Comentários ao Evangelho da Missa da Noite do Natal do Senhor - Missa do Galo - Ano
A -
Mons João Clá Dias
Aconteceu que, naqueles dias, César Augusto publicou um decreto,
ordenando o recenseamento de toda a terra. Este primeiro recenseamento foi
feito quando Quirino era governador da Síria. Todos iam registrar-se cada um na
sua cidade natal. Por ser da família e descendência de Davi, José subiu da
cidade de Nazaré, na Galiléia, até a cidade de Davi, chamada Belém, na Judéia,
para registrar-se com Maria, sua esposa, que estava grávida. Enquanto estavam
em Belém, completaram-se os dias para o parto e Maria deu à luz o seu filho
primogênito. Ela o enfaixou e o colocou na manjedoura, pois não havia lugar
para eles na hospedaria.
Naquela região havia pastores que passavam a noite nos campos, tomando
conta do seu rebanho. Um anjo do Senhor apareceu aos pastores, a glória do
Senhor os envolveu em luz e eles ficaram com muito medo. O anjo, porém, disse
aos pastores: Não tenhais medo! Eu vos anuncio uma grande alegria, que o será
para todo o povo: Hoje, na cidade de Davi, nasceu para vós um Salvador, que é o
Cristo Senhor. Isto vos servirá de sinal: Encontrareis um recém-nascido
envolvido em faixas e deitado numa manjedoura. E, de repente, juntou-se ao anjo
uma multidão da corte celeste. Cantavam louvores a Deus, dizendo: Glória a Deus
no mais alto dos céus, e paz na terra aos homens por ele amados.
O
Evangelho do nascimento do Menino Jesus
Ao nos aproximarmos
do Presépio, meditemos sobre aqueles acontecimentos que marcaram para sempre a
História e que uma palavra hebraica sintetiza com justeza: Emanuel. Quer dizer
“Deus conosco”, o próprio Senhor de todas as coisas assumiu a natureza humana e
veio para estar no meio de nós.
A
linguagem da Escritura
1Aconteceu que naqueles dias, César Augusto publicou um decreto,
ordenando o recenseamento de toda a terra.
São Lucas, ao introduzir o tema, não se exprime com exageros didáticos,
mas sim, com encantadora singeleza. Encontramos esta mesma simplicidade ao
longo de toda a Sagrada Escritura. Não se trata apenas de um princípio de
sabedoria, mas de arte literária: ao se descrever algo substancialmente
grandioso, torna-se desnecessário utilizar uma linguagem enfática. A ênfase é
indispensável quando queremos chamar a atenção para algo que, de si, não tem ou
parece não ter importância.
O que São Lucas descreverá é o nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo,
fato insuperável na História. Deus se fez Homem! O que mais dizer?
A
vida orgânica de antigamente
Como o mundo era orgânico! O homem ainda não conhecia a agitação de
hoje. Nada de comunicações instantâneas. Nada de viagens em velocidade
ultrassônica. Não! Se a vida, sob muitos ângulos, era difícil, de outro lado,
quanta serenidade!
Quanto tempo livre para se estar numa conversa distendida com os amigos,
para conviver longamente com a familia, para refletir, para rezar! Tudo era
feito com calma e serenidade.
Naqueles dias, os romanos já haviam conquistado tantas terras que
costumavam chamar o Mediterrâneo de Mare Nostrum. Devido a essa
rápida expansão, tornava-se urgente saber qual o número real da população do
império.
Para o recenseamento, diz o Evangelho que “todos iam registrar-se cada
um na sua cidade natal”. Quer dizer, iam aonde se encontravam as próprias
raízes, mantinham vínculos com suas origens, que não raro atravessavam os
séculos, e lhes marcavam a existência.
Espírito
de respeito às regras
4Por ser da familia e descendência de Davi, José subiu da cidade de
Nazaré, na Gallleia, até a cidade de Davi, chamada Belém, na Judeia, para
registrar-se com Maria, sua esposa, que estava grávida.
Sendo de estirpe real, José deveria apresentar-se com sua esposa na
cidade de seus ancestrais. Era necessário caminhar uns 150 km, distância que
separava Nazaré de Belém por aquelas estradas.
Não haviam ainda os romanos posto em prática toda a sua capacidade
organizadora no tocante à rede de comunicação de seu império. É verdade que já
estavam construindo, na região de Roma, ótimas estradas, levantavam pontes e
viadutos sólidos, mas os caminhos da Palestina não haviam sido endireitados, e
pavimentados até então.
Eram vias ricas de aspectos pitorescos, mas quão tortuosas, esburacadas
e arriscadas! Foi por este cenário agreste que se aventuraram José e Maria
durante alguns dias. Felizmente, por estarem num período de recenseamento, por
todo o percurso encontravam uma multidão de pessoas, diminuindo de certo modo
os perigos. Apesar disso não deixava de ser um deslocamento penoso.
Não consta que José e Maria hajam se queixado de algo. Submeteram-se com
docilidade às determinações, por serem fiéis ao princípio da autoridade, criado
por Deus e posto em prática na legislação. Não se tratava de uma ordem
criminosa nem injusta, logo, devia ser obedecida.
O
encontro mais sublime da história
6 Enquanto estavam em Belém, completaram-se os dias para o parto, 7a e
Maria deu à luz o seu Filho primogênito. Ela O enfaixou e O colocou na
manjedoura...
Este belo trecho deixa transparecer a profissão do Evangelista. Com
efeito, ele era médico. Sabia que uma mãe, ao dar à luz, não tem forças para
preocupar-se diretamente com o recém-nascido, e que o normal é deixá-lo aos
cuidados de outras pessoas. São Lucas, portanto, ao afirmar ter sido Nossa
Senhora quem tratou o menino — “0 enfaixou e O colocou na manjedoura” — deseja
ressaltar que o parto foi indolor, não trazendo consigo os estigmas do pecado
original. Esta ideia é sublinhada também pelo fato de Maria não ter se
preocupado em banhar seu Filho. Nasceu Ele com tanta luz, que a Mãe O enfaixou
imediatamente.
Podemos imaginar a cena: a Santíssima Virgem, que vê pela primeira vez
Deus Menino, Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, mas Carne da carne e Sangue
do sangue d’Ela! Em atitude de adoração a Ele — é a única Mãe que pode adorar
seu Filho — enfaixa-O, porque os ossos d’Ele são tenros, as cartilagens ainda
são delicadas, e é necessário protegê-Lo. Enquanto é enfaixado, o Menino olha
para Ela, sorri, encanta-Se com essa criatura virginal que Ele mesmo planejara
desde toda a eternidade. Foi este o encontro mais sublime, elevado e pleno de
unção que ocorreu em toda a História da humanidade: o do Menino Deus com sua
Mãe; o da Mãe com seu Filho Divino.
Sob
o signo da castidade
7b …pois no havia lugar para eles na hospedaria.
Por que São Lucas utiliza estes termos: “para eles”? Ele poderia ter
escrito: “Não havia lugar para mais ninguém”. Por que não o fez?
Naquela época não existiam hotéis como hoje. Muitas hospedarias nem
sequer possuíam quartos, o teto era às vezes de palha ou mesmo constituído por
um simples caramanchão. Os animais — cavalos, burros, camelos, etc. — eram
deixados pelos viajantes num pátio defronte às portas da hospedaria. E não se
pense em conveniências de higiene comuns em nossos dias. Naquele mundo se
misturavam povos que estavam saindo da barbárie com outros mais primitivos.
Mais de um milênio haveria de passar para que tal situação sofresse uma mudança
profunda e duradoura.
O convívio humano numa hospedaria tornava-se, por esse motivo, um tanto
prosaico. E o ambiente era em geral de festa: cantava-se à noite,
confraternizava-se, até que o cansaço obrigasse os viajantes a se deitarem. Mas
era um dormir meio coletivo. Situação que não convinha para José e Maria, que
haviam sido chamados à prática do sumo do pudor, da castidade, da virgindade.
Por isso, “não havia lugar para eles”.
Desse modo, já no nascimento do Menino Jesus depara-mo-nos com uma
riqueza de significados a propósito da virgindade e da castidade que são
realçados pelas circunstâncias. Sem lugar na hospedaria, o Santo Casal escolhe
uma Gruta, e é ali que nasce Deus Encarnado. Ele prefere uma estrebaria a um
local onde o pudor não é praticado de modo excelente. Sua Mãe, Virgem Imaculada,
seu pai adotivo, virgem também. Castidade e pudor, eis o signo sob o qual Ele
nasce.
Desapego
aos bens deste mundo
A 9 km da Gruta ficava o palácio de Herodes: inundado de fausto, de
riquezas, de opulência, de luxo, de segurança. Mas o Rei dos reis preferiu
nascer na Gruta. Por quê? Para nos dar outra lição: seja na pobreza, seja na
riqueza, não nos esquecermos de que o importante é voltarmos os olhos para
Deus.
Mas algumas pessoas estavam bem mais próximas do Presépio que Herodes...
8 Naquela região, havia pastores que passavam a noite nos campos,
tomando conta do seu rebanho.
Eram homens pobres e muito simples de trato, e detestados pelos fariseus
por não seguirem os costumes por eles indicados. Jesus teve preferência por
eles. Contudo, não julguemos que esta predileção vinha sobretudo de sua
situação econômica. Antes deles, já os Reis Magos haviam começado sua viagem do
Oriente, trazendo presentes. Por sonhos, ou revelações quiçá, também tiveram
notícia de que um Salvador nasceria e, atravessando extensas regiões e
expondo-se a grandes riscos, acorreram em busca d’Ele.
Chamando uns e outros, Deus quis mostrar que veio para os pobres e para
os ricos, e que o importante é não nos apegarmos aos bens materiais, mas, como
diz o Papa João Paulo II, aspirarmos à “bem-aventurança dos pobres, dos ‘pobres
em espírito’, como esclarece São Mateus (Mt 5, 3), ou seja, dos humildes”.1
Desde que tenhamos humildade, que só se obtém com profundo amor a Deus,
estaremos preparados para encontrar o Menino Jesus recém-nascido.
9Um Anjo do Senhor apareceu aos pastores, a glória do Senhor os envolveu
em luz, e eles ficaram com muito medo.
Havia entre os judeus a crença de que se alguém visse um Anjo morreria
em seguida. Temeram, portanto, não só pela majestade daquele ser celestial, mas
também pelo presságio que sua aparição poderia representar.
10b “Eu vos anuncio uma grande alegria, que o será para todo o povo”.
É possível que a voz do Anjo não fosse suficiente para tranquilizar os
pastores. Certamente receberem uma graça que os sustentou e que os fez sentir o
que ouviam. E sentiram que haveria alegria para eles também.
11 “Hoje, na cidade de Davi, nasceu para vós um Salvador, que é o Cristo
Senhor. 12 Isto vos servirá de sinal: Encontrareis um recém-nascido envolvido
em faixas e deitado numa manjedoura”.
13 E, de repente, juntou-se ao Anjo uma multidão da coorte celeste.
Cantavam louvores a Deus, dizendo: ‘ “Glória a Deus no mais alto dos Céus, e
paz na Terra aos homens por Ele amados”.
Percebe-se que os pastores foram crescendo na compreensão da grandeza do
ocorrido, e que a visão das miríades de Anjos cantando e louvando a Deus foi
para eles um espetáculo prefigurativo da visão beatífica. Com o coração
transbordante de graça — talvez tenham sido santificados naquele momento —
puseram-se logo de pé, apressando-se em visitar o Menino Jesus.
Evangelho
segundo Maria
Ao terminar esta parte do Evangelho, São Lucas escreve: “Maria
conservava todas estas palavras, meditando-as no seu coração” (2, 19).
É bem possível que tenha sido Nossa Senhora quem narrou esses fatos aos
Apóstolos, pedindo que seu nome não fosse mencionado. Tal é a sua humildade!
Mas São Lucas, escrevendo deste modo, está indicando ter sido Ela a fonte do
relato, razão pela qual bem poderíamos anunciar a narração do nascimento de
Jesus com estas palavras: “Proclamação do Evangelho segundo Maria!”.
1) JOÃO PAULO II. Veritatis
Splendor, n.16.
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