Comentários ao Evangelho - Lc 12, 49-53
Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: «Eu vim
trazer o fogo à terra e que quero Eu senão que ele se acenda? Tenho de receber
um batismo e estou ansioso até que ele se realize. Pensais que Eu vim
estabelecer a paz na terra? Não. Eu vos digo que vim trazer a divisão. A partir
de agora, estarão cinco divididos numa casa: três contra dois e dois contra
três. Estarão divididos o pai contra o filho e o filho contra o pai, a mãe
contra a filha e a filha contra a mãe, a sogra contra a nora e a nora contra a
sogra». Palavra da salvação.( Lc 12, 49-53)
AS MANIFESTAÇÕES DE AMOR DO DIVINO MESTRE
Comoventes e admiráveis são as
manifestações de misericórdia de Nosso Senhor Jesus Cristo no decorrer de sua
vida pública. Sem jamais recusar benefício algum aos infelizes que d’Ele se aproximavam
necessitando de auxílio, realizava curas corpóreas e espirituais nunca antes
testemunhadas. Certa vez, enquanto caminhava pela estrada que conduzia à cidade
de Naim, deparou-se com o funeral de um jovem que falecera deixando a mãe, uma
pobre viúva, desamparada e sozinha. Compadecido da triste sorte que a aguardava,
Jesus fez o jovem voltar à vida e o restituiu à sua progenitora em excelentes
condições físicas, certamente melhores que as anteriores. Noutra ocasião, dez
leprosos levantaram a voz a distância, implorando a Ele o fim de seus males.
Receberam um olhar benigno do Mestre, seguido da almejada cura, mediante a qual
regressaram à vida social, cheios de júbilo. Ainda maiores que estes, porém,
eram os benefícios feitos às almas, pelo perdão dos pecados a todos os faltosos
compungidos. Incessantes eram os milagres e incomensurável o alcance de seus favores.
Por isso, o Apóstolo Pedro sintetizou tais obras afirmando que Ele “pertransivit benefaciendo — passou
fazendo o bem” (At 10, 38).
Como ouvimos com frequência
palavras cheias de comiseração saídas dos próprios lábios divinos, o
ensinamento do Evangelho deste 20° Domingo do Tempo Comum pode causar-nos certa
perplexidade por não se coadunar, à primeira vista, com o modo de proceder de
Nosso Senhor consignado em outras passagens. Haveria, portanto, uma contradição
no ministério de Jesus?
Ou suas palavras sobre o fogo,
a divisão e o rompimento dos laços familiares contêm uma profundidade que exige
uma análise mais acurada? O texto proposto pela Liturgia deste domingo oferece uma
privilegiada oportunidade de compreendermos a verdadeira amplitude da
perfeitíssima pregação de Cristo e os seus desdobramentos para a vida de cada
um de nós.
UM NOVO FOGO É TRAZIDO TERRA
Naquele tempo disse Jesus aos
seus discípulos: “Eu vim para lançar
fogo sobre a Terra, e como gostaria que já estivesse aceso!”
Ousada é a afirmação do
versículo inicial, no qual Nosso Senhor de- - ‘ clara ter assumido a Encarnação
com a finalidade de propagar um fogo, sendo tão veemente o seu desejo de vê-lo
arder que aguarda com ansiedade a chegada de tal momento. Deveríamos entender
tal afirmação num sentido estrito? Teria Ele vindo como uma tocha chamejante, para
percorrer todos os quadrantes a fim de produzir um incêndio universal? E
evidente que não.
Por outro lado, sabemos que a
figura do fogo aparece na Escritura com diversos significados, na maioria das
vezes com uma conotação punitiva. No episódio em que uma labareda saída de
junto do Senhor devorou os duzentos e cinquenta que tinham se revoltado contra Moisés,
tão eficaz foi o efeito produzido que não restaram sequer indícios dos
difamadores (cf. Edo 45, 22-24; Num 16, 35). Com um propósito semelhante Elias
fez descer fogo do Céu sobre dois capitães, cada qual em companhia de cinquenta
soldados, todos imediatamente incinerados (cf. II Re 1, 9-12). 0 Apocalipse
prenuncia o fogo que deve ser lançado à Terra na conflagração final para
purificá-la (cf. Ap 20, 9-10). Além disso, as menções às penas infernais sempre
são acompanhadas pela imagem de um incêndio peculiar, criado por Deus para este
fim, cuja energia é Ele próprio, um fogo inteligente que não se apaga.1
Ora, o contexto deste Evangelho
denota que o Salvador não alude às passagens antigas já conhecidas pelo público
ao qual pregava, nem se refere às chamas do inferno. Suas palavras, envoltas em
ar de mistério, versam sobre um fogo novo, preconizado apenas pela pregação de
São João Batista.
A humanidade necessitava de uma purificação
À multidão comprimida, ávida
por saber se estava ou não diante do Messias, declarou o Precursor em tom
solene: “Eu vos batizo na água, mas eis que vem outro mais poderoso do que eu,
a quem não sou digno de desatar a correia das sandálias; ele vos batizará no
Espírito Santo e no fogo” (Le 3, 16). Era o anúncio do batismo sacramental, incomparavelmente
mais profundo, eficaz e perfeito que o de penitência, e acompanhado por um fogo
renovador.
De fato, antes do advento de
Nosso Senhor, a humanidade estava pervadida e maculada pelos efeitos do pecado
original, tendo se tornado verdadeira escrava das paixões desordenadas. Ao
longo dos séculos, houve um paulatino enraizamento dessas más tendências com
todas as lamentáveis consequências registradas pela História, fazendo-se
indispensável uma purificação. Como operar a santificação da sociedade em tais
circunstâncias? Pelas vias normais do esforço ou pela prática de uma virtude natural
não se atinge tão elevado objetivo; fazia-se imprescindível um fator
determinante originado por iniciativa divina, uma vez que o homem não tinha
meios de vencer sua própria maldade, sendo este o magnífico remédio que o
Redentor nos viera trazer.
O fogo do amor divino
Através da união da natureza
humana com a divina em uma só Pessoa, e pelos méritos infinitos da Encarnação,
Paixão, Morte e Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo, desceu à Terra um
fogo capaz de purificar o pântano no qual os homens estavam atolados: “Jesus veio
do Céu à Terra para pôr fogo nas almas a fim de depurá-las, queimar suas
escórias e torná-las pura prata e ouro diante de Deus: é o fogo da santidade, da
caridade; é todo o sistema de santificação que Jesus trouxe ao mundo”.2 Com a
Redenção, fomos elevados a um patamar espiritual inimaginável, pois foi-nos
aberta a possibilidade de sermos agradáveis a Deus e partícipes de sua própria
divindade. Conclamados a assumir a mesma perfeição do Pai Celeste (cf. Mt 5,
48), recebemos para isso a efusão do amor de Cristo que acrisola nosso próprio
amor, torna-o meritório e fecundo, além de nos oferecer a possibilidade de
vencermos o pecado, que embora ainda lance seu aguilhão já não impera mais. A
medida que os homens se deixam penetrar pelo fogo da caridade, os obstáculos
aos ditames da graça vão sendo transpostos, porque nada pode deter a marcha
daqueles que amam. Quem se entrega por inteiro ao amor sobrenatural torna-se
capaz de realizar prodígios, tal como fizeram os grandes heróis da Fé.
Santa Joana d’Arc, por exemplo,
montou no cavalo, vestiu uma armadura, liderou um exército e conquistou a
liberdade de sua nação. Santa Catarina de Sena, grande Doutora da Igreja,
conseguiu que o Papa voltasse à Sé de Roma após mais de meio século de exilio
em Avignon, e aconselhou com tanta sabedoria os poderosos de seu tempo que
ninguém pôde questionar a inspiração divina de suas palavras. Para ambas não
houve lei de prudência humana que significasse um impedimento. Movidas por esse
fogo abrasador, devotaram-se a uma causa superexcelente, enfrentaram com
determinação sobre-humana as maiores adversidades e mudaram os rumos da
História.
Essas foram almas que possuíram
a plenitude da caridade, para cuja representação Nosso Senhor não encontrou
melhor símbolo que o fogo, pois a chama é atraente, bela, eleva seu brilho para
o céu e ilumina. Ao mesmo tempo, contudo, queima, e diante desse poder de
combustão não há quem cometa a temeridade de julgá-lo inócuo.
O batismo do Calvário
50 “Devo receber um batismo, e como estou ansioso até
que isto se cumpra!”
Evidenciando ainda mais quanto
a propagação deste fogo depende de seu próprio impulso, o Mestre revela ter
necessidade de passar por um batismo, valendo-Se, para isto, da incisiva formulação
“devo receber”. Já recebera Ele, nos primórdios da vida pública, o batismo de
São João — do qual não precisava, mas quis ser dele partícipe para santificar
as águas do universo, entre outras razões
—, o que torna claro não Se referir aqui ao batismo penitencial. Acima
deste — e infinitamente mais valioso! — está o doloroso batismo de sangue
operado pelos tormentos da Paixão. O autorizado parecer de Maldonado sintetiza
a opinião dos exegetas a esse respeito, uma vez que Nosso Senhor deixa a
afirmação envolta numa penumbra um tanto misteriosa: “Chama batismo, indubitavelmente,
à sua Paixão e morte, como todos os intérpretes admitem [...]. De sorte que ser
batizado, que é propriamente submergir-se nas águas, interpreta-se aqui por
padecer e morrer; e batismo, por tribulação, paixão e morte”.4 Dada a suprema perfeição
de Cristo, compreende-se não redundar esse batismo em um benefício para Ele,
que é Deus, mas sim para a humanidade.
Qual seria a razão de estar Ele
ansioso para que isto se cumprisse? O resgate do gênero humano a ser operado
através dessa entrega, pois seu amor infinito pelas almas O impelia a querer
purificá-las quanto antes e fazer com que esse fogo começasse a consumir as misérias
humanas, transformando os homens em perfeitos filhos de Deus. Era o “desejo
ardente e generoso com que, como Redentor, Jesus queria de alguma maneira
antecipar sua Paixão, devido aos frutos de salvação que ela haveria de produzir
para a linhagem humana” .
Tal como se verifica em todos
os pormenores e ditos da vida do Salvador, um sublime ensinamento dimana desta
passagem: Jesus nos mostra o quanto devemos anelar por ver logo realizado o bem
que nos cabe fazer. A partir do momento em que a vontade divina a nosso
respeito se torna clara, devemos ansiar por cumpri--la sem demora, empenhando
nisso todos os nossos esforços, dedicação e sacrifícios, a fim de sermos
instrumento da graça para a salvação do próximo. O fogo da caridade não
comporta delongas, pois estas significam um esmorecimento de fervor; assim,
Jesus, movendo-Se apenas por amor ao Pai e a nós, caminha ávido para o
tormento, como sublinha Santo Ambrósio: “Tamanha é a condescendência do Senhor,
que testemunha ter um grande desejo em seu coração, de infundir-nos a devoção,
de consumar em nós a perfeição e de levar a cabo, em nosso favor, sua Paixão”.6
A dadivosidade do Coração de Jesus
A infinita dadivosidade de tal
entrega nos conduz à consideração dos benefícios recebidos de Cristo: Ele quis
encarnar-Se, sofrer todas as vicissitudes de uma natureza humana padecente,
tais como fome, frio, sede, calor, cansaço, injúrias.., e, além de tudo,
receber o batismo de sangue. Realizou o holocausto com o intuito de reparar nossas
faltas e oferecer-nos a purificação de todas as manchas do pecado de nossos
primeiros pais, Adão e Eva, devolvendo-nos o estado de graça e reintroduzindo-nos,
assim, na familiaridade com Ele pela participação da natureza divina,
concedendo-nos o privilégio de sermos filhos do Pai por adoção: seus irmãos e
coerdeiros, para gozarmos a eternidade junto a Ele. Desse modo entrevemos,
ainda que de forma muito imperfeita, as dimensões extraordinárias do Sagrado
Coração de Jesus, coração humano unido hipostaticamente a Deus, no qual há
inteira conformidade entre o amor que parte da humanidade e o que se origina na
divindade. São dois amores coexistentes num mesmo Coração, tornando-se, por
isso, incompreensíveis, inatingíveis e inabarcáveis por nosso limitado intelecto.
Depois do ápice de doação desse
Coração consumada no Calvário, compreende-se que o desenrolar da História não
mais poderia ser como antes.
UMA NOVA ERA PARA A HUMANIDADE
Após ter sintetizado em dois
extraordinários versículos o transbordamento de amor com o qual trouxe a
salvação à humanidade, Nosso Senhor acentua, nos seguintes, as consequências da
adesão à sua Pessoa e doutrina. Com efeito, desde o primeiro pecado cometido
por Adão e Eva até a Encarnação, existia uma força predominante na face da
Terra que podemos designar como sendo o poio do mal. Embora vigorasse a
promessa divina, assegurando a Redenção, e a solicitude do Criador se exercesse
de modo constante em favor dos judeus, é patente que entre os demais povos da
Antiguidade existia um só consenso humano pelo qual o mal reinava em todos os
ambientes, não havendo meios de os bons realizarem obras relevantes para
destruírem o império do demônio. Com base naquela pseudo-harmonia produzida pelo
pecado — uma unidade enganosamente perfeita —, os poderes infernais
estabeleceram a coesão do mal. Era, por assim dizer, proibido ser bom, e todos
os homens, com raríssimas exceções, adaptavam-se à mentalidade dominante. Até
os que praticavam o bem o faziam quase sempre na surdina, sem se tornarem conhecidos,
sob pena de suas boas ações serem aniquiladas com ímpeto avassalador, caso elas
adquirissem vulto significativo.
Ora, a vinda de Cristo ateou o
fogo do amor divino sobre a Terra e inaugurou o polo do bem, com extraordinária
força de expansão. Como observa o padre Manuel de Tuya: “Esse fogo que Ele
propaga na Terra exigirá que se tome partido por Ele. Incendiará muitos, e por
isso Ele traz a ‘divisão’, não como um objetivo, mas como uma consequência”.7
Uma radical separação torna-se inevitável, pois quem adere ao bem restringe a
ação de quem opta pelo mal e impede o seu progresso, abrindo-se, desse modo, um
abismo que os distancia.
Continua no próximo post
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1) A esse respeito, diz
Garrigou-Lagrange: “São Tomás (C. Gentes, IV, c.90; lila; Suppi., q.70, a.3) e
seus melhores comentadores admitem que o fogo do inferno recebe de Deus virtude
de atormentar os renegados” (GARRIGOU-LAGRANGE, OP, Réginald. O homem e a
eternidade. Lisboa: Aster, 1959, p.153). Ver também SAO TOMAS DE AQUINO. Suma
Teológica. Suppi., q.97, a.5,
ad 3; a.6, ad 2.
2) GOMA Y TOMÁS, Isidro. El Evangelio explicado. Años primero y segundo de
la vida pública de Jesús. Barcelona: Acervo, 1967, v.11, p.195.
3) Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO, op.
cit., III, q.39, a.1.
4) MALDONADO, SJ, Juan de. Comentarios a los Cuatro Evangelios. Evangelios
de San Marcos y San Lucas. Madrid: BAC, 1956, v.11, p.609.
5) FILLION, Louis-Claude. Vida de Nuestro Señor Jesucristo. Vida
pública. Madrid: Rialp, 2000, v.11, p.385.
6) SANTO AMBROSIO. Tratado sobre el Evangelio de San Lucas.
L.VII, n.133. In: Obras. Madrid: BAC, 1966, v.1, p.411
7) TUYA, OP, Manuel de. Biblia
Comentada. Evangelios. Madrid: BAC, 1964, v.V p.855.
8) Cf. SANTO AGOSTINHO. De
Civitate Dei. LXIX, c.13, n.1.
In: Obras. Madrid: BAC, 1958, v.XVI-XVII, p.1398.
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