Comentário ao
Evangelho – IV Domingo do Tempo Comum – Mc 1, 21-28
21 “Na cidade de Cafarnaum, num dia de sábado, Jesus entrou
na sinagoga e começou a ensinar. 22 Todos ficavam admirados com o
seu ensinamento, pois ensinava como quem tem autoridade, não como os mestres da
Lei. 23 Estava então na sinagoga um homem possuído por um espírito
mau. Ele gritou: 24 ‘Que queres de nós, Jesus Nazareno? Vieste para
nos destruir? Eu sei quem tu és: tu és o Santo de Deus’. 25 Jesus o
intimou: ‘Cala-te e sai dele!’. 26 Então o espírito mau sacudiu o
homem com violência, deu um grande grito e saiu. 27 E todos ficaram
muito espantados e perguntavam uns aos outros: ‘O que é isto? Um ensinamento
novo dado com autoridade: Ele manda até nos espíritos maus, e eles obedecem!’. 28
E a fama de Jesus logo se espalhou por toda a parte, em toda a região da
Galileia” (Mc 1, 21-28).
Duas
bandeiras... uma só escolha!
Para ganharmos a batalha da nossa vida espiritual devemos
procurar atingir uma união plena e perfeita com o Supremo Capitão, servindo-nos
para isso de todos os elementos que Ele põe ao nosso alcance.
Mons.
João Scognamiglio Clá Dias, Ep
I – A batalha da nossa vida espiritual
Uma das mais cogentes
meditações propostas por Santo Inácio nos seus famosos Exercícios Espirituais é
a das “Duas Bandeiras”. Nela, o fundador da Companhia de Jesus nos apresenta a
vida espiritual como um campo de batalha onde se defrontam dois exércitos: o de
Nosso Senhor Jesus Cristo, supremo Capitão e Senhor, e o de satanás, mortal
inimigo da natureza humana.
Diante desses
comandantes antagônicos, com traços muito bem definidos, torna-se impossível
assumir uma postura de neutralidade. “Cristo chama e quer todos os homens sob a
sua bandeira; e Lúcifer, ao contrário, debaixo da dele”.1 Não há uma terceira
opção; é preciso fazer uma escolha.
O peculiar governo do demônio
Quais são as
características do chefe dos maus? No Evangelho de São João, Nosso Senhor o
qualifica como “mentiroso e pai da mentira”. “Ele é homicida desde o princípio
e não se manteve na verdade, porque a verdade não estava com ele. Quando fala
da mentira, fala daquilo que lhe é próprio, porque ele é mentiroso e pai da
mentira” (Jo 8, 44).
Incapaz de agir
diretamente sobre a inteligência e a vontade do homem, o demônio procura
governar as almas através de um influxo externo que visa obscurecer-lhes
progressivamente o raciocínio até obnubilar nelas o discernimento entre o bem e
o mal. Por meio de recursos psicológicos, que utiliza com maestria, busca
encher seus corações de desejos que os levem a pecar cada vez mais. A cada
falta cometida, a vontade do pecador se debilita, sua inteligência perde a
lucidez e ele torna-se mais vulnerável ao seu feitor.
Ora, esse arrogante
caudilho não tem nenhum poder de penetrar na alma, nem sequer na de um
possesso, pois, neste caso, seu domínio diz respeito apenas ao corpo. Sua ação
é análoga à do assaltante que, ao roubar um carro, assume a direção deste,
empurrando o dono para o banco do passageiro: tem o controle do veículo, mas
não da inteligência ou da vontade do proprietário.
Cristo vive nas almas em estado de graça
No extremo oposto do
campo de batalha está Nosso Senhor. Ao contrário do “pai da mentira” que almeja
escravizar as criaturas racionais por toda a eternidade no inferno, Cristo
deseja nossa salvação.
Como o chefe dos
maus, o Supremo Comandante dos bons serve-Se muitas vezes de influxos externos
para conduzir os que Lhe pertencem. Mas, ao invés do demônio, Ele pode agir no
interior das almas através de uma graça eficaz, diante da qual a vontade e a
inteligência se submetem sem opor qualquer obstáculo.2 Porque “como a argila
está nas mãos do oleiro, para que a molde e dela disponha a seu bel prazer,
assim o ser humano está nas mãos de Quem o fez” (Eclo 33, 13-14).
A presença do demônio
é sempre exterior à alma. E ainda que, em caso de possessão, a vida consciente
desta se encontre suspensa, ele jamais poderá invadi-la, porque “só Deus tem o
privilégio de penetrar na própria essência da alma, por sua virtude criadora, e
ali estabelecer sua morada”.3 Santificada pela graça, a alma é inabitada pela
Santíssima Trindade, que nela infunde sua própria vida através do Verbo Encarnado.
Por isso São Paulo afirma, com toda propriedade: “Eu vivo, mas já não sou eu; é
Cristo que vive em mim. A minha vida presente, na carne, eu a vivo na fé no
Filho de Deus, que me amou e Se entregou por mim” (Gal 2, 20).
Luta infinitamente desigual
Analisada sob esse
prisma, a luta descrita por Santo Inácio apresenta-se infinitamente desigual: o
caudilho dos maus só obtém poder sobre a inteligência e a vontade das criaturas
à medida que elas lhe abram as portas da alma; Nosso Senhor, pelo contrário, produz
“tanto o querer como o fazer, conforme o seu agrado” (Fl 2, 13). Com efeito,
Cristo pode atuar em nosso interior “de modo tão eficaz que produz infalivelmente
o desígnio de Deus sem, entretanto, comprometer a liberdade da alma que adere à
graça e a secunda de forma libérrima e ao mesmo tempo infalível”.4 Foi o que
aconteceu com São Paulo a caminho de Damasco (cf. At 9, 1-6): uma graça criada
por Deus, por iniciativa d’Ele, converteu-o de modo imediato.
Portanto, para
ganharmos a batalha da nossa vida espiritual, devemos procurar atingir uma
união plena e perfeita com o Supremo Capitão, servindo-nos de todos os
elementos que Ele põe ao nosso alcance para isso. Pois somente através da
participação na própria vida divina poderemos vencer definitivamente os
ardilosos embates do “pai da mentira”.
II – A doutrina viva do divino mestre
No episódio recolhido
pela liturgia deste 4º Domingo do Tempo Comum vamos contemplar um encontro
entre essas duas bandeiras na sinagoga de Cafarnaum. De um lado vemos o Divino
Mestre pregando a Boa Nova pela primeira vez; de outro o “espírito mau”,
instalado no corpo de um dos presentes.
O encargo de interpretar e adaptar a Lei
21 “Na cidade de Cafarnaum, num dia de sábado, Jesus
entrou na sinagoga e começou a ensinar”.
Segundo a praxe do
culto judaico, sendo “dia de sábado”, Nosso Senhor e seus primeiros discípulos
deviam comparecer à sinagoga para ouvir as Escrituras. Entretanto, o Evangelho
deixa claro não ter ido Jesus apenas para escutar, mas principalmente para
ensinar.
Pregar na sinagoga
não era uma função que cabia a qualquer um. Era preciso ter sido formado em
alguma das escolas rabínicas, e ter dado provas de capacidade para interpretar
a Lei e os Profetas segundo os princípios por ela estabelecidos. Os doutores
das sinagogas transmitiam aquilo que eles mesmos aprenderam de mestres
conceituados como Shamai ou Hilel, evitando critérios próprios que poderiam
ocasionar o surgimento das mais variadas doutrinas.
Nos tempos do
Deuteronômio, correspondia aos sacerdotes ensinar e explicar a Lei, e assim se
estendeu o costume durante muitos séculos. Contudo, após o exílio na Babilônia,
constitui-se uma nova categoria de homens dedicados a essa tarefa: os escribas.
O primeiro a receber esse nome no sentido de “mestre da Lei” foi Esdras, de
estirpe sacerdotal (cf. Es 7, 1-6), mas muitos outros receberam o mesmo título,
sem pertencer à linhagem de Aarão.
Pregação dos mestres da Lei
Na época de Nosso
Senhor, os escribas formavam uma classe à parte. Tendo por encargo transmitir e
interpretar a Lei de geração em geração, foram aos poucos adaptando certas
prescrições da Sagrada Escritura até o extremo de criar normas estranhas ao
espírito dos preceitos mosaicos. Mas diante do povo eles apresentavam-se como
os sábios, ou hakamim, e se protegiam de qualquer crítica inculcando a ideia de
que subestimar as palavras dos chefes religiosos era um pecado tão grave como
desprezar a palavra de Deus.5
A substância da sua
pregação era a mesma do Divino Mestre, pois tinham por ministério transmitir e
interpretar a Sagrada Escritura, cujo autor último é Ele próprio. Mas,
deixando-se levar por suas más inclinações, haviam distorcido a doutrina
revelada segundo suas próprias conveniências, como explicam os professores
Robert e Tricot: “Graças a uma sutil casuística, eles acomodavam certas
prescrições da Lei à necessidade dos tempos ou à fraqueza dos homens; outras
vezes ainda, valendo-se de engenhosos artifícios ou de artimanhas exegéticas,
criavam obrigações alheias à letra e ao espírito da Lei”.6
No decorrer dos
tempos, os erros se solidificaram. A decadência dos escribas era tal que eles
procuravam ocultar ao povo a verdadeira doutrina, para não serem desmascaradas
as deturpações feitas ao capricho de seus vícios. Em consequência, sua pregação
estava destituída de autoridade, porque a palavra de quem não vive o que ensina
carece de qualquer força.
Continua no próximo
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