
alguém tem o privilégio de contemplar maravilhas sobrenaturais, será escolhido
muito possivelmente, para ser provado e demonstrar no amor à cruz a
autenticidade de seu amor a Deus. Quando a alma é submetida a tribulações e o
fardo parece excessivamente pesado, deve lembrar-se que a cruz é o sinal dos
predestinados e, se o momento é de prova, há de chegar a hora da consolação.
Deus tudo faz com equilíbrio e ampara as almas na medida de suas necessidades.
Grande deve ter sido a impressão no espírito dessas três
testemunhas, a ponto de estar narrado o fato nos três Evangelhos Sinópticos,
além de São Pedro haver registrado em sua segunda epístola a referência à voz
do Pai: “Esta mesma voz que vinha do Céu nós a ouvimos, quando estávamos com
Ele no monte santo” (II Pd 1, 18). São João também consignou em seu Evangelho a
visão esplendorosa da glória do Filho de Deus, referindo-se a este episódio,
provavelmente, com estas palavras: “e vimos sua glória, a glória que o Filho
único recebe do seu Pai, cheio de graça e de verdade” (Jo 1, 14).
A glória manifestou-se na luz refulgente
29 Enquanto rezava, seu rosto mudou de aparência e sua roupa ficou muito
branca e brilhante.
Cristo quis desvelar sua glória “enquanto rezava”. Lição
para nós, que tantas vezes damos à oração pouca importância, para dar a
primazia às ocup concretas do dia a dia. A o ção torna a nossa alma ce lestial
e, por isso, é mister nunca deixar de rezar.
Como entender a fulgurância de Jesus manifestada nesta
ocasião? Ele quis mostrar
uma centelha do que assistiremos no Céu. Com efeito, era impossível a
Pedro João e Tiago contemplar a divindade de Nosso Senhor com o sentido da
visão, por ser uma realidade fora do alcance da natureza humana, nesta Terra.
Só nos será dado vê-la no Céu, com o olhar da alma. Mas, no momento da
Transfiguração, eles alcançaram aquilo que o olho humano capta, isto é, a
refulgência exterior do Corpo sagrado do Senhor. A glória do Corpo era apenas
um reflexo da glória da Alma, muitíssimo mais esplendorosa.
O auge da Antiga Lei curva-se ante o Evangelho
30 Eis que dois homens estavam conversando com Jesus: eram Moisés e
Elias. 31 Eles apareceram revestidos de glória e conversavam sobre a morte que
Jesus iria sofrer em Jerusalém.
Moisés era o ponto
máximo da história verdadeiramente grandiosa do povo hebreu, marcada por
figuras ímpares como Abraão, Isaac, Jacó, José e tantos outros. A vida desse
homem providencial é pontilhada de acontecimentos estupendos. Talvez no Antigo
Testamento não tenha havido alguém semelhante a ele, não só pelo porte de sua
vocação, como também por sua intimidade com Deus, a ponto de afirmar o Autor
Sagrado: “O Senhor se entretinha com Moisés face a face, como um homem fala com
o seu amigo” (Ex 33, 11). Por sua vez, Elias, com uma existência também
caracterizada pela ação divina e pela grandeza, era considerado o auge do
profetismo, sendo objeto de especial veneração pelos israelitas piedosos, pois
sua missão não estava encerrada. Apesar de ter sido arrebatado num carro de
fogo de forma misteriosa, o profeta Malaquias profetizava seu regresso para
desempenhar ainda uma missão especial junto ao povo eleito (cf. Ml 3, 23-24).
Esse conjunto de circunstâncias fazia com que sua memória fosse muito viva
entre todos, quase como se Elias, até então, estivesse entre eles.
O fato de ambos aparecerem no Monte Tabor, decerto numa
atitude de submissão a Jesus, cujos pormenores não nos conta a singela narração
evangélica, confirmava de maneira ainda mais clara às três testemunhas aquilo
que a própria Transfiguração dizia por si: Jesus Cristo era realmente o Messias
prometido, o Filho de Deus.
Uma enorme graça pouco compreendida
32 Pedro e os companheiros estavam com muito sono. Ao despertarem, viram
a glória de Jesus e os dois homens que estavam com Ele. 33 E quando estes
homens se iam afastando, Pedro disse a Jesus: “Mestre, é bom estarmos aqui.
Vamos fazer rês tendas: uma para Ti, outra para Moisés e outra para Elias”.
Pedro não sabia o que estava dizendo.
A
reação de Pedro atesta como lhe ra difícil não expressar palavras tudo quanto
ntecia em torno dele. O que ele dissera tinha razão de ser, pois refletia o
desejo de perpetuar aquela situação de felicidade paradisíaca.
Eles estavam extasiados por maravilhas nunca vistas, mas ao
mesmo tempo tinham medo (cf. Mc 9, 5-6), pois conservavam certo apego a muitos
princípios que não correspondiam ao que se desenrolava diante de si. Todo o
desejo de um Messias temporal, que haveria de resolver os problemas de Israel,
ficava reduzido a uma bagatela diante de cena tão magnífica. Ao verem Jesus
resplandecente, não devem ter entendido bem o alcance da Transfiguração, porque
ainda não estavam preparados para assimilar tudo quanto Ele queria
ensinar-lhes. A noção verdadeira do Salvador ainda não se tinha constituído no
espírito deles e aquele episódio entrava em choque com os conceitos distorcidos
que predominavam na sua mente. Essa contradição não impedia que eles tivessem a
experiência do que é um corpo depois de se unir outra vez à sua própria alma.
“A fé” — nos diz São Paulo — “é a certeza daquilo que ainda se espera, a
demonstração de realidades que não se veem” (Hb 11, 1). E naquele instante eles
viam com antecipação uma realidade anunciada pela fé, ou seja, o esplendor do
que será um corpo glorioso. Tudo isso era acompanhado de graças, porque se
Nosso Senhor Se transfigurasse sem lhes proporcionar um auxílio sobrenatural
especialmente sensível, de que adiantaria? A mera razão não seria capaz de
sustentá-los, sendo necessárias essas graças com que Deus nos educa e conduz à
santidade.
Filhos adotivos, Deus nos ama como ao seu Filho único
34 Ele estava ainda falando, quando apareceu uma nuvem que os cobriu com
sua sombra. Os discípulos ficaram com medo ao entrarem dentro da nuvem. 35 Da
nuvem, porém, saiu uma voz que dizia: “Este é o meu Filho, o Escolhido. Escutai
o que Ele diz!”
Para
fixar ainda mais na sensibilidade dos Apóstolos o quanto era importante aquela
visão, deu-se o fenômeno narrado nestes versículos. Detenhamos nossa atenção na
palavra “Filho”.
Nosso
Senhor Jesus Cristo é a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, Deus Filho, o
único Filho gerado pelo Pai. Mas nós estamos incluídos nesta filiação, pois
somos filhos adotivos de Deus pelo Batismo e, portanto, somos irmãos de Jesus,
fazemos parte da família divina. A glória ali revelada era uma antecipação da
mesma glória que teremos na eternidade, se correspondermos a essa altíssima
condição. Para isso, devemos escutar “o que Ele diz”, porque “um só é o vosso
mestre, o Cristo” (Mt 23, 10).
Em “o Escolhido” o Pai colocou tudo o que podia, ou seja, o
infinito de Bondade, de Verdade e de Beleza. A nós também, que somos seus escolhidos,
Ele concede dons incalculáveis no Batismo e em todos os outros Sacramentos. Ele
infunde o bem existente em nós, por seu amor. Ser amado de Deus é um privilégio
extraordinário que devemos cuidar ciosamente, afastando-nos do pecado e, se
tivermos a infelicidade de perder o estado de graça, devemos procurar recuperar
logo a amizade de Deus, trilhando as vias do arrependimento, para nos
aproximarmos do tribunal misericordioso da Penitência.
As consolações não duram sempre
36 Enquanto a voz ressoava, Jesus encontrou-Se sozinho. Os discípulos
ficaram calados e naqueles dias não contaram a ninguém nada do que tinham
visto.
Toda
alegria neste mundo tem seu término. Concluída aquela grande experiência
mística, era preciso que os três Apóstolos descessem do monte para se dedicar à
evangelização, sempre cheia de obstáculos e vicissitudes. Quando cessa a graça
sensível resta-nos a graça cooperante que nunca falta, mas exige nossa
colaboração, tantas vezes deficiente. E começam os problemas, pois, na vida
cotidiana não temos a mesma clareza para entender as coisas sobrenaturais como
nos momentos de atuação da graça operante sobre nós.3 Como sublinham os
evangelistas, os Apóstolos tinham dificuldade de compreender o panorama da
Morte e Ressurreição descortinado por Nosso Senhor diante deles no Tabor
(cf. Mt
17, 2122; Lc 9, 44-45; Mc 9,
31-32); tendiam a interpretar aquilo que tinham presenciado com critérios
humanos —no relato de outro Evangelista eles se perguntavam entre si o que
significaria “ser ressuscitado dentre os mortos” (Mc 9, 10), como tivemos
oportunidade de comentar no texto do Ano B — e, pouco depois, pensavam em quem
seria o maior (cf. Lc 9, 46): já haviam se esquecido das consolações
da Transfiguração. E quando se depararam com a pavorosa tribulação da Paixão de
Cristo, vacilaram, fugiram.
Deste fato
podemos também extrair uma lição
para a nossa vida espiritual. Para não perder de vista os horizontes
sobrenaturais e não vir a cair em tentação, temos de viver em função da
visualização que as graças místicas nos oferecem. Elas são muito mais
frequentes do que se pensa na vida espiritual dos fiéis, e um valioso auxílio
para perseverar nas ocasiões de prova.
II - Um reflexo do Absoluto
A
Transfiguração nos dá ideia do reflexo de Absoluto preparado para quem for para
o Céu. Detenhamos a atenção neste destino último, a nossa ressurreição em
estado de glória, se pela misericórdia de Deus nos salvarmos.
Para
melhor se entender no que ela consiste, consideremos primeiro a situação do
Homem-Deus. Embora Ele Se apresentasse com um corpo padecente, este deveria ser
glorioso,4 a vários títulos: em virtude da união hipostática, isto é, da união
da natureza divina com a humana na Pessoa do Verbo; por sua Alma estar na visão
beatífica a partir da concepção; e, por fim, pelos méritos conquistados por sua
Morte na Cruz.
Nós, obviamente, não temos uma união hipostática com uma
Pessoa Divina, mas, guardadas as devidas proporções, somos chamados a ver a
Deus face a face no Céu, além de sermos beneficiados pelos méritos de nosso
Divino Redentor, transferidos para nós por sua infinita clemência. Temos,
então, como Jesus, os títulos que nos garantem a aquisição do corpo glorioso
após a ressurreição dos mortos. Por isso, a Transfiguração nos dá uma noção de
como seremos na eternidade, estimulando em nós a esperança, pois, como afirma o
Apóstolo, seremos na vida futura semelhantes a Cristo e com Ele triunfaremos,
“contanto que soframos com Ele, para que também com Ele sejamos glorificados”
(Rm 8, 17).
Assim, pelo testemunho dos três Apóstolos acerca deste
milagre nos foi indicado como será a felicidade do Céu, o que levou São Pedro a
querer fazer três tendas no Tabor para nunca mais sair dali. Ele sentia uma
alegria interior que lhe dava o desejo de não descer do monte, de esquecer as
lutas e trabalhos ainda à sua espera embaixo, tal como nos acontece quando
somos pervadidos de uma grande consolação sobrenatural... gostaríamos que
jamais terminasse!
A herança celeste
Ora,
como bem sabemos, o Céu é a herança dos filhos de Deus. A fim de compreender
mais a fundo esta verdade, façamos um contraste. Se consideramos como é o
inferno, constatamos nele a total ausência de amor: lá ninguém ama o próximo,
vive-se num delírio de ódio de uns contra os outros, seja em relação aos
Bem-aventurados do Céu, seja em relação a quem participa da mesma desgraça. É o
ódio perpétuo, a tudo e a todos. Pelo contrário, no Céu vive-se eternamente no
amor. E se o amor causa felicidade, será essa a essência do Céu, resultante da
visão beatífica, porque é uma necessidade da inteligência aderir à verdade e da
vontade amar o bem ao seu alcance. Tal aspiração das potências da alma será
saciada em sua plenitude na posse da visão do próprio Deus.
Uma figura pode ajudar-nos a alcançar melhor esta realidade:
ao ser-nos apresentada uma fruta extraordinariamente bela e saborosa, como a
manga quando está no ponto exato de maturação, exalando seu atraente perfume,
nossa inteligência percebe sua autenticidade, fazendo com que a vontade de
comê-la cresça. Se, ao prová-la, o sabor corresponder ao esperado, a vontade e
a inteligência estarão atendidas e nos sentiremos satisfeitos.
Poder-se-ia contestar tal demonstração com a existência do
mal, pois pareceria que o homem o ama, por exemplo, quando peca. Com efeito, ao
praticar o mal o homem se ilude, julgando enganosamente encontrar o bem no
pecado, pois, ele não é capaz de amar o mal pelo mal e de abraçar o erro pelo
erro.5 São as aparências falsas sugeridas pelos sentidos que obnubilam a
inteligência e enfraquecem a vontade.6 No roubo — para falar de alguns pecados
—, o ladrão quer obter para si um bem, a propriedade alheia, sem o incômodo e o
esforço de trabalhar com honestidade. Ele sabe que é uma violação da Lei de
Deus, um prejuízo grave para o lesado e para a ordem, mas opta com egoísmo por
sua própria vantagem. Para vencer a resistência de sua consciência, forjará
sofismas para justificar o ato ilícito e dar-lhe certos ares de bem, sem os quais
não conseguiria cometê-lo. Pela mesma razão, a heresia procura revestir-se das
roupagens da verdade para ter livre curso: se ostentasse o erro sem véus,
ninguém a aceitaria.
No Céu, onde não há fraude, encontra-se o Bem e a Verdade em
essência e, por isso, é impossível ao homem deixar de amar. Desta forma, a
partir do momento em que a alma vê a Deus, na visão beatífica, a inteligência e
a vontade aderem de imediato a Ele, de maneira absoluta e irrevogável.
Como será a felicidade no Céu
Todos nós fomos criados para Deus, e é por Ele que nossa
alma anseia. Pelo fato de O possuirmos no Céu vem essa plenitude de gozo. Por
que plenitude? Porque a intensidade e a duração da alegria dependem da
qualidade do objeto possuído. Se é pequena, com o tempo se gasta e nos cansamos
dele, como costuma acontecer, mais cedo ou mais tarde, em relação aos bens
materiais e a tudo quanto é deste mundo. O prazer humano é caduco. Quem poderá
ouvir sem interrupção a mesma música, por mais bela que seja, ou contemplar
durante anos, sem mover-se, uma única paisagem? Nesta vida não há o que não
termine por enfastiar. Mas Deus não, porque no Céu Ele será visto em seu todo,
mas não totalmente. E como é a Suprema Verdade e Beleza, sempre apresentará a
nossos olhos aspectos novos pela eternidade inteira, sem nunca nos entediar.
“Então” — comenta São Roberto Belarmino — “a sabedoria não
consistirá mais numa investigação da divindade no espelho das coisas criadas,
mas na própria visão descoberta da essência de Deus, causa de todas as causas,
e da primeira e Suma Verdade”.7 O desejo natural de conhecer e de saber se
sacia com esta visão, pois nosso entendimento será elevado pela luz de Deus — o
lumen gloriæ —, para ser capaz de compreendê-Lo da forma mais perfeita possível
à nossa condição. E se nesta vida a noção de certas verdades nos traz alegria,
qual será a felicidade originada pela dilatação da inteligência humana por um
empréstimo da inteligência divina?
Contudo, o gozo celestial não seria completo se fosse
restrito tão só a atender os anelos da inteligência. Também a vontade alcança
nele a plenitude de sua satisfação. O coração tem necessidade de amar e de ser
amado, e nada produz tanta felicidade quanto realizar esse ideal, ainda que
seja de modo passageiro. Quando alguém a quem prezamos muito, sobretudo se é
superior a nós em algum ponto, nos diz “Eu te estimo muito!”, nosso coração se
alarga por nos sentirmos amados. Como será imenso nosso júbilo quando Deus nos
disser: “Meu filho, Eu te quero muito! Tanto que te criei, e foi meu amor que
infundiu em tua alma todo o bem existente nela. Vem, meu filho! Aqui estou Eu
para ser o teu gozo eternamente!”. Diz Santo Afonso que as almas “no Céu têm
certeza de que amam e são amadas por Deus. Veem que o Senhor as abraça com um
grande amor, que nunca mais cessará, por toda a eternidade”.8 Esta é a
felicidade no Céu!
Felicidade que sacia sem saciar, porque não produz fastio.
Assim como a Verdade, também a Bondade de Deus é infinita, proporcionando ao
homem sempre conhecer algo novo e digno de ser amado. Os Santos criaram uma
imagem muito expressiva ao comparar o deleite eterno a uma sede que,
satisfazendo-se, nunca se sacia: sede de sede. “Os bens celestes saciam e
sempre alegram o coração [...]. E, apesar de saciar plenamente, parecem sempre
novos, como se fosse a primeira vez a degustá-los; sempre os fruímos e sempre
os desejamos; sempre os desejamos e sempre os alcançamos”.9
III - Jesus transfigurou-Se para cada um de nós
Todas estas considerações sobre a glória do Céu nos fazem compreender
melhor o significado do Tabor. Quando Jesus Se transfigura diante dos
Apóstolos, também o faz diante de cada um de nós, porque a Liturgia permite
beneficiarmo-nos hoje da efusão de graças que houve há dois mil anos naquele
acontecimento. Participamos do mesmo encanto de São Pedro, de São João e de São
Tiago. E à distância entendemos — talvez melhor ainda que os Apóstolos ali — a
mensagem que o Divino Mestre quer transmitir para nosso bem.
Todo cristão, quando segue com fidelidade os passos de Jesus,
tem em sua vida espiritual momentos de Tabor, nos quais vê com particular
clareza o esplendor de Nosso Senhor Jesus Cristo. É a hora da Transfiguração.
Poderá ser numa celebração litúrgica, ao receber a Eucaristia, durante uma
Confissão, quando faz uma oração notadamente fervorosa ou, até mesmo, numa
circunstância inesperada de seu dia a dia. Quem escolhe a ocasião para
favorecer a alma com graças místicas é o Espírito Santo. A recordação dessas
inefáveis consolações deve ser guardada na memória com cuidado, como quem cola
num álbum as fotos dos melhores episódios da vida, para reviver, mais tarde, a
felicidade daqueles instantes únicos.
Também,
em sentido contrário, o bom cristão tem ao longo da caminhada terrena suas
Sextas-Feiras de Paixão. É, então, quando mais se assemelha ao Salvador. Serão
simples dificuldades, poderá ser uma penosa doença, problemas familiares,
reveses financeiros, dramas, desilusões, decepções ou tragédias que nunca
faltam... Parece, então, que fomos abandonados por Deus, que Ele não ouve a
nossa prece, o nosso clamor de angústia, e somos tentados contra a fé,
vacilamos, duvidamos. Jesus dá a impressão de estar distante. Mas, não! Ele
está mais próximo de nós, por mais que não sintamos sua presença ao nosso lado.
Devemos, portanto, fazer um pequeno esforço, que não cansa nem dá trabalho, de
rememorar nossos momentos de transfiguração, nos quais percebemos seu auxílio
com mais intensidade, seu amor de Pai e sua solicitude de Pastor em relação a
nós. Essa simples lembrança nos fortalecerá na fé, poderá reavivar as
consolações com as quais fomos favorecidos no passado e nos ajudará a
atravessar os períodos de aridez ou as provações e tribulações da existência. A
esperança do prêmio eterno é um valioso alento para suportar, com resignação
cristã, a cruz de todos os dias, da mesma forma que os três Apóstolos tiveram
mais ânimo durante a Paixão por terem testemunhado a Transfiguração, e São João
pôde estar ao pé da Cruz, no Calvário, ao lado de Maria Santíssima e das Santas
Mulheres. Saibamos dar valor a esses lampejos de Tabor, pois são a chave de
nossa vida espiritual, o fundamento de nossa perseverança.
1) CONCÍLIO VATICANO II. Lumen gentium,
n.32.
2) SÃO TOMÁS DE VILLANUEVA. Concio 94.
Dominica secunda Quadragesimæ, n.1. In: Obras Completas. Madrid: BAC, 2011,
v.II, p.735.
3) Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma
Teológica. I-II, q.111, a.2.164
4) Idem, III, q.14, a.1.
5) Cf. Idem, I-II, q.77, a.2.
6) Cf. Idem, q.75, a.2, ad 1; q.77, a.1.
7) SÃO ROBERTO BELARMINO. Elevação da
mente a Deus pelos degraus das coisas criadas. São Paulo: Paulinas, 1955,
p.247.
8) SANTO AFONSO MARIA DE LIGÓRIO. Sermones
abreviados para todas las dominicas del año. P.II, S.II, serm. 54. In: Obras
Ascéticas. Madrid: BAC, 1954, t.II, p.918-919.
9) Idem, p.919.
Nenhum comentário:
Postar um comentário