Comentário ao Evangelho Solenidade do Nascimento de São João Batista
57Completou-se o tempo da gravidez de
Isabel, e ela deu à luz um filho. 58Os vizinhos e parentes ouviram dizer como o
Senhor tinha sido misericordioso para com Isabel, e alegraram-se com ela. 59No
oitavo dia, foram circuncidar o menino, e queriam dar-lhe o nome de seu pai,
Zacarias. 60A mãe, porém disse: “Não! Ele vai chamar-se João”.
61Os outros disseram: “Não existe nenhum
parente teu com esse nome!” 62Então fizeram sinais ao pai, perguntando como ele
queria que o menino se chamasse. 63Zacarias pediu uma tabuinha, e escreveu:
“João é o seu nome”. E todos ficaram admirados. 64No mesmo instante, a boca de
Zacarias se abriu, sua língua se soltou, e ele começou a louvar a Deus. 65Todos
os vizinhos ficaram com medo, e a notícia espalhou-se por toda a região
montanhosa da Judeia. 66E todos os que ouviam a notícia ficavam pensando: “O
que virá a ser este menino?” De fato, a mão do Senhor estava com ele. 80E o
menino crescia e se fortalecia em espírito. Ele vivia nos lugares desertos, até
o dia em que se apresentou publicamente a Israel. Lc 1,57-66.80
Sem honra não há verdadeira
glória
O povo de Israel ansiava pela glória mundana e por isso rejeitou
João Batista, que veio restaurar a verdadeira honra, a fim de preparar a vinda
do Messias.
I- Honra e glória: conceitos
correlatos
“Nous avons assez de gloire, Monseigneur,
mais venez nous rendre l’honneur” (1). Esta frase com a qual
Talleyrand saudou e incentivou o Conde d’Artois, que aguardava indeciso, em
Nancy, o momento oportuno de dirigir-se a Paris para a restauração da dinastia
dos Bourbons, passados os fulgores napoleônicos, foi aureolada de fama. Com ela
se encerrava a carta escrita por ele ao irmão do novo rei da França, enviada
através de Vitrolles.
Os seus
termos, e as circunstâncias históricas que a cercaram, fazem-nos lembrar a
situação psicológica e moral na qual se encontrava o povo judeu ao se deparar
com o Precursor, às margens do Jordão.
O povo judeu estava pervadido de
glória
As
miraculosas intervenções de Deus desde o nascimento da nação eleita tinham-na
tornado célebre ao longo dos séculos, destacando-a entre todas as outras. As
discussões com o Faraó do Egito e as subsequentes dez pragas, a travessia do
Mar Vermelho, o maná no deserto, as Tábuas da Lei, a tomada de Jericó, os
Juízes, os Reis, etc. — essas realidades grandiosas pervadiram de glória os
descendentes de Abraão. Tratava-se, entretanto, mais especialmente de uma
glória extrínseca, no seguinte sentido: a fama alcançada pelo povo devido às
ações do Onipotente estava muito acima da esquálida virtude de seus
beneficiados.
Ora,
depois de tantos séculos de correspondência, não só insuficiente, mas até
defectiva face a tamanha prodigalidade divina, a mentalidade do povo em geral
estava deformada. Justamente, esse distorcido mirante, ao mesmo tempo moral e
psicológico, constituía uma das razões pelas quais eles esperavam um Messias de
cunho marcadamente político, um novo Davi ou quiçá um outro Moisés, adaptado às
necessidades daquela época, para lhes conferir a supremacia sobre todas as
gentes. Eles queriam a grandeza para satisfazer seus próprios interesses,
inclusive financeiros.
Cristo veio trazer a suprema
honra
Por
outro lado, o Senhor, desde toda a eternidade, lhes reservara uma glória muito
superior, inimaginável sequer pelos Anjos: mais do que um Messias, o Cristo,
Deus e Homem verdadeiro. Ele Se faria Homem para que os homens se fizessem
filhos de Deus, e assim participassem da natureza do absoluto e eterno Senhor.
Ou seja, além da glória extrínseca, da qual já gozavam em superabundância,
receberiam uma incomensurável honra.
É de
nosso conhecimento que para o ser humano alcançar verdadeira honra, é
indispensável ele atingir a plenitude da realização de todas as suas
qualidades, sobretudo das virtudes morais. São condições essenciais para nós,
com vistas a essa realização: a doutrina, o exemplo e a graça. As Escrituras,
no que tange à doutrina, não deixaram uma só vírgula sem ser tratada; o povo
judeu conhecia bem os princípios teológico-morais que deviam pautar a conduta
de cada um. A graça nunca falta a ninguém. Quanto ao exemplo, além da história
dos heróis antepassados, era-lhe agora oferecido a mais alta arquetipia. As
multidões não tardariam muito em ouvir dos lábios do Deus encarnado: “Sede
perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5, 48). Mas quem teria visto o
Pai para imitá-Lo em sua perfeição? Esse problema seria levantado por Filipe e
Jesus assim responderia: “Quem Me vê, vê o Pai. Como Me dizes, então,
‘mostra-nos o Pai’? Não crês que Eu estou no Pai e o Pai está em Mim?” (Jo 14,
9-10).
Não é
difícil entender o quanto a verdadeira honra deve tomar o homem na sua
integridade, pois a essência dessa qualidade consiste na participação do
absoluto. Ela jamais será autêntica em alguém relativista, pois são termos que
se excluem. Vemos pela narração bíblica que Deus iria dar à humanidade a
insuperável honra de pertencer à sua Família. Impossível enobrecimento mais
alto, substancioso e belo. E por cima dessa maravilha ainda lhe ofereceria um
modelo antes inalcançável, mas que Ele tornaria inteiramente acessível a nossos
sentidos: o Filho do Homem.
Quão
insuficientes são as páginas de uma biblioteca para conter as maravilhas da
glória que Deus preparou ao seu povo e a toda a humanidade...
O papel do Precursor: restituir a
honra
Porém,
era preciso haver uma radical mudança de mentalidade da parte daqueles que
iriam receber dons de tal qualidade e em tanta quantidade. Sobretudo, era conditio sine qua non ter uma alma
penetrada de honra. Essa foi precisamente a missão do Precursor, a de tornar
honrado o povo, para bem receber o Redentor.
Dolorosamente,
entretanto, o Evangelista, logo no início de sua narração, refere-se à má
acolhida oferecida ao Salvador com estas pungentes palavras: “Veio para o que
era seu, mas os seus não O receberam” (Jo 1, 11). E por quê? Por rejeitarem, no
fundo de suas almas, esse convite a tão alta perfeição, a do próprio Pai. Aqui
se entende melhor a silhueta desse quase anacoreta do deserto, João Batista, o
Precursor.
Ele
surge como “figura única na História, aureolada de um prestígio sobre-humano
que se ergue misteriosa e solenemente no encontro dos dois Testamentos” (2),
pois foi essa a opinião sobre ele enunciada pelo próprio Redentor: “Em verdade
vos digo: entre os nascidos de mulher não apareceu ninguém maior do que João
Batista. (...) Porque todos os Profetas e a Lei anunciaram isto até João. E
quer acrediteis ou não, ele é o Elias que estava para vir” (Mt 11, 11-14).
Nesse mesmo sentido opina São Tomás de Aquino, afirmando que São João Batista
foi o fecho da Antiga Lei e a abertura da Nova, isto é, a era do Evangelho (3).
Profecias sobre o Precursor
A própria
Liturgia de hoje é envolta em mistério ao narrar o procedimento utilizado para
a escolha de seu nome, como mais adiante veremos. Essa atmosfera que o cercava
manifestou-se nos primeiros anúncios de seu futuro aparecimento. Lá pelo ano de
450 a.C., estas foram as palavras proféticas de Malaquias: “Eis que vou enviar
o meu mensageiro, a fim de que ele prepare o caminho à minha frente” (Ml 3, 1).
Já muito antes (por volta de 539 a.C., quando Ciro, rei da Pérsia, derrotou o
rei da Babilônia, Nabônides, e publicou em seguida um edito libertando os
judeus), o Dêutero-Isaías anunciava a missão do Precursor: “Uma voz clama:
Preparai no deserto o caminho do Senhor, aplanai na estepe uma estrada para o
nosso Deus. Todo vale seja levantado, e todas as colinas e montanhas sejam
abaixadas, todos os cumes sejam aplanados, e todos os terrenos escarpados sejam
nivelados” (Is 40, 3-4).
É
grandioso e belo o anúncio mais imediato de sua concepção e missão. Zacarias,
sacerdote no Templo de Jerusalém, cumpria seu turno apesar de estar em avançada
idade, sem ter tido descendentes e, ademais, sem possibilidade de os vir a
gerar. Chegara o momento de ele oferecer o incenso ao Senhor, enquanto o povo o
aguardava do lado de fora. O mesmo Arcanjo São Gabriel que seis meses mais tarde
estaria diante da Santíssima Virgem para anunciar a Encarnação do Verbo, lhe
apareceu enchendo-o de temor, mas tranquilizando-o em seguida com estas
promessas: “Não temas, Zacarias: a tua súplica foi atendida. Isabel, tua
esposa, vai dar-te um filho e tu vais chamar-lhe João. Será motivo de regozijo
e de júbilo, e muitos se alegrarão com o seu nascimento. Pois ele será grande
diante do Senhor e não beberá vinho nem bebida alcoólica; será cheio do
Espírito Santo já desde o ventre de sua mãe e reconduzirá muitos filhos de
Israel ao Senhor, seu Deus. Irá à frente, diante do Senhor, com o espírito e o
poder de Elias, para fazer voltar os corações dos pais a seus filhos e os
rebeldes à sabedoria dos justos, a fim de proporcionar ao Senhor um povo com
boas disposições” (Lc 1, 13-17).
Varão com o “espírito e o poder
de Elias”
Assim,
João apareceria como o filho da oração proferida por um sacerdote no Templo de
Jerusalém, penetrado de enorme alegria por saber que terá em sua descendência
um homem de grandeza na presença do Altíssimo; a esse futuro varão seriam
concedidos “o espírito e o poder de Elias”. Entretanto, não fará uso desses
dons como o fez seu antecessor contra os sacerdotes de Baal ou face aos
capitães e soldados de Acab. Por isso frustrará as febricitantes expectativas
do povo judeu com relação a um Messias portentoso, nimbado de toda espécie de
glória política e social. Ele pregará a mudança de mentalidade (metanóia) na
linha de uma profunda e autêntica harmonia, seja no âmbito familiar, seja
abrangendo dos rebeldes aos justos, e assim procurará criar as condições
necessárias para a vinda do Messias. Para tal, tornava-se necessária a sua
própria purificação, inclusive da mancha do pecado original. Essa foi uma das
principais razões pelas quais a Virgem Maria empreendeu penosa viagem com o
intuito de auxiliar sua prima. Ao entrar na casa de Isabel, esta “ ficou cheia
do Espírito Santo” (Lc 1, 41) e fez a bela confissão: “logo que chegou aos meus
ouvidos a tua saudação, o menino saltou de alegria no meu seio” (Lc 1, 44).
Seu
nascimento foi também incomum, pois àquela idade era impossível Isabel vir a
conceber, a ponto de Zacarias ter sido insuficiente em sua fé, ao ouvir as
claras palavras de São Gabriel: “Como hei de verificar isso, se estou velho e a
minha esposa é de idade avançada?” (Lc 1, 18). Essa reação bem comprova a
grandeza do milagre que seis meses após foi confirmado pelo próprio Arcanjo:
“Isabel, tua parenta, concebeu um filho na sua velhice e já está no sexto mês,
ela, a quem chamavam de estéril, porque nada é impossível a Deus” (Lc 1,
36-37). Se as circunstâncias humanas que cercaram sua vinda a este mundo foram
singulares, mais ainda intensas se tornaram as sobrenaturais, a ponto de um
santo temor penetrar o interior dos que tomavam conhecimento dos fatos. A
memória de todos foi marcada de maneira indelével, levando-os a se perguntar
inúmeras vezes: “Quem vai ser este menino?” (Lc 1, 66). O próprio pai, assumido
pelo Espírito Santo, responderia em seu cântico: “E tu, menino, serás chamado
profeta do Altíssimo, porque irás à sua frente a preparar os seus caminhos,
para dar a conhecer ao seu povo a salvação pela remissão dos pecados” (Lc 1,
76-77).
Educado pelo Espírito Santo
Seu
crescimento e educação se deram em meio a uma atmosfera feita de contemplação,
penitência e contínua oração. Deus foi seu mestre, a ascese sua companhia, e
sua via a santidade, daí o fortalecimento de seu espírito (cf. Lc 1, 80).
Deduz-se de seu modo de ser e agir o quanto ele foi cheio do Espírito Santo
“desde o seio de sua mãe” (Lc 1, 25) e quão grande sua docilidade em seguir
seus ensinamentos.
“Mais que um profeta”
Quando
chegou o momento de realizar sua missão pública, apresentou-se revestido de trajes
inteiramente fora dos costumes da época: “um vestido feito de peles de camelo e
um cinto de couro em volta dos rins”, e sua alimentação não passava de
“gafanhotos e mel silvestre” (Mt 3, 4). Assumiu o papel de profeta sem o
declarar abertamente, mas, aqui também, suas características o colocam acima de
todos os que o antecederam, ele foi “mais que um profeta” (Mt 11, 9). Por isso
São Roberto Belarmino, em um de seus sermões, comenta o quanto foi glorioso
para São João o ter apontado para um Messias de aparências tão humildes e,
apesar disso, ter tido a ousadia de chamá-Lo de “Cordeiro de Deus” (Jo 1, 29),
de “Filho de Deus” (Jo 1, 34); e ademais, devido à sua imediata proximidade com
o Salvador, recebeu a maior das clarividências sobre Ele. Nenhum profeta
anterior gozou de tão alto discernimento. Todos anunciavam um futuro, enquanto
João apontava o Salvador em sua presença. Por sua conduta, chegou a impor
respeito até em Herodes (cf. Mc 4, 20), medo nos fariseus (cf. Mt 14, 5), e
obteve altíssimos elogios dos divinos lábios de Jesus (cf. Mt 11, 11), tendo
sido classificado como o maior homem aparecido até então. Sua fama se espalhou
de tal forma que pessoas de toda a Judéia e os habitantes de Jerusalém
procuravam João (cf. Mc 1, 5) para receber o batismo, entre eles o próprio
Jesus Cristo (cf. Mc 1, 9-11; Mt 3, 16-17; Lc 3, 21-22; Jo 1, 31-34). As
multidões, publicanos e soldados, lhe perguntavam: “Mestre, que devemos fazer?”
(Lc 3, 10-14).
Sua alma jamais experimentou a
soberba
Se
prestarmos uma atenção mais acurada nessa grandeza de São João, veremos o
quanto ela não tinha notas humanas nem sócio-políticas, tão do anseio do povo
eleito, naquelas circunstâncias históricas. Ele era um grande homem, o maior,
mas no campo sobrenatural e por ação da graça. E era justamente por obra desta
que defluíam sua despretensão, humildade e desprendimento. Sua alma jamais
experimentou a soberba, a vanglória ou a ambição, vícios tão universais e
companheiros de todas as classes, idades e funções. São paixões que despontam com
o uso da razão ou, talvez, até a antecedam; elas promovem o quase irrefreável
anseio de ser conhecido, elogiado e amado. Frequentemente tisnam a inocência
primeva e empanam a candura das crianças. “A soberba (...) busca a excelência
de forma desordenada, ao passo que a vanglória almeja a manifestação da
excelência” (4). A soberba “apresenta certa generalidade, porque dela podem
surgir todos os pecados (...) pela soberba, o homem despreza a Lei divina que
proíbe pecar, segundo se lê em Jeremias: ‘Há muito quebraste teu jugo, rompeste
teus laços, dizendo: não vou servir a ninguém’” (5).
Vanglória: glória sem honra
Assim,
pelo fato de nos amarmos de maneira indevida, julgamo-nos com o direito de
sermos glorificados pelos outros, desejamos sofregamente os elogios e aplausos
e sentimo-nos ultrajados pelo sucesso dos demais: a tristeza dos bens alheios,
tão frequente em inúmeras almas.
A
soberba e sua filha primogênita, a vanglória, não conhecem limites nem
barreiras, penetram até os sagrados umbrais da vida religiosa. É o que nos dá a
entender a grande Santa Teresa:
“Livre-nos
Deus de pessoas que querem servi-Lo, mas se preocupam com as honrarias. Vede
que é mau negócio. E, como já disse, pelo próprio ato de desejar as honras, a
pessoa as perde, especialmente em questões de precedências, pois não existe no
mundo veneno mais mortal para a perfeição. Direis que são ninharias das quais
não se deve fazer caso; não vos enganeis, porque isso cresce rapidamente e não
há matéria mais perigosa do que essas questões de honras e a preocupação com
insultos recebidos” (6).
Parágrafos
antes, dizia a mesma Santa de Ávila:
“Deus
nos livre, por sua Paixão, de dizer ou pensar, de deter-se em considerações
tais como: se sou mais antiga, se tenho mais idade, se trabalhei mais, se
tratam a outra melhor do que a mim. Pensamentos como estes, se ocorrerem, devem
ser logo cortados, pois se a pessoa neles se detém, ou os põe em prática, é uma
pestilência da qual nascem grandes males” (7).
Infelizmente,
os piores efeitos dessa paixão se propagam nas sagradas fileiras das almas que
se entregam ao pleno serviço de Deus, daí o famoso ditado: “Tolle inanem gloriam de clero, et facile
omnia vitia resecabis.” — Tira a vanglória do clero e arrancarás facilmente
todos os vícios (8). Às vezes a soberba se manifesta de forma coletiva, com
enormes prejuízos para a caridade e dando ocasião a escândalos. Nesses casos,
procura-se a glória de Deus como pretexto para obter a glorificação própria.
Daí nasce também a inveja coletiva.
João rejeitou a glória e cresceu
em honra
No
extremo oposto a esses desequilíbrios, João verá o lento apagamento de sua
obra, o de seu próprio nome e até o de seus discípulos, porque um outro Varão o
sucedeu, muito mais luminoso do que ele. Porém, diante desse quadro, em nada se
sentirá humilhado; ele se tornou o exemplo para tantas almas santas que — na
escuridão dos claustros, ou no silêncio interior em meio à agitação do mundo,
sacerdotes, religiosas, ou até mesmo no lar, desconhecidas, esquecidas, e às
vezes desprezadas — repetem com o Precursor: “Illum oportet crescere, me autem
minui” — É preciso que Ele cresça e que eu diminua (Jo 3, 30).
São
unânimes todos os comentaristas em atribuir ao Precursor um especial empenho em
ter querido extirpar de seus discípulos a inveja de grupo, pelo fato de se
terem comparado com Jesus e os Apóstolos. Essa foi a razão pela qual enviou uma
embaixada (cf. Mt 11) ao Cordeiro de Deus, pois desejava curar a mesquinhez de
coração de seus seguidores e, provavelmente, consagrá-los ao Divino Mestre.
“O seu nome é João”
Desde
séculos, entre os judeus, a escolha do nome era um ato inseparável da cerimônia
de circuncisão, que se realizava na presença de pelo menos dez testemunhas.
Logo após as orações de acordo com o rito, impunha-se o nome, o qual mais
comumente coincidia com o do próprio pai, ou se referia a alguma característica
espiritual ou física do nascituro, ou a algo que tivesse marcado a vida de seus
pais ou ancestrais (9).
A
cerimônia finalizava com um pequeno ágape.
A
escolha do nome, geralmente, era uma prerrogativa paterna, se bem possa ter
havido algumas exceções ao longo da História, como constatamos no trecho do
Evangelho de hoje: “Interveio, porém, sua mãe e disse: “Não; mas será chamado
João”. Não nos equivocaríamos ao imaginarmos os esforços de Zacarias, durante o
período de sua mudez, para transmitir a Isabel os detalhes da aparição de
Gabriel. Ela, como mãe, deveria, por sua vez, tentar de todas as maneiras
possíveis saber as minúcias daquele grandioso acontecimento.
A
reação dos circunstantes talvez partisse do desejo de consolar Zacarias, já
ancião, vendo no seu unigênito a perpetuação de seu próprio nominativo. Mas a
decisão coube ao progenitor que, requisitando uma tabuinha, escreveu: “O seu
nome é João”. Ato que marcou não só a definição do Precursor, mas o término do
castigo imposto por Gabriel: “E logo se abriu a sua boca e soltou-se a língua”.
Quando Zacarias pronunciou seu cântico, todos julgaram terem discernido o
motivo do nome “João”, ou seja, “aquele que anuncia”, mas, na realidade, só post factum chegou-se a entender a fundo
sua missão de Precursor e o porquê de suas características pessoais. Ele pôde
criar um clima contrário à influência dos fariseus, escribas e sacerdotes da
época, ao incentivar a penitência, a mudança de mentalidade e a conversão. Não
lhe coube realizar um só milagre e nada na linha do espetacular, pois era
preciso vincar a perspectiva de um Messias que Se apresentaria como manso e
humilde: “Aprendei de Mim que sou manso e humilde de coração” (Mt 11, 29).
Pórtico de entrada da missão do
Messias
Em meio
a esse apagamento quanto aos milagres, entretanto, o Batista foi eleito para
constituir-se nos umbrais que deram entrada ao Messias em sua missão pública:
“Eis o Cordeiro de Deus” (Jo 1, 29). Seu profundo ascetismo e sua própria
pregação tornavam-no bem diferenciado de anteriores líderes revolucionários de
cunho acentuadamente político. João atraiu a si muita gente, de todas as
partes, e até da própria Jerusalém que, preocupada com a movimentação, enviou-lhe
uma embaixada para inquirir ao certo quem era ele. Os Evangelhos quase sempre
apresentam as autoridades da época como malévolas, invejosas e incrédulas.
Entre elas estavam, além de saduceus, levitas e sacerdotes, os famosos
fariseus. Todos eles recusaram fortemente não só o batismo como a própria
doutrina de João (cf. Lc 7, 33).
O deserto, imagem das almas sem
honra
A essa
embaixada enviada pelo Sinédrio e constituída de fariseus (cf. Jo 1, 19-28),
ele declarou ser a voz que clamava no deserto; imagem robusta para simbolizar o
vazio das almas sem honra, a inconsistência de areia dos vícios, o fervilhar
das paixões. Aqueles terrenos estéreis deveriam tornar-se sólidos e férteis
para receber o Messias.
Os
males que haviam entibiado a todos encontravam-se condensados numa fonte que
foi denunciada pelo próprio Precursor: “Raça de víboras, quem vos ensinou a
fugir da cólera vindoura? (...) Não digais dentro de vós: Nós temos Abraão por
pai!” (Mt 3, 7.9).
E mais
tarde o Salvador lhes dirá: “Como podeis crer, vós que recebeis a glória uns
dos outros, e não buscais a glória que é só de Deus?” (Jo 5, 44). Por aí se vê
o perfeito imbricamento entre as missões do Precursor e do Emanuel, “aquele que
anuncia” e o “Deus entre nós”. Ambos quiseram conferir-nos a verdadeira honra
para tornar autêntica a nossa glória.
III – Conclusão: O deserto de
nossa época
Essa
pregação de João nos vale até hoje e permanecerá indispensável até a consumação
dos séculos, dado o orgulho que herdamos desde nossa saída do Paraíso. Vício
que nos segue a cada passo até a hora de nossa morte. E se João retornasse nos
dias de hoje, apareceria ele como uma voz que clama no deserto? Basta lançar um
olhar atento sobre a aridez de nossa atual humanidade que, depois de perder a noção
de pecado, não mais levanta os olhos a Deus e não se cansa de aplicar todos os
esforços para ressecar na fonte o orvalho da graça que nos cai do Céu.
Resta-nos implorar que, como há dois milênios, novamente as preces da Virgem de
Nazaré façam chover o Justo sobre este terrível deserto em que na atualidade
existimos e nos movemos.
1) André Castelot, Talleyrand
ou le cynisme, Librairie Académique Perrin, Paris, 1980, p.
472.
2) Tertull., “Ad Marc.” – 33: PL 2,
471.
3) Cf. Suma
Teológica III, q. 38, a. 1, ad 2.
4) São Tomás de Aquino, Suma
Teológica, II-II, q. 162, a. 8, ad 2.
5) Idem, II-II, q. 162, a. 2.
6) Camino de Perfección, c. 12, 6-7.
7) Idem, c. 12, 3-4.
8) Apud São Tomas de Aquino, Super
Evangelium S. Matthaei lectura,
c. 23, l. 1.
9) Cf. São Tomás de Aquino, Suma
Teológica III, q. 37 a. 2.
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