Comentários
ao Evangelho Missa da Aurora do Natal do Senhor - Lc
2, 15-20
15 Quando os Anjos
se afastaram, voltando para o Céu, os pastores disseram entre si: “Vamos a
Belém ver este acontecimento que o Senhor nos revelou”. 16 Os pastores foram às
pressas a Belém e encontraram Maria e José, e o recém-nascido deitado na manjedoura.
17 Tendo-O visto, contaram o que lhes fora dito sobre o Menino. 18 E todos os
que ouviram os pastores ficaram maravilhados com aquilo que contavam.
19 Quanto a Maria,
guardava todos esses fatos e meditava sobre eles em seu coração.
20 Os pastores
voltaram, glorificando e louvando a Deus por tudo o que tinham visto e ouvido,
conforme lhes tinha sido dito (Lc 2, 15-20).
Glória
e Paz!
Neste Natal, em meio aos múltiplos
dramas atuais, ecoam mais do que nunca para nós os cânticos dos Anjos, como
outrora para os pastores. Eles nos oferecem a verdadeira paz, convidando-nos a
subordinarmos nossas paixões à razão, e esta, à Fé.
I - Divina solução
para os problemas atuais
"O presépio de Belém nos mostra o Homem perfeito que, unindo numa
só pessoa a natureza divina e a natureza humana, restitui a esta a melhor parte
de seus privilégios, perdidos pelo pecado, e a plenitude dos benefícios daí decorrentes.
Donde se segue que não temos outro meio de sermos homens - tanto do ponto de
vista espiritual quanto do social - senão o de nos aproximarmos do Homem
perfeito, da plena estatura da vita de Cristo: ‘donec occurramus in virum
perfectum, in mensuram ætatis plenitudinis Christi'". 1
O
caminho para obter a harmonia, a concórdia e a paz
Por essa razão, ajoelhando-nos diante do Menino Deus - como o fizeram os
Sagrados Esposos, os pastores, os Reis Magos e tantos outros -, estaremos
contemplando os mais altos ensinamentos para ordenar toda a nossa vida cristã e
social. Naquela Manjedoura se encontra "o Caminho, a Verdade e a
Vida" (Jo 14, 6).
Naquele Menino vemos o Redentor, iniciando a Aula Magna do Seu
Magistério, não ainda por meio de palavras, mas ensinando-nos, com não menor
eloqüência, através do exemplo, o único e excelente meio para o
restabelecimento da antiga atmosfera de nosso éden perdido: o espírito de
sacrifício, de pobreza e de resignação no sofrimento.
Inúteis são as grandes assembleias para discutir de forma acalorada os
dramas que, hoje em dia, atravessam as nações. Basta-nos essa belíssima lição
posta diante de nossos olhos para recuperarmos nossa dignidade, nossa justiça
original e até mesmo para a humanidade viver na harmonia, a concórdia e a paz
que em tão alto grau existia no Paraíso Terrestre.
Nem a ciência com todo o seu progresso, nem a política com sua
multissecular experiência, nem sequer o auxílio de todas as riquezas, são
eficazes para solucionar os inúmeros problemas atuais. Se a sociedade
resolvesse enveredar pelas vias que o Salvador nos oferece na simples
recordação de Seu Santo Natal, viveria feliz, em meio à tranqüilidade
universal.
Ele
quis ser tudo para todos, e os seus não O receberam
Quão maravilhosa não teria sido a história de uma família que, por
piedade e compaixão, tivesse aberto suas portas, na mais bela de todas as noites, para dar hospitalidade àqueles
predestinados e bem-aventurados pais? Porém, narra-nos São Lucas que não houve
lugar para eles em nenhuma hospedagem (cf. Lc 2, 7). Diz-nos São João:
"Ele veio aos seus, e os seus não O receberam" (Jo 1, 11).
Mais terrível ainda é a conduta dos povos, nações, e da própria
humanidade dos presentes dias, que não só não querem ver nascer em seu meio
esse Menino Deus e Sua Santa Igreja, mas, pior ainda, dão- Lhes as costas, e
além de caluniá-Los e persegui-Los, põem-Lhes toda espécie de obstáculos para o
exercício de Sua missão.
O Menino-Mestre não poderia ter escolhido melhor meio para colocar- Se à
disposição de todos, manifestando um caráter de universalidade em Seu
nascimento. Realizou-o em lugar público de livre acesso, sem que ninguém
pudesse ser impedido de aproximar- se. Quis nascer pobre para facilitar a todos
irem até Ele e, por outro lado, quis descender de sangue real para que os
nobres não se sentissem inclinados a desprezá-Lo. Portanto, não chamou uma
única classe social, mas quis ser tudo para todos.
Entretanto, os seus não só não O receberam, como, depois de Ele ter
devolvido a vista aos cegos, a fala aos mudos, a audição aos surdos, a
deambulação aos paralíticos, a saúde aos leprosos, a vida aos mortos,
crucificaram- No. Triste e incompreensível acontecimento que se renova até os
dias de hoje.
Porém, é por cima de todas as infidelidades que, na noite de Natal,
ainda nos dias atuais, recordamos aquele canto: "Gloria in altis simis Deo
et in terra pax hominibus bonæ voluntatis" - Glória a Deus no mais alto
dos Céus, e paz na terra aos homens objeto da Boa Vontade de Deus (Lc 2, 14).
II -
A paz cantada e oferecida pelos anjos
"E subitamente
apareceu com o Anjo uma multidão da milícia celeste louvando a Deus e dizendo:
‘Glória a Deus no mais alto dos Céus, e paz na terra aos homens objeto da Boa
Vontade de Deus'" (Lc 2, 13-14).
Trata-se de um fato de grandeza incomensurável. O Unigênito gerado desde toda a eternidade é idêntico ao Pai e desejou encarnar-Se para, de dentro de uma natureza criada, poder louvá-Lo com toda submissão. O Divino Infante, ao nascer, oferece ao Pai um culto perfeito, além de reconciliar com Deus a humanidade, tornando-a, assim, apta para glorificá- Lo.
Trata-se de um fato de grandeza incomensurável. O Unigênito gerado desde toda a eternidade é idêntico ao Pai e desejou encarnar-Se para, de dentro de uma natureza criada, poder louvá-Lo com toda submissão. O Divino Infante, ao nascer, oferece ao Pai um culto perfeito, além de reconciliar com Deus a humanidade, tornando-a, assim, apta para glorificá- Lo.
Essa é a causa da grande glória que Lhe prestam os puros e celestiais
espíritos, pois exaltam a maior obra de Deus, na qual Ele manifesta ao universo
Sua sabedoria, Sua misericórdia, Seu poder e tantas outras perfeições
absolutas. Cumpre, desse modo, com superabundância e fidelidade, Suas mais
antigas promessas.
Os Anjos, no Céu, cantam em ação de graças pelo mais extraordinário
benefício realizado por Deus ao homem. Eles mesmos, puros espíritos, obtiveram
frutos de tão grande obra, e até mesmo a própria perseverança deles teve a
Redenção como fonte.
Nasceu
o "Príncipe da Paz"
Nascemos sob a ira de Deus, devido ao pecado de nossos primeiros pais,
mas podemos ser reconciliados com Ele por esse Divino Nascimento que, ademais,
nos traz a tranqüilidade da consciência, a paz da alma e a harmonia entre os
homens (cf. Ef 2, 14; Cl 1, 20).
"Quando a paz começava a reinar, os Anjos diziam: ‘Glória nas
alturas e paz na terra' (Lc 2, 14). Quando, porém, os de baixo receberam a
paz dos de cima, eles proclamaram: ‘Glória na terra e paz nos Céus' (Lc 19,
38). Quando a Divindade desceu à terra e se revestiu de humanidade, os Anjos
proclamavam: ‘Paz na terra'. E quando a humanidade subiu e foi elevada, imergiu
na Divindade e sentou-se à sua direita, os meninos clamavam diante dela: ‘Paz
nos Céus, hosana nas alturas!' (Mt 21, 9). Assim, o Apóstolo pôde dizer: ‘Por
intermédio dAquele que, ao preço do próprio sangue na cruz, restabeleceu a paz
a tudo quanto existe na terra e nos céus' (Cl 1, 20).
"Os Anjos diziam: ‘Glória nas alturas e paz na terra'; e os
meninos: ‘Paz nos Céus e glória na terra' (Lc 19, 38). Aparece assim com
clareza que, como a graça da misericórdia de Cristo alegra os pecadores na
terra, assim também seu arrependimento atinge os Anjos do Céu" (cf. Lc 15,
7-10).2
O Menino louvado pelos Anjos é o "Príncipe da Paz" anunciado
sete séculos antes por Isaías (9, 5) e que, anos mais tarde, afirmará serem
bem-aventurados os pacíficos - aqueles que sabem estabelecer em si mesmos e nas
almas dos outros o reino da paz - dando-lhes o título de Filhos de Deus.
Precioso
dom que não nos será retirado
O beata nox! Sim, bendita noite que assiste ao nascimento de um Menino a
inaugurar uma nova era histórica. Naquela noite foi oferecido à humanidade um
precioso dom que não lhe seria retirado nem mes mo quando aquele Menino
retornasse à eternidade: "Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz. Não vo-la
dou como o mundo a dá. Não se perturbe o vosso coração nem se atemorize"
(Jo 14, 27). "
Qual é o sentido destas palavras? Eis: Eu não vo-la dou como dão os
homens que amam o mundo. Estes, com efeito, oferecem a paz, a fim de - livres
de preocupações, de processos e de guerras - poderem gozar, não de Deus, mas do
mundo, ao qual entregaram o seu afeto. E quando eles oferecem a paz aos justos,
cessando de persegui-los, não é uma paz verdadeira, porque não há verdadeiro
acordo onde os corações estão desunidos. Chamamos consortes àqueles que unem
sua sorte. Aqueles que unem seus corações, do mesmo modo, devem se chamar
concordes. Para nós, meus caríssimos irmãos, Jesus Cristo nos deixa a paz e nos
dá sua paz, não como a dá o mundo, mas como a dá Aquele por quem foi criado o
mundo. Ele no-la dá para que todos estejamos de acordo, para que estejamos
unidos de coração e, tendo um só coração, o elevemos ao alto, não nos deixando
corromper na terra".3
A
pseudo-paz que o mundo nos oferece
Todas as palavras de
Jesus são de vida eterna e misteriosamente atraentes, mas, sendo recordadas bem
junto ao Presépio, levam-nos a querer penetrar a fundo em seu significado,
sobretudo, as que se referem à paz trazida a nós naquela noite. Qual será sua
natureza? É ela que toda criatura humana com sofreguidão deseja, mas quão
freqüentemente a busca onde ela não se encontra e, mais ainda, se equivoca
quanto ao seu verdadeiro conteúdo e substância!
Não consistirá nesse equívoco a causa principal de o mundo estar quase
sempre pervadido por guerras e catástrofes ao longo de vários milênios? Tudo
fruto da pseudopaz que o mundo nos oferece, bem diferente da que os Anjos
cantaram aos pastores, naquela bendita noite de Natal.
A esse propósito, comenta Orígenes: "Onde não está Jesus, há
disputas e guerras, mas onde Ele está presente tudo é serenidade e paz".4
Santo Agostinho afirma que a paz consiste em um "bem tão nobre que, mesmo
entre coisas mortais e terrenas, nada há de mais grato ao ouvido, nem mais doce
ao desejo, nem superior em excelência".5 E São Beda acrescenta: "A
verdadeira, a única paz das almas neste mundo consiste em estar cheias de amor
de Deus e animadas da esperança do Céu, a ponto de considerar pouca coisa os êxitos
ou reveses deste mundo. [...] Engana-se quem imagina que poderá encontrar a paz
no gozo dos bens deste mundo e nas suas riquezas. As freqüentes perturbações
nesta terra e o fim deste mundo deveriam convencer o homem de que ele construiu
sobre areia os fundamentos de sua paz". 6
Paz
e pecado não podem viver juntos
A paz cantada e oferecida pelos Anjos encontra-se na santidade para a qual todos nós somos chamados. Fomos criados por Deus
e para Ele; enquanto a suma Verdade não ilumine nossa inteligência, enquanto o
Bem supremo não ocupe um lugar primordial em nosso coração, serão frustrados
nossos esforços em busca da paz. Num mesmo coração não podem viver juntos a paz
e o pecado. "Não há paz no coração do homem carnal, nem no do homem
entregue às coisas exteriores, mas somente no daquele que é fervoroso e
espiritual". 7 Por isso, quanto mais procuro a paz nos gozos deste mundo,
mais me acusará minha consciência pelo fato de me colocar fora da ordem do
universo, e sobretudo se, por desgraça, venha eu a abraçar as vias do pecado.
Neste caso, serei objeto do ódio de Deus e dos raios de Sua santa cólera. Pior
ainda será minha situação se eu conseguir abafar a voz de minha consciência;
aí, no silêncio profundo de meu inveterado e pérfido coração, se evanescerão os
remorsos, angústias e temores pela virtude perdida. E neste caso, a morte
ocupará o lugar deixado em minha alma pela antiga paz.
Em
realidade, o que é a verdadeira paz?
Diz-nos São Tomás de Aquino: "Quem tem um desejo, deseja também a
paz, uma vez que ele almeja obter tranqüilamente e sem impedimentos o objeto
desejado. E nisso consiste a paz, que Santo Agostinho define como ‘a tranqüilidade
da ordem'". 8 Portanto, nossos anseios sempre são acoplados a uma busca de
paz. E a única capaz de satisfazer o coração humano é aquela oferecida pelos
Anjos a toda a humanidade, na pessoa dos pastores.
Tranqüilidade e ordem são os elementos constitutivos dessa paz. Pode vir
a existir tranqüilidade sem ordem, e vice-versa: em nenhum desses casos haverá
verdadeira paz, ainda que desta possam existir aparências.
Não é por mera
expansividade que os Anjos cantam em primeiro lugar: "Glória a Deus no
mais alto dos Céus..." (Lc 2, 14), pois a verdadeira paz procede do
Espírito Santo, como as plantas nascem das sementes ou das raízes, tal qual
ressalta São Paulo: a paz é "fruto do Espírito Santo" (Gl 5, 22) e
"está acima de todo entendimento" (Fl 4, 7). O Doutor Angélico
afirma, e torna-se óbvio, que vive em perfeita ordem quem está unido a Deus,
pois Ele ordena as potências da alma, com seus sentidos e faculdades, por ser
Ele mesmo o primeiro princípio e último fim de toda a criação. Daí produzir
essa união o repouso interior. Ademais, quando nossa união com Deus é plena,
não pode haver perturbação porque tudo o que não é Deus, reputamos como sendo
nada, conforme proclama São Paulo: "Se Deus está conosco, quem estará
contra nós?" (Rm 8, 31).
É-nos fácil compreender como o homem que está em paz com Deus também o
estará consigo mesmo, assim como com os demais, pois o fundamento da verdadeira
paz é viver em paz com Deus Nosso Senhor. Por isso nos diz São Cirilo:
"Envergonhemonos de prescindir do dom da paz, que o Senhor nos deixou
quando ia sair do mundo. A paz é um nome e uma coisa saborosa, a qual sabemos
que provém de Deus, como diz o Apóstolo aos filipenses: a paz de Deus. E que
ela é de Deus, mostra-o também quando diz aos efésios: Ele é nossa paz. A paz é
um bem recomendado a todos, mas observado por poucos. Qual é a causa disso?
Talvez a ambição de poder, a inveja, o ódio ao próximo, ou algo do gênero, que
vemos naqueles que desconhecem o Senhor. A paz procede de Deus, o qual é quem
une tudo [...] Transmitea aos Anjos [...] e se estende também a todas as
criaturas que verdadeiramente a desejam".9
Principal
razão pela qual os homens de hoje não acham a paz
Se, como acima dissemos a paz é fruto do Espírito Santo, a base dela se
encontra fixa na vida da graça e da caridade. Ora, o Autor da graça é Jesus
Cristo: "A graça e a verdade vieram por Jesus Cristo" (Jo 1, 17). E,
portanto, é Ele também o autor da paz: "Cristo é a nossa paz" (Ef 2,
14).
Essa é a principal razão de não encontrarem os homens de hoje a
verdadeira paz. Claro! Pois ela não surge dos tratados. Quando muito, aordem
externa das nações consegue reparar os estragos materiais do pósguerra, mas
somente a tranqüilidade e ordem da alma é que - enquantoelementos essenciais -
trazem a autêntica paz. Esta se evanesceu do concerto das nações e nem sequer
no interior das mesmas nós a podemos desfrutar.
E o que dizer das dissensões no seio das famílias, instituição que a
cada passo ainda mais se deteriora pela agressão de vários fatores adversos
conjugados: corrupção moral progressiva, desfazimento da autoridade paterna,
generalizada violação da fidelidade conjugal, desprezo da Lei de Deus e até
mesmo do bem social no cumprimento dos sagrados deveres para com os filhos?
Todas essas desordens têm sua causa no próprio homem atual, penetrado de
descontentamento em seu coração, irmão siamês do fastio, acidez e inquietação.
Quase toda criatura humana, hoje em dia, é possuída por um espírito de
insubordinação a qualquer tipo de autoridade, seja ela eclesiástica, religiosa,
política, familiar, etc. Sem falar da processiva perda do pudor, que constitui
hoje o mal de todos os povos...
Magistério
dos Papas
Sábias, a esse propósito, foram as palavras do Beato João XXIII em sua
famosa Encíclica Pacem in Terris:
"A paz na terra, anseio profundo de todos os homens de todos os
tempos, não se pode estabelecer nem consolidar senão
no pleno respeito da ordem instituída por Deus. [...] Contrasta clamorosamente
com essa perfeita ordem universal, a desordem que reina entre indivíduos e
povos, como se as suas mútuas relações não pudessem ser reguladas senão pela
força. [...] "
Em última análise, só haverá paz na sociedade humana, se essa estiver
presente em cada um dos membros, se em cada um se instaurar a ordem querida por
Deus. Assim interroga Santo Agostinho ao homem: ‘Quer a tua alma vencer tuas
paixões? Submeta-se a quem está no alto e vencerá o que está em baixo. E haverá
paz em ti, paz verdadeira, segura, ordenadíssima. Qual é a ordem dessa paz?
Deus comandando a alma, a alma comandando o corpo. Nada mais ordenado'".10
E em recente pronunciamento, Bento XVI, nosso Pontífice felizmente
reinante, assim se exprimiu sobre o mesmo tema: "Em primeiro lugar, a paz
deve ser construída nos corações.
De fato é neles que se desenvolvem sentimentos que podem alimentá-la ou,
ao contrário, ameaçá-la, enfraquecê-la, sufocá-la. Aliás, o coração do homem é
o lugar das intervenções de Deus. Portanto, ao lado da dimensão ‘horizontal'
das relações com os outros homens, revela- se de importância fundamental, nesta
matéria, a dimensão ‘vertical' da relação de cada um com Deus, no qual tudo tem
o seu fundamento".11
Glória
no Céu e paz na terra
Por isso, neste Natal de 2008, em meio aos múltiplos dramas atuais,
ecoam mais do que nunca para nós os cânticos dos Anjos, como outrora para os
pastores. Eles nos oferecem a verdadeira paz, a cada um de nós em particular,
convidando-nos a subordinarmos nossas paixões à razão, e esta, à Fé. Oferecem-
nos também o término da luta civil, da luta de classes e das próprias guerras
entre as nações, com a condição de observarmos cuidadosamente as exigências
impostas pela hierarquia e pela justiça. Em síntese, é-nos indispensável, para
recebermos dos Anjos essa oferta tão ansiada por nós, estarmos em ordem com
Deus, reconhecendo nEle o nosso Legislador e Senhor, e amando-O com todo
entusiasmo.
É o que, com tanta lógica e unção, comenta São Cirilo: "Não O olhes
simplesmente como um menino depositado num presépio, mas em nossa pobreza
devemos vê-Lo rico como Deus, e por isso é glorificado inclusive pelos Anjos:
‘Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade'. Pois os
Anjos e todas as potências superiores conservam a ordem que lhes foi dispensada
e estão em paz com Deus. De modo algum se opõem ao que Lhe agrada, mas estão
firmemente estabelecidos na justiça e na santidade. Nós somos desgraçados ao
colocar nossos próprios desejos em oposição à vontade do Senhor, e nos
colocamos nas fileiras de seus inimigos. Isso foi abolido por Cristo, pois Ele
mesmo é a nossa paz (cf. Ef 2, 14) e nos une por sua mediação com Deus Pai,
tirando o pecado, causa de nossa inimizade, justificando-nos pela fé e
aproximando os que estão distantes. Além disso, modelou os dois povos em um
homem novo, fazendo a paz e reconciliando ambos em um só corpo com o Pai (cf.
Ef 2, 15-16). Com efeito, agradou a Deus Pai reunir nEle todas as coisas, e
unir os de cima com os de baixo, os do Céu e os da terra, e dizer que há um só
rebanho. Cristo tem sido para nós paz e boa vontade".12 E com não menor
espiritualidade, acrescenta São Jerônimo: "Glória no Céu, onde não há
dissensão alguma, e paz na terra, onde há guerras diariamente. ‘E paz na
terra'. E em quem essa paz? Nos homens. [...] ‘Paz aos homens de boa vontade',
isto é, àqueles que recebem Cristo recém-nascido". 13
III
- O exemplo de Fé dos pastores
"Quando
os Anjos se retiraram deles para o Céu, os pastores diziam entre si: ‘Vamos até
Belém, e vejamos o que é que lá aconteceu e o que é que o Senhor nos
manifestou'. Foram a toda a pressa, e encontraram Maria, José, e o Menino
deitado na manjedoura. Vendo isto, contaram o que lhes tinha sido dito acerca
deste Menino. E todos os que ouviram, se admiravam das coisas que os pastores
lhes diziam. Maria conservava todas estas coisas, meditando- as no seu coração.
Os pastores voltaram, glorificando e louvando a Deus por tudo o que haviam
ouvido e visto, conforme lhes tinha sido dito" (Lc 2, 15-20).
Na Celebração Eucarística da Aurora, portanto na segunda Missa de Natal, narra-nos São Lucas que, após terem cumprido sua missão, retornaram os Anjos ao Céu. É curioso notar que os Anjos não ordenam aos pastores visitar o Salvador recém-nascido: apenas lhes indicam o local. Entretanto, imediatamente após a retirada dos puros espíritos, eles se apressam a ir em busca do Menino para vê-Lo e adorá-Lo. Com essa bela atitude, ensinam aos que amam a fidelidade, a serem dóceis, diligentes e ágeis em praticar com toda prontidão o bem que lhes seja insinuado, inspirado, ou de qualquer outro modo comunicado pelo Senhor, caso contrário, incorrerão numa falta.
Na Celebração Eucarística da Aurora, portanto na segunda Missa de Natal, narra-nos São Lucas que, após terem cumprido sua missão, retornaram os Anjos ao Céu. É curioso notar que os Anjos não ordenam aos pastores visitar o Salvador recém-nascido: apenas lhes indicam o local. Entretanto, imediatamente após a retirada dos puros espíritos, eles se apressam a ir em busca do Menino para vê-Lo e adorá-Lo. Com essa bela atitude, ensinam aos que amam a fidelidade, a serem dóceis, diligentes e ágeis em praticar com toda prontidão o bem que lhes seja insinuado, inspirado, ou de qualquer outro modo comunicado pelo Senhor, caso contrário, incorrerão numa falta.
Convite
a um exame de consciência na noite de Natal
Quiçá, ajudando- me a meditar sobre esses fatos acontecidos em Belém,
meu Anjo da Guarda me fale no fundo da alma uma palavra decisiva para eu mudar
algo em minha vida, ou até mesmo o rumo que adotei, e assim cumprir o fim para
o qual fui criado.
Os cânticos, a Liturgia, as leituras, os sermões, etc., dessa Noite
trarão à minha lembrança o Nascimento do Salvador. Estarei, eu também, sendo
convidado a ir a Belém, como o foram os pastores. Que sentimentos passarão em
meu interior? Terei eu a mesma santa sofreguidão que os acometeu naquela
ocasião?
Não é necessário que eu empreenda uma viagem à Gruta de Belém, mas sim
que eu tenha a mesma reação dos pastores, ou seja, total prontidão, por
exemplo, a dirigir-me a um Tabernáculo onde vive à minha espera o meu Redentor,
o próprio que foi adorado por eles na Manjedoura. Quantos pretextos
aparentemente legítimos poderiam ter alegado os pastores para não se moverem
com pressa em busca do Menino: a longa distância a percorrer, o quanto
constituía um verdadeiro perigo abandonar o rebanho, o inverno já se fazia
sentir vigoroso, a noite dominava os campos, etc. Quantos católicos, hoje em
dia, por sua frivolidade, deixam de cumprir suas obrigações de culto,
escorando-se em justificações as mais banais, ou até mesmo em fantasiosas
irrealidades! Nada pôde retardar o passo daqueles piedosos camponeses e por
isso, com todo merecimento, encontraram não só Jesus, como também Maria e José.
Heróica
fé diante de um frágil menino
Veneremos também, nessa noite, a heróica e robusta fé daqueles homens
tão simples. A equivocada crença daqueles tempos era de que o Salvador
prometido deveria ser um homem cheio de poder para livrar seu povo de todo e
qualquer inimigo, a fim de conceder-lhe a supremacia sobre todos os outros
povos. Portanto, um libertador rutilante de esplendor, de glória e de majestade
maiores ainda que as do próprio Salomão. Ora, em vez de se depararem com um
temível e grandioso imperador, acham-se diante de um frágil Menino, envolto em
panos. Junto a Ele, um boi e um burro para aquecê-Lo, um pobre artesão, uma
mulher cheia de simplicidade. Enfim, tudo o que o mundo de então - e de todos
os tempos - julgava mais vil e desprezível. Apesar disso, em nenhum momento
foram penetrados pela menor dúvida ou mesmo insegurança. Acreditaram de toda
alma ser aquele Menino o esperado Salvador. Será essa também a minha fé na
Igreja de Deus, tão infalível quanto os Anjos?
A
Fé, um tesouro que não comporta egoísmos
Uma vez cumprido o dever imposto pelos seus fervorosos corações,
"voltaram glorificando e louvando a Deus por tudo o que tinham visto e
ouvido, conforme lhes tinha sido dito". É o primeiro efeito que a Fé
produz, quando é sincera, ou seja, o dinâmico desejo de fazer participar dela
todos os que se encontrem pelo caminho. Essa Fé é um tesouro que não comporta
egoísmos, ela exige ser compartilhada por outros, é expansiva. Por isso, nesse
episódio, nós encontramos os pastores como arautos da Boa Nova, pregadores
simples e sem maiores recursos de oratória, mas eloqüentes.
Essa é também a obrigação de todos nós, batizados. Vem a propósito
relembrar aqui a admoestação que a esse respeito nos faz São Beda: "Os
pastores não guardaram silêncio sobre os divinos mistérios que lhes foram
revelados, mas os comunicaram a todos quantos puderam. A isso também estão
destinados os pastores espirituais da Igreja: pregar os mistérios da Palavra de
Deus e ensinar seus ouvintes a admirar as maravilhas que aprenderam nas
Escrituras". 14
Cabe-nos, portanto, tomar como modelo, também neste aspecto, os
pastores; pois, se é viva nossa Fé, devemos comunicá-la, dando a conhecer
Jesus, as belezas da Igreja, etc., a todos que nos rodeiam, especialmente
àqueles sobre os quais temos alguma autoridade. Não nos esqueçamos de que a
salvação eterna deles nos foi em certa medida confiada e, nesta matéria, um
relaxamento poderá constituir falta grave. Claro está que o ímpio morrerá em
sua iniqüidade, por castigo de sua malícia: "Impius in iniquitate sua
morietur..." (Ez 3, 18). Entretanto, aquele que tinha obrigação moral de
instruí-lo, e até de repreendê-lo, e assim não procede, deverá prestar contas a
Deus, no dia de seu Juízo, e pagará pela perda de seu irmão: "...sanguinem
autem ejus de manu tua requiram" - "...mas é a ti que pedirei conta
do seu sangue" (Idem, ibidem).
1 PIO X, São. Discurso de
23/12/1903 apud Lettres Apostoliques de S. S. Pie X. Paris: Maison de la Bonne
Presse, v. I, p. 210.
2 EPHREM DE NISIBE, Saint. Commentaire de l'Évanglile Concordant ou Diatessaron, Lc 2, 14. Paris: Éditions du Cerf, 1966, p. 73.
3 AUGUSTINUS HIPPONENSIS, Sanctus. In Evangelium Ioannis, t. 77.
4 Apud: AQUINO, São Tomás de. Catena Aurea, in Mt. c. 27, l. 4.
5 AUGUSTINUS HIPPONENSIS, Sanctus. De Civitate Dei. L. XIX, 11
6 BEDA VENERABILIS, Sanctus. Homilia XI in Vigilia Pentecostes.
7 KEMPIS, Tomás de. Imitación de Cristo, Libro I, cap. 6, 2.
8 AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica II-II, q. 29, a. 2.
9 Apud: AQUINO, São Tomás de. Catena Aurea, in Lc 24, vv. 36-40.
10 JOÃO XXIII, Carta Encíclica Pacem in Terris, 11/4/1963, nn. 1, 4 e 164.
11 BENTO XVI, Mensagem no XX aniversário do Encontro Inter-Religioso de Oração pela Paz, 2/9/2006.
12 CIRILLUS ALEXANDRINUS, Sanctus. Commentarii in Lucam, 2, 14.
13 HIERONYMUS PRESBYTERUS, Sanctus. Homilia de Nativitate Domini, n. 65 (Morin n. 394).
14 BEDA VENERABILIS, Sanctus. Homilia VI - In Aurora Nativitatis Domini e In Lucæ evangelium expositio, c. 2.
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