Comentário
ao Evangelho — 12º Domingo do Tempo
Comum - Ano B
Mons João Clá Dias
35 Naquele dia, ao cair da tarde, Jesus
disse a seus discípulos: “Vamos para a outra margem!” 36 Eles despediram a
multidão e levaram Jesus consigo, assim como estava, na barca. Havia ainda
outras barcas com ele. 37 Começou a soprar uma ventania muito forte e as ondas
se lançavam dentro da barca, de modo que a barca já começava a se encher. 38 Jesus
estava na parte detrás, dormindo sobre um travesseiro. Os discípulos o
acordaram e disseram: “Mestre, estamos perecendo e tu não te importas?” 39 Ele
se levantou e ordenou ao vento e ao mar: “Silêncio! Cala-te!” O vento cessou e
houve uma grande calmaria. 40 Então Jesus perguntou aos discípulos: “Por que
sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?” 41 Eles sentiram um grande medo e
diziam uns aos outros: “Quem é este, a quem até o vento e o mar obedecem?” Mc
4, 35-41
A borrasca: um castigo ou uma
graça?
É bem paradigmática — não só para cada alma, mas também para a
Igreja — essa tempestade pela qual passaram os Apóstolos: após as borrascas, a
Igreja ergue-se sempre mais forte, mais jovem e com a sua beleza
incomparavelmente acrescida.
I – Um pouco de História
Entre
os grandes sermões sobre o Reino (o da Montanha e o das Parábolas) deu-se a
viagem narrada no Evangelho de hoje, tendo como ponto de partida a famosa
cidade de Cafarnaum, à qual Jesus e seus discípulos ainda retornariam.
Sempre
rodeado de muita gente, conseguia ser mais visto e ouvido por todos quando
utilizava a natural inclinação da praia e os momentos de calmaria das águas, ao
pregar de dentro de uma barca no Lago de Tiberíades. Esse “mar” de Genesaré, ou
da Galiléia, como costumeiramente é chamado, e que se localiza ao nordeste da
Palestina, com o tempo passou a ser a fronteira oriental da Galiléia. Tem um
tamanho considerável, sobretudo para as diminutas concentrações populacionais
daqueles tempos, pois chega a ter 12 quilômetros de largura e 21 de
comprimento, com uma superfície de 170 km2, e 12 a 18 metros de profundidade em
certas partes.
É junto
às margens desse lago que se encontra a famosa cidade de Mágdala, na qual
Maria, irmã de Lázaro, decaíra moralmente. Ali viveu durante anos, num castelo
à beira das águas, antiga propriedade de sua família. Cidade, naqueles tempos,
de grande circulação de mercadorias, de refinado luxo e, como conseqüência, de
costumes corrompidos. É nas proximidades desse lago que, além de Cafarnaum,
encontramos as outras duas cidades que mais assistiram aos milagres do Senhor,
sem se converter: Corozaim e Betsaida.
Nessas
regiões Nosso Senhor atuou seguidamente, realizando retumbantes milagres como a
multiplicação dos pães e dos peixes, e empreendendo uma de suas mais famosas
viagens.
II – O acontecimento
A
multidão se espremia a cada instante para melhor acompanhar as maravilhas
saídas dos lábios do Salvador. De fato, dissera Ele: “Está escrito: Não só de
pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus” (Mt 4, 4). Todos
estavam presos àquela adorável voz. Queriam aproveitar as nesgas de luz solar
que ainda restavam, para se alimentar daqueles manjares eternos. Por outro
lado, em meio ao cansaço daquela ininterrupta jornada, Jesus planejava lançar
mão de um de seus refúgios, assim classificados por São Remígio: “Lê-se que o
Senhor teve três refúgios, a saber: o barco, o monte e o deserto. Sempre que a
multidão O assediava, refugiava-se em um deles” (1).
O
Divino Mestre, antes do anoitecer, determinou aos Apóstolos que rumassem ao
outro lado, ou seja, à cidade de Gerasa. Chegara o momento dos últimos pedidos
e das incontáveis despedidas finais, naquele alvoroço tão próprio ao
temperamento oriental. Não deviam faltar aqueles ou aquelas que, não se
importando em algo molhar suas vestimentas, aproximaram-se da embarcação para
se beneficiar das derradeiras graças daquele abençoado convívio.
Para
melhor exercitar a confiança no Pai, alçadas as âncoras, partiram as
embarcações sem nenhuma provisão. Comenta Andrés Fernández Truyols SJ:
“O mar
estava em bonança; o barco deslizava, suave e ágil, sobre o liso cristal das
águas.
“Os
Apóstolos conversavam tranquilamente e faziam seus cálculos: dentro de umas
duas horas, antes do cair da noite, chegariam à margem oposta, distante apenas
uns doze quilômetros. Estavam longe de pensar que pouco depois uma súbita
tempestade poria sua fé e confiança a dura prova, proporcionando ao Divino
Mestre a ocasião de dar uma esplêndida mostra de seu soberano poder.
“Esse
diminuto Mar da Galileia, que de ordinário apresenta-se na aprazível
tranquilidade de suas águas, guarda sempre latente a ameaça de alguma furiosa
tempestade.
“Situado
a mais de duzentos metros abaixo do nível do Mediterrâneo, e apertado de quase
todos os lados por um cinturão de montes, recebe sobre sua lisa
superfície os ventos que se precipitam do alto do Hermon. Sob esse duro golpe,
suas águas se revoltam e saltam como fogoso corcel golpeado pelo chicote. Foi o
que se passou nesse dia em que os Apóstolos, ao deixarem a pequena enseada,
viram as águas muito tranquilas, sem notar o menor indício de tormenta próxima.
“Jesus
aproveitou essa tranquilidade para descansar das fadigas do dia. Estendeu-se na
popa, apoiando a cabeça sobre o travesseiro, como nota Marcos (4, 38),
provavelmente um pequeno saco de couro cheio de lã, simples e tosco, que, para
comodidade dos próprios marinheiros, ou talvez de algum viajante distinto, com
certeza as barcas costumavam levar, uma vez que o Evangelista trata disso como
algo bem determinado e conhecido, acrescentando o artigo definido (έπί τò
πρσχεφάλατσυ). Como os anjos do Céu deveriam estar contemplando seu Rei e
Senhor deitado sobre a dura madeira: restaurando suas forças com o sono, Ele,
que vigia desde toda a eternidade; vencido pela fadiga, Ele, que move com seu
dedo o universo inteiro!
“De
súbito, desenhou-se no rosto dos Apóstolos um movimento de inquietação;
interrompeu-se a conversa, fixaram-se as vistas no horizonte: sua longa
experiência lhes fazia pressentir a tormenta. E ela se precipitou, e desde logo
com um ímpeto formidável.
“Enquanto
a tempestade fremia, Jesus continuava dormindo. “No princípio, os Apóstolos
respeitariam o sono do Mestre. Desceriam as velas, tomariam os remos,
poriam em jogo os meios sugeridos por sua perícia na arte de navegar para
enfrentar o perigo ameaçador. Mas o mar se enfurecia mais e mais, e a
embarcação corria o risco de ser tragada pelas ondas. Então, como supremo
recurso, achegamse ao Mestre: ‘Senhor, salva-nos, pois perecemos!’ Ou, segundo
a expressão mais viva de São Marcos: ‘Mestre, não Te importa que pereçamos?’
“Tais
palavras revelam bem quão turbados estavam os Apóstolos e como havia diminuído
sua confiança. No entanto, não estava Jesus com eles? Não estava ali quem
disse: ‘Fui Eu quem pôs a areia por limite do mar (...) Por mais que se lhe
agitem as ondas, são impotentes, murmuram, mas não vão além’? (Jr 5, 22)” (2).
III – O Evangelho
35 Naquele dia, ao cair da tarde, Jesus
disse a seus discípulos: “Vamos para a outra margem!”
São
Lucas também assim nos relata esse fato (8, 22-25). São Mateus se cala sobre
esse particular. Embora nenhum dos dois Evangelistas declare as razões que
levaram o Divino Mestre a tomar essa decisão, são elas facilmente dedutíveis.
Como anteriormente dissemos, sintetizam-se na estafa física depois de um
laborioso dia. Não nos esqueçamos da natureza humana de Jesus, se bem estivesse
unida à divina. Assim, São João também menciona o cansaço do Salvador naquela
ocasião em que Ele, estando sentado junto ao poço, vê surgir a samaritana,
momento no qual ainda manifesta ter sede (cf. Jo 4, 6-7).
No
presente episódio, a plausibilidade dessa hipótese se torna clara pelo profundo
sono no qual Jesus caiu, logo depois de subir à barca.
36 Eles despediram a multidão e levaram Jesus
consigo, assim como estava, na barca. Havia ainda outras barcas com ele.
Maldonado
interpreta o fato de tomarem os Apóstolos a mesma embarcação de Jesus como algo
providencial, pois assim, quando Ele os repreendesse pela falta de fé, isso
poderia ser feito com toda a liberdade. Parece-nos, porém, mais provável que as
circunstâncias assim o exigissem, uma vez que a barca lhes pertencia. Além
disso, já se tornara tradicional estarem eles com o Mestre.
Também
tradicional era a falta de preparativos para a viagem. Quantos pães e peixes
possuíam eles por ocasião dos dois milagres de sua multiplicação? “Não leveis
nada para o caminho, nem bastão, nem alforje, nem pão, nem dinheiro, nem leveis
duas túnicas” (Lc 9, 3), dissera-lhes Ele. Por isso conduziram-n’O na barca na
situação em que se encontravam. De outro lado, pondera São João Crisóstomo,
Jesus quis tê-los por testemunhas de seus milagres, mas desejava evitar aos
outros o escândalo de verem que eles tinham tão diminuta fé.
Levantou-se uma grande tempestade
37 Começou a soprar uma ventania muito
forte e as ondas se lançavam dentro da barca, de modo que a barca já começava a
se encher.
Essa
tempestade não se armou por acaso. Não poucas vezes, por causa de uma
preocupação naturalista, quer-se atribuir aos elementos a causa, a força e a
glória dos milagres. Essa simplória tendência chama a atenção de certos autores
de fama, como, por exemplo, Fillion: “Em cada uma das categorias dos milagres
evangélicos já ficaram indicadas as objeções mais comuns e mais recentes do
racionalismo, e os princípios que ajudam a refutá-las. Não é, pois, necessário
ocupar-nos das elucubrações da crítica liberal acerca dos milagres do Salvador,
considerados isoladamente. (3). E, a seguir, o conceituado autor expõe o pensamento
de vários dos racionalistas contemporâneos.
Infelizmente,
os limites deste artigo não permitem discorrer sobre esse recalcitrante
racionalismo, um mal muito mais difundido do que parece. Contra seu dogmatismo,
lembremo-nos de que “pela palavra do Senhor foram feitos os céus; e pelo sopro
de sua boca [formaram-se] todos os seu exércitos. Ele junta como num odre as
águas do mar; Ele põe as ondas como em reservatórios” (Sl 32, 6-7). Esse é o
poder de Deus, muito acima do poder da razão humana, também por Ele criada.
“Começou
a soprar uma ventania muito forte”. Alguns autores admitem ter sido essa
tempestade ordenada pelo próprio Senhor, e foi ela grande para que grande
também fosse o prodígio. Ademais, quanto maior fosse o medo dos seus
discípulos, maior seria o alívio de, por Ele, terem sido salvos.
As tormentas interiores
Ao
longo dos dois últimos milênios, com frequência os comentaristas fazem uma
aproximação entre esse paradigmático episódio e a Igreja ou a alma em sua vida
espiritual. Quando falam da Igreja, referem-se mais às perseguições por ela
sofridas, assim como às divisões e heresias surgidas em seu seio. Ao fazerem a
aplicação à alma, concentram sua atenção nos justos e não nos pecadores, os
quais, mesmo que possam ser considerados como uma “barca”, nesta não se
encontrará Cristo, nem sequer dormindo.
Seja
como for, todos nós passamos por tormentas interiores, às vezes, violentas.
Dão-se elas por causas exteriores, mas com frequência também por razões
interiores. Sobre estas se multiplicam as apreciações destes ou daqueles
autores, como, por exemplo, as do Beato João de Ávila:
“Há
aqueles que perderam essa joia da castidade por castigo de Deus que, como diz
São Paulo, com justo juízo os abandonou ‘aos desejos desonestos de seus
corações’ (Rm 1, 24), como nas mãos de cruéis carrascos. (...) E mesmo que isso
seja geral com todos os pecados, é especialmente com o da soberba. Deus costuma
castigar a soberba secreta com a luxúria manifesta. Nabucodonosor, por castigo
de sua soberba, foi rebaixado ao nível dos animais (Dn 4, 20-31), no qual
permaneceu até conhecer e confessar que a excelência do reino é de Deus.
“Há
quem tem a soberba da castidade, crendo quase que ela é devida a suas forças.
Deus o expulsa de entre os seus, e, uma vez fora da companhia dos anjos, ele
cai entre os animais.
“Outros
são soberbos e desprezam seus próximos por vê-los carentes de virtude,
especialmente da castidade. Parecem-se com o fariseu em sua oração: ‘Não sou
mau como os outros homens, nem adúltero’ (Lc 18, 11). Quantas pessoas já vi
serem castigadas com a queda, por cometer este pecado! ‘Não condeneis e não
sereis condenados’ (Lc 6, 37). ‘Com a mesma medida que medirdes sereis medidos’
(Mt 7, 2). ‘Ai de ti que desprezas, porque serás desprezado!’ (cf. Is 33, 1).
“Somos,
todos os homens, da mesma massa, e todos podemos cair nos pecados em que tenham
caído nossos próximos. Tiremos, pois, bem do mal alheio, tomando como salutar
advertência a nós a queda de nosso próximo.
“Não
nos esqueçamos de Davi, o qual, segundo diz São Basílio (cf. Hom. in Ps. 38: PG
30, 87) caiu porque, posto diante da abundância de graças, acreditou-se seguro.
‘Eu disse em minha abundância: Não serei jamais mudado’ (Sl 29, 7). Esqueceu-se
da sentença do Eclesiástico: ‘Nos dias dos bens que temos, recordemo-nos dos
males em que podemos cair’ (cf. 11, 27).
“Parecida
com essa soberba é a vã confiança de quem procura a castidade apoiando-se
apenas em suas próprias forças. Este pode repetir o que foi dito pelos
apóstolos: ‘Trabalhamos a noite inteira em vão’ (Lc 5, 5), ou pelo
Eclesiástico: ‘Quanto mais eu a procurava, tanto para mais longe fugiu de mim’
(7, 24). O que significa excesso de confiança em si mesmo e falta de oração ao
Senhor e a Maria.
“Quando
era o tempo em que os reis (cf. 2 Sm 11, 1-4) saíam para batalhar, Davi enviou
seus generais, mas ele, acentua o livro santo, deixou-se ficar em casa e,
passeando, caiu na tentação e no pecado de adultério. Quem foge do trabalho e
do cumprimento de suas obrigações, logo será tentado.
“Por
fim, a rebeldia da carne, de que sofre a humanidade, vem da desobediência de
Adão. Quem desobedece a Deus e a seus representantes — os superiores —, costuma
ser logo castigado com a revolta de suas potências inferiores à razão” (4).
A quem
Deus castiga? Por incrível que pareça, Ele permite à tempestade desabar sobre
as almas amadas por Ele. É o próprio Deus que declara fazer uso desse
procedimento: “Não desprezes, meu filho, as lições de teu Deus; nem te irrites
quando Ele te repreender, pois o Senhor castiga aquele a quem ama, como a um
filho querido” (Pr 3, 11-12). “Aos que amo, Eu os repreendo e castigo. Sê,
pois, zeloso e arrepende-te” (Ap 3, 19).
Deus nos corrige através da
tribulação
Santo
Agostinho é também categórico a esse propósito, pois assevera não pertencer à
classe dos filhos quem não passa por atribulações. E em São Paulo encontramos a
perfeita explicação: “É para vossa emenda que sofreis provação. Deus vos trata
como filhos. E qual é o filho a quem seu pai não corrige? Se, porém, fôsseis
privados da correção, da qual todos são participantes, então seríeis bastardos,
e não filhos legítimos. Além disso, visto que nossos pais segundo a carne nos
castigam, e nós os respeitamos, quanto mais não devemos ser obedientes ao Pai
das nossas almas, para termos a vida? E aqueles castigavam-nos por um período
de poucos dias, como bem lhes parecia. Este, porém, para nosso bem, para nos
tornar participantes da sua santidade” (Hb 12, 7-10).
Esses
trechos das Escrituras fazem-nos melhor compreender quanto o aparente sucesso
dos maus, suas delícias e prosperidade muitas vezes podem significar um dos
piores castigos. Davi nos ensina como “o ímpio diz em sua arrogância: Não há
castigo! Deus não existe! (...) Diz em seu coração: Jamais serei abalado, não
hei de cair na desgraça” (Sl 9, 25-27).
Assim,
podemos dizer de Deus que, sendo Pai de toda consolação, é também o Pai da
tribulação. Através desta, Ele nos corrige. Castiga-nos a fim de nos
emendarmos, pois jamais quer a morte do pecador, mas sim que se converta e viva
(cf. Ez 33, 11).
Bons e maus passam por borrascas
Em
síntese, bons e maus passam por borrascas; o problema está na disposição
interior de uns e de outros durante elas, conforme explica Santo Agostinho:
“Apesar
de os justos e os maus sofrerem o mesmo tormento, virtude e vício não são a
mesma coisa. Porque, assim como com um mesmo fogo o ouro resplandece,
descobrindo seus quilates, e a palha fumega, e com o mesmo debulhador se quebra
a arista da espiga do trigo e limpa-se o grão, assim também uma mesma adversidade
prova, purifica e aprimora os bons, enquanto reprova, destrói e aniquila os
maus. Por conseguinte, quando atingidos por uma mesma calamidade, os pecadores
abominam a Deus e blasfemam contra Ele, e os justos O glorificam e pedem
misericórdia. A diferença entre tão variados sentimentos consiste, não na
qualidade do mal que se padece, mas nas pessoas que o sofrem; porque,
revolvidos da mesma maneira, o lodo exala um fedor insuportável, e o perfume
precioso, uma fragância suavíssima” (5).
O “sono” de Jesus em nossa alma
38 Jesus estava na parte detrás, dormindo
sobre um travesseiro.
Tal
como a tempestade, o sono de Jesus naquele momento parecia ser preconcebido
segundo uma finalidade que Ele tinha em vista. Era altamente formativo para
seus discípulos sentirem a própria contingência e, assim, serem estimulados a
recorrer a Ele em última instância. Com isso estariam criadas as condições para
a manifestação de seu poder divino. A esse respeito nos diz São João
Crisóstomo: “Se Ele tivesse estado acordado, ou eles não tivessem temido nem
tivessem rogado que os salvasse quando a tempestade se levantou, não teriam
pensado que pudesse fazer tal milagre” (6).
Com
muito acerto, fazem os autores uma aproximação entre esse fato ocorrido com os
Apóstolos e o mistério do “sono” de Jesus, que às vezes se repete durante a
tempestade pela qual passam nossas almas. Esse “sono” de Jesus poderá ser real
ou aparente.
Quando nós nos afastamos de
Jesus: “sono real”
Se, por
desgraça, abraçamos o pecado mortal, nós nos afastamos de Jesus. Este é o mais
terrível dos “sonos”, pois somos nós que O obrigamos a distanciar-Se de nós,
além de perdermos a graça santificante. Logo em seguida arma-se a tempestade de
nossas más tendências e paixões desordenadas, e submerge nosso senso moral. E
se, nessa situação, somos apanhados pela morte, Deus dormirá em relação a nós o
“sono eterno” de nossa terrível condenação ao inferno. Não haverá jamais, neste
caso, meios de despertá-Lo.
Para o progresso de nossas almas:
“sono aparente”
Há
circunstâncias dolorosas em nossa vida espiritual, nas quais Jesus parecerá
dormir, causando-nos a sensação de estarmos abandonados. Essa será uma ótima
oportunidade para combater nossa presunção e compreender que sem Ele nada
podemos fazer (cf. Jo 15, 5). O temor de Deus não só é o princípio da
Sabedoria, mas também excelente meio de santificação (cf. Fl 2, 12). Privados
por um período das delícias de suas consolações, mais facilmente nos
purificamos das desordens de nossos afetos.
Também nosso sono deve ser
santificado
Por
outro lado, conforme comenta Santo Agostinho, levando-se em conta que as
menores ações de Jesus contêm lições de alta sabedoria para nós, o sono de
Jesus na barca mostra-nos quanto devemos santificar nosso repouso. Afinal de
contas, o sono ocupa uma considerável parte de nossa existência sobre a terra
e, em certo sentido, é imagem da morte. Se desejamos que nossa morte seja santa
e piedosa, é indispensável que também o seja sua prefiguração. É fundamental
adormecermos sob as bênçãos do Sagrado Coração de Jesus e de Maria Santíssima:
“Guardai-nos também quando dormimos! (...) nosso corpo repouse em sua paz!”
(7). Para tal, nada melhor do que evitar atitudes e modos de ser penetrados pelo
espírito de moleza, a falta de pudor ou a sensualidade.
Na hora da tempestade, desperta
tua fé e virá a bonança
38 Jesus estava na parte detrás, dormindo
sobre um travesseiro. Os discípulos o acordaram e disseram: “Mestre, estamos
perecendo e tu não te importas?”
Quando,
porém, sem culpa nossa, damo-nos conta de estarmos involucrados em algum
perigo, sigamos o conselho de Santo Agostinho:
“Cristão!
em tua embarcação dorme Cristo; desperta-O, e Ele ameaçará a tempestade e será
restabelecida a calma. Os discípulos, a ponto de naufragarem junto a Cristo
adormecido, representam os cristãos em perigo de soçobrar porque sua fé dorme.
Já sabes o que disse São Paulo: ‘que Cristo habite pela fé em vossos corações’
(Ef 3, 17). Segundo a presença de sua formosura e divindade, Cristo está sempre
com o Pai. Segundo sua presença corporal, vive agora no Céu sentado à direita
do Onipotente. Segundo a presença da fé, está dentro de nós. Portanto, se te
vires em perigo, será porque Cristo dorme, isto é, será porque não vences as
concupiscências que se levantam como vendavais de mau conselho, será porque tua
fé está adormecida. No que consiste esse sono da fé? Em te esqueceres dela. E
no que consiste despertar a Cristo? Em despertar a tua fé, em recordar o que
crias. Recorda, portanto, tua fé, desperta a Cristo, e tua própria fé dominará
as ondas que te turbam e os ventos que te aconselham o mal. Virá então a
bonança, pois mesmo que os conselhos perversos não se calem, não mais sacudirão
a embarcação, não encresparão as ondas nem poderão afundar o barquinho em que
navegas” (8).
Não O viram senão como homem
39 Ele se levantou e ordenou ao vento e ao
mar: “Silêncio! Cala-te!” O vento cessou e houve uma grande calmaria. 40 Então
Jesus perguntou aos discípulos: “Por que sois tão medrosos? Ainda não tendes
fé?” 41 Eles sentiram um grande medo e diziam uns aos outros: “Quem é este, a
quem até o vento e o mar obedecem?”
É bem
paradigmática para nós essa tempestade pela qual passaram os Apóstolos. Por
quantos perigos não passamos nós também, durante a vida? Se eles são evitáveis,
não devemos enfrentá-los; se a eles nos expusermos, se os procurarmos e os
amarmos, é certo que pereceremos. A fuga, nesses casos, acompanhada de oração,
é o melhor remédio.
Comenta
Frei Manuel de Tuya OP: “Se bem que os Apóstolos já tivessem presenciado alguns
milagres de Cristo, não se lembraram de seu poder ante um espetáculo tão
imponente. Mas seu império diante de forças cósmicas desencadeadas produz-lhes
tão forte admiração que se perguntam quem é esse que tem tais poderes” (9).
Devido
à união das duas naturezas — divina e humana — na Segunda Pessoa da Santíssima
Trindade, “o homem recebeu no tempo a onipotência que o Filho de Deus teve ab
aeterno”, diz São Tomás de Aquino (10). A alma de Nosso Senhor recebeu o poder
divino de fazer milagres numa tal superabundância que é por transmissão d’Ele
que os Santos assim também operam, como vemos em Mateus (10, 1) (11). Por essa
razão manifestou todo o seu poder, inclusive sobre as criaturas irracionais, como
os ventos, o mar, a tempestade; ou, durante sua Paixão, sobre vários elementos
quando o véu do Templo se rasgou, os túmulos se abriram, a terra tremeu e as
rochas se fenderam (12).
A
respeito desta passagem, comenta Teófilo: “Se tivessem fé, eles teriam
acreditado que, mesmo dormindo, [Jesus] podia conservá-los incólumes (...).
Acalmando, pois, o mar com uma ordem — e não com uma vara como Moisés (Ex 14),
nem com a oração como Eliseu no Jordão (2 Sm 2), nem com a arca como Josué (Js
3) —, Se mostrou a eles como Deus, e como homem, quando Se entregou ao sono”
(13).
IV – As borrascas sobre a igreja
Ao
longo de dois milênios, a Igreja viu abater-se sobre Ela toda espécie de
tempestades, ameaçando sua existência. Ora foram perseguições declaradas e
cruentas, ora silenciosas e hipócritas. Ódios mortais e ingratidões históricas
vincaram o curso das heresias e dos cismas.
Entretanto,
a Igreja nunca duvidou d’Aquele que vela por seu imortal destino. E mesmo
quando Ele parece dormir, faz ecoar no interior dos fiéis sua infalível
promessa: Ecce ego vobiscum sum omnibus
diebus, usque ad consummationem saeculi — “Eu estarei convosco todos os
dias até o fim do mundo” (Mt 28, 20). A Igreja aprendeu com os Apóstolos a
invocá-Lo e, dominando ou não a tempestade, a barca, mesmo em meio aos mais
terríveis perigos, jamais vai ao fundo. Pelo contrário, como que ressurge
sempre mais forte, mais jovem e com beleza invariavelmente acrescida. A cada
ameaça, sua glória se eleva, por ser inquebrantável sua fé.
Quão
grande bênção e que incomensurável graça sermos filhos da Igreja!
1) Apud
São Tomás de Aquino, Catena Aurea.
2 )
Vida de Nuestro Señor Jesucristo, BAC, Madrid, 1954, pp. 316-318.
3 )
Vida de Nuestro Señor Jesucristo, Ed. Voluntad, 1926, t. III, p. 564.
4 )
Obras espirituales del Padre Maestro Beato Juan de Ávila, Apostolado de la
Prensa, Madrid, 1951, pp. 49-50.
5) A
Cidade de Deus, Livro 1, cap. 8.
6) Hom
in Matt, 28, apud S. Tomás de Aquino, Catena Aurea.
7 )
Ofício Divino – Completas.
8 )
Serm. 361: PL 39, 1602.
9 )
Biblia Comentada, BAC, Madrid, 1964, v. II, p. 656.
10 )
Suma Teológica, III q. 13 a.1 ad 1.
11 ) Cf. Idem, III q. 13 a.2 ad 3.
12 )
Cf. Mt 27, 51-52 e Suma Teológica, III q. 44 a.4 ad 3.
13 )
Apud Catena Aurea.
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