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sábado, 21 de maio de 2016

Evangelho Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo (Corpus Christi)

Comentário ao Evangelho Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo (Corpus Christi)
Naquele tempo, 11 b Jesus acolheu as multidões, falava-lhes sobre o Reino de Deus e curava todos os que precisavam.
12 A tarde vinha chegando. Os doze apóstolos aproximaram-se de Jesus e disseram: “Despede a multidão, para que possa ir aos povoados e campos vizinhos procurar hospedagem e comida, pois estamos num lugar deserto”.
13 Mas Jesus disse: “Dai-lhes vós mesmos de comer”. Eles responderam: “Só temos cinco pães e dois peixes. A não ser que fôssemos comprar comida para toda essa gente”.
14 Estavam ali mais ou menos cinco mil homens. Mas Jesus disse aos discípulos: “Mandai o povo sentar-se em grupos de cinquenta”.
15 Os discípulos assim fizeram, e todos se sentaram. 16 Então Jesus tomou os cinco pães e os dois peixes, elevou os olhos para o céu, abençoou-os, partiu-os e os deu aos discípulos para distribuí-los à multidão. 17 Todos comeram e ficaram satisfeitos. E ainda foram recolhidos doze cestos dos pedaços que sobraram.
O mais substancioso dos banquetes
Ao criar o homem com necessidade de se alimentar, quis Deus estabelecer na nutrição o sustento da vida natural. Esta situação é imagem da vida da graça, cuja base também é um alimento celeste: a Eucaristia.
I – A Alimentação é conatural ao homem
A vida no Paraíso proporcionava ao homem inúmeros gozos e alegrias, pois a harmoniosa disposição de todas as coisas o cumulava de bem-estar. Nossos primeiros pais encontravam-se cercados de muitos privilégios concedidos por Deus, com vistas a que a felicidade da existência terrena os levasse a amá-Lo de maneira mais perfeita. Um desses deleites, quiçá pouco considerado, porém valioso, era a facilidade com que podiam servir-se dos melhores alimentos. Ensina São Tomás de Aquino1 que, sendo a alimentação parte do mandato divino (cf. Gn 2, 16), o homem pecaria caso não comesse. Não era necessário, entretanto, trabalhar para preparar o alimento, pois a própria natureza oferecia as mais deliciosas iguarias, prontas para serem degustadas. Prova disso é que Adão, quando foi posto fora do Éden, escutou de Deus estas duras palavras: “Ganharás o pão com o suor de teu rosto” (Gn 3, 19). O castigo revela que antes ele o recebia sem fadiga, embora não saibamos exatamente como isso se passava.
Com o pecado original, o homem perdeu este e tantos outros benefícios, conforme recorda São João Crisóstomo: “Foi como se Deus lhe dissesse: Eu te preparei, ao criar-te, uma existência isenta de dores, de trabalho, de fadigas e inquietudes. Tu gozaste de uma felicidade perfeita e, sem conhecer nenhuma das tristes sujeições do corpo, gozaste em plenitude de todas as delícias da vida. Mas tu não soubeste apreciar este feliz estado, e eis que Eu amaldiçoo a terra. Daqui em diante, se não a trabalhares e não a cultivares, ela já não te dará como antes seus diversos produtos; Eu inclusive acrescentarei, aos trabalhos e penosos labores, as doenças e contínuas fadigas, de sorte que tu não possuirás coisa alguma senão ao preço de teus suores, e esta tão dura existência será uma contínua lição de humildade e uma lembrança de teu nada”.2

Apesar da severidade da repreensão, Deus agiu com misericórdia e uniu a clemência ao rigor, não submetendo a humanidade a uma alimentação mesquinha. Vemos que, ao longo dos séculos, levando em conta essa necessidade do homem, foi Ele unindo as bênçãos concedidas a um povo, a um grupo ou a uma família, à fácil e abundante produção dos alimentos. Por exemplo, ao prometer aos judeus uma terra em sinal de Aliança, ressaltou que nela correria “leite e mel” (cf. Ex 3, 8.17; Dt 6, 3; Nm 13, 27).
O alimento, alegria para o homem
A comida de boa qualidade e farta proporciona alegria ao homem. Isso se verifica quando temos, por exemplo, a possibilidade de ir a um bom restaurante e provar algum prato especialmente saboroso: saímos dali satisfeitos e até generosos. Pitoresca é a atitude de Santo Inácio de Loyola, que costumava convidar comprazido o jovem Benedetto Palmio para participar de suas refeições pelo gosto de vê-lo comer bem, estimulando-o a que o fizesse à vontade e sem se ruborizar.3 Além disso, em qualquer cultura, quando alguém deseja comemorar um acontecimento social importante, como uma formatura ou um casamento, costuma oferecer um banquete, convidando familiares e amigos para festejar em torno da boa mesa. O alimento possui a indispensável função de sustentar a vida e a saúde, é verdade, mas não é este seu papel mais elevado, uma vez que tem a utilidade social de favorecer o convívio dos que participam da mesma refeição. Ele torna possível um particular entendimento entre as pessoas.
O príncipe de Talleyrand, grande diplomata francês, quando tinha casos importantes a tratar com representantes de outras nações mandava pedir ao rei que lhe cedesse seu cozinheiro pessoal e se munia das melhores especialidades culinárias nacionais, tais como vinhos, champanhes e queijos. E era durante uma festa, ao redor da mesa repleta de iguarias, que resolvia os assuntos mais intrincados da alta diplomacia. Uma espirituosa afirmação feita por ele a Luís XVIII, antes do crucial Congresso de Viena, deixou consignada sua convicção da eficácia desse método: “Sire, eu preciso mais de panelas do que de instruções escritas”.4 A mesa é um meio de facilitar o convívio e amenizar os ânimos, coisa que nem sempre se obtém com meras palavras. A Santa Igreja, portanto, com muita propriedade, escolheu para a Solenidade de Corpus Christi a narração evangélica na qual o próprio Criador do Céu e da Terra oferece àqueles que O seguiam uma incomparável refeição. É prenunciadora do banquete espiritual de seu Corpo e Sangue, no qual Ele é o Divino Anfitrião e ao mesmo tempo o Alimento. Poderá haver em torno de uma mesa convívio mais íntimo e sublime?
II – Um milagre portentoso prepara a Eucaristia
O milagre da multiplicação dos pães é o único que está relatado nos quatro Evangelhos, pormenor bastante expressivo para indicar sua importância. O fato se situa no período áureo da vida pública de Nosso Senhor e concorreu, em grande medida, para consagrar em Israel sua fama de Profeta e Taumaturgo. Nessa ocasião Ele partira acompanhado apenas pelos Apóstolos e Se encontrava na retirada região de Betsaida Júlia, a nordeste do Lago de Tiberíades. Havia pouco ocorrera a morte de São João Batista promovida por Herodes, Almoço de bodas em Yport, por Albert Fourié cujas curiosas cogitações Museu de Belas Artes, Rouen (França) agora se voltavam para o Divino Redentor, um Personagem infinitamente maior que o Precursor. Por isso o governante estava à espreita de uma oportunidade para aproximar-se de Jesus, motivado, ao que tudo indica, por levianas ou perversas intenções. A sabedoria d’Aquele que sonda os rins e corações, no entanto, não ignorava a astúcia deste homem, e “com esse rápido afastamento parece ter querido evitar a vizinhança do tetrarca”,5 diz Fillion. Contudo, se o pretensioso Herodes perdeu a ocasião desejada, o mesmo não aconteceu com o povo, que logo ficou sabendo do paradeiro da barca do Mestre e pôs-se a caminho, por terra, para encontrá-Lo.
A recompensa dos que procuram o Reino de Deus
Naquele tempo, 11b Jesus acolheu as multidões, falava-lhes sobre o Reino de Deus e curava todos os que precisavam.
Qual foi a razão que levou a multidão a seguir Nosso Senhor? Como narram os Evangelistas, não houve um só doente que, ao aproximar-se d’Ele com fé, pedindo a cura, ficasse sem ser atendido. Isso impressionava a opinião pública, dado que naquele tempo a medicina ainda não atingira grande progresso, o que concorria para tornar os milagres mais impactantes. Ele supria a ineficácia da ciência com um olhar, uma imposição de mãos, um desejo ou um toque que fosse, e curava todos num só instante. Aquela gente estava deslumbrada com os sinais divinos que transpareciam na humanidade de Cristo e dava-se conta do quanto os ensinamentos d’Ele mereciam todo crédito e acatamento e O seguia.
12 A tarde vinha chegando. Os doze Apóstolos aproximaram-se de Jesus e disseram: “Despede a multidão, para que possa ir aos povoados e campos vizinhos procurar hospedagem e comida, pois estamos num lugar deserto”.
Nosso Senhor ensinou: “Buscai o Reino de Deus e a sua justiça e o resto vos será dado por acréscimo” (Mt 6, 33). A multidão, em consonância com o conselho divino, acompanhava Jesus naquela circunstância pela convicção de que Ele era um extraordinário Profeta. Estavam desejosos de curas, sim, mas também buscavam a verdade, a doutrina, queriam conhecer mais a Deus e as realidades eternas.
Os Apóstolos, porém, encontravam-se preocupados com as providências materiais. Não atinavam que se o Mestre curava daquela maneira podia também realizar outros milagres e quiçá temessem ser mandados providenciar alimento para tão grande multidão. Por esse motivo propõem logo a Nosso Senhor despedir o povo, numa fuga sutil dessa responsabilidade. Ora, Ele podia perfeitamente matar a fome de todos, porque quem cura um coxo, um cego ou um surdo-mudo é capaz de remediar também outra “doença” muito mais leve chamada fome. Todavia, como o que Ele tinha em mente era formar os Apóstolos, deu-lhes uma resposta surpreendente.
Nosso Senhor põe os Apóstolos à prova
13 Mas Jesus disse: “Dai-lhes vós mesmos de comer”. Eles responderam: “Só temos cinco pães e dois peixes. A não ser que fôssemos comprar comida para toda essa gente”. 14a Estavam ali mais ou menos cinco mil homens.
O Salvador ordenou aos Apóstolos, então, que dessem de comer à multidão, para pô-los à prova, pois sabia o que ia fazer (cf. Jo 6, 6). Mas eles, desconfiados, comentavam que, como disse Filipe (cf. Jo 6, 7), mesmo se tivessem duzentas moedas de prata não seria suficiente para comprar pão e distribuir um pedaço para ca da um dos que ali estavam: cinco mil homens, além das mulheres e crianças, o que perfazia um número bem maior. E ainda que possuíssem o dinheiro, onde encontrar tamanha quantidade de pão à venda naquela hora tardia? Santo André inclusive sublinha a situação, dizendo que o único vendedor de alimento no meio daquela aglomeração era um menino que carregava cinco pães e dois peixes (cf. Jo 6, 8-9). “Acreditava” — comenta São João Crisóstomo — “que o Autor dos milagres com pouco faria pouco, e com mais faria mais; o que, com toda clareza, não era assim”.6
Sendo Deus, Nosso Senhor tinha domínio absoluto sobre a matéria e podia tirar criaturas do nada, sem necessitar dos cinco pães e dois peixes, uma vez que sua própria vontade era suficiente para produzir o alimento que saciasse a multidão. “Com efeito, era-Lhe fácil fazer surgir indistintamente, de muitos ou de poucos, uma grande quantidade de pães, já que não precisava de matéria-prima”.7 No entanto, Ele pediu aos Apóstolos o que estava ao alcance deles, embora fossem tão só esses parcos víveres. Aprendamos, pelo exemplo que esta passagem nos oferece, a não negar até o pouco que temos quando o pede Jesus, lembrando-nos de que este pouco pode servir de pretexto para que Ele realize grandes maravilhas.
Mas Jesus disse aos discípulos: “Mandai o povo sentar-se em grupos de cinquenta”. 15 Os discípulos assim fizeram, e todos se sentaram.
Nessa simples recomendação, o Divino Mestre manifesta seu perfeito senso de ordem. Para evitar febricitação ou correria, e para que a distribuição fosse feita com calma e até de modo cerimonioso, dispõe que as pessoas se sentem em grupos. Ademais, segundo observa também São João Crisóstomo, Ele agiu dessa maneira “para mostrar que, antes de comer, deve-se agradecer a Deus”.8
Milagre que é imagem da Eucaristia
16 Então Jesus tomou os cinco pães e os dois peixes, elevou os olhos para o céu, abençoou-os, partiu-os e os deu aos discípulos para distribuí-los à multidão. 17a Todos comeram e ficaram satisfeitos.
Difícil é não relacionar os gestos de Jesus nesta cena com aqueles que mais adiante adotaria para instituir o Sacramento da Eucaristia. Ia Ele, com isso, preparando as multidões para o grande mistério que seria revelado algum tempo depois. A magnitude do milagre é indicada pelas palavras: “todos comeram e ficaram satisfeitos” ou, como escreve São João, “tanto quanto queriam” (Jo 6, 11). Podemos supor que cada um dos presentes também obteve, além da medida para matar a fome do momento, uma quantidade excedente para levar para os seus lares. Tão imenso benefício afluía, nas palavras de São Gregório de Nissa, “dos celeiros inesgotáveis do divino poder”.9
17b E ainda foram recolhidos doze cestos dos pedaços que sobraram.
Mais uma vez o texto evangélico deixa transparecer em Nosso Senhor o apreço pela ordem e até pela limpeza, e o quanto Ele é amante da disciplina, não deixando as sobras pelo chão. Foram recolhidos os pedaços restantes que encheram doze cestos. Quis Jesus que o número coincidisse com o dos Apóstolos, para que eles mesmos carregassem os fardos e comprovassem a dimensão do milagre de que antes desconfiaram. “Isso ocorreu com vistas à instrução dos discípulos. […] Pelo mesmo motivo aconteceu que o número de canastras fosse exatamente igual ao dos discípulos. […] Não me admira apenas a grande quantidade de pães, como também, e ao lado disso, a exatidão das sobras, de sorte que não fez com que sobrassem nem mais nem menos, mas justamente o que queria”.10
Fica patente o poder de Nosso Senhor Jesus Cristo sobre a matéria em geral, sobre o alimento e, em concreto, sobre o pão, pelo modo com que Ele o multiplica conforme seus desígnios, não permitindo sequer que os restos sejam menosprezados. Ao instituir a Eucaristia, mais tarde, também não queria que os fragmentos do Pão consagrado fossem tratados sem veneração, como pretendem certos incrédulos que defendem a Presença Real nas Espécies Eucarísticas só durante o ato litúrgico. Igualmente é digno de nota que Ele, por um princípio simbólico, não permitiu jogar nada fora para nos ensinar que não se deve perder ninguém. Ainda que uma alma esteja trilhando as vias do pecado, é preciso empreender todos os esforços para recuperá-la, pois não é outro o divino anseio: “Daqueles que Me destes, Eu não perdi nenhum” (Jo 18, 9).

Ele quis que o milagre se desse com todas essas características para facilitar a compreensão do grande dom que em breve lhes ofereceria: a Sagrada Eucaristia. Tendo demonstrado possuir tamanho poder sobre o pão, tornava patente que, se o desejasse, poderia retirar dele a substância original para dar lugar a seu Corpo, Sangue, Alma e Divindade,11 embora permanecessem os mesmos acidentes — sabor, aparência, textura, odor. Dessa forma, Jesus criava as condições para que as pessoas com fé correspondessem à dádiva inigualável que, desde toda a eternidade, havia preparado.
Continua no  próximo post.

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