COMENTÁRIOS AO EVANGELHO DA SOLENIDADE DE CRISTO REI CRISTO REI - ANO C - Lc 23, 35-43
Mons. João Scognamiglio Clá Dias,EP
O povo estava a observar. Os príncipes dos sacerdotes com o povo O
escarneciam dizendo: “Salvou os outros, salve-Se a Si mesmo, se é o Cristo, o
escolhido de Deus!” 36 Também o insultavam os soldados que, aproximando-se dele
e oferecendo-lhe vinagre, 37 diziam: “Se és o Rei dos judeus, salva-Te a Ti
mesmo!” 38 Estava também por cima de sua cabeça uma inscrição: “Este é o Rei
dos judeus”. 39 Um daqueles ladrões que estavam suspensos da cruz, blasfemava
contra ele, dizendo: “Se és o Cristo, salva-Te a Ti mesmo e a nós” 40 O outro,
porém, tomando a palavra, repreendia-o dizendo: “Nem tu temes a Deus, estando
no mesmo suplício? 41 Quanto a nós se fez justiça, porque recebemos o castigo
que mereciam nossas ações, mas Este não fez nenhum mal.” 42 E dizia a Jesus:
“Senhor, lembra-Te de mim, quando entrares no teu Reino!” 43 Jesus disse-lhe:
“Em verdade te digo: Hoje estarás comigo no Paraíso.” (Lc 23, 35-43).
REI
NO TEMPO E NA ETERNIDADE
Ao ouvirmos este Evangelho da Paixão, de imediato surge em nosso
interior uma certa perplexidade: por que a Liturgia, para celebrar uma festa
tão grandiosa como a de Cristo Rei, terá escolhido um texto todo ele feito de
humilhação, blasfêmia e dor?
Tanto mais que, em extremo contraste com esse trecho de São Lucas, a
segunda leitura de hoje nos apresenta Jesus Cristo como sendo “a imagem do Deus
invisível, o Primogênito de toda a criação (...) porque foi do agrado do Pai
que residisse n’Ele toda a plenitude” (Col 1, 15 e 19). Como conciliar esses
dois textos, à primeira vista, tão contraditórios?
Para melhor compreendermos esse paradoxo, devemos distinguir entre o
Reinado de Cristo nesta terra e o exercido por Ele na eternidade. No Céu, seu
reino é de glória e soberania. Aqui, no tempo, ele é misterioso, humilde e
pouco aparente, pelo fato de Jesus não querer fazer uso ostensivo do poder
absoluto que tem sobre todas as coisas: “Foi-me dado todo o poder no Céu e
na terra” (Mt 28, 18).
Apesar de as exterioridades nos causarem uma impressão enganosa, Ele é o
Senhor Supremo dos mares e dos desertos, das plantas, dos animais, dos homens,
dos anjos, de todos os seres criados e até dos criáveis. Porém, diante de
Pilatos, assevera: “O meu Reino não é deste mundo” (Jo 18, 36), porque não quer
manifestar seu império em todas as suas proporções, a não ser por ocasião do
Juízo Final.
Assim, enquanto o Evangelho nos fala de seu Reinado terreno, a Epístola
proclama o triunfo de sua glória eterna. No tempo, vemo-Lo exangue, pregado na
Cruz entre dois ladrões, sendo escarnecido pelos príncipes dos sacerdotes e
pelo povo, insultado pelos soldados e objeto das blasfêmias do mau ladrão. A
Liturgia exige de nós um esforço de fé para, indo além do fracasso e da
humilhação, crermos na grandiosidade do Reino de Jesus.
Por outro lado, errôneo seria imaginar que Ele não deve reinar aqui na
terra. Para compreender bem o quanto Cristo é Rei, é preciso diferenciar seu
modo de governar daquele empregado pelo mundo.
O governo humano, quando ateu, encontra sua força nas armas, no dinheiro
e nos homens. Tem por finalidade as grandes conquistas territoriais, perdurar
longamente e alcançar a felicidade terrena. Porém, o tempo sempre demonstra o
quanto esses objetivos são ilusórios e até mentirosos. As armas em certo
momento caem ao solo, ou se voltam contra o próprio governante; o dinheiro é
por vezes um bom vassalo mas sempre um mau senhor; os homens, quando não
assistidos pela graça, neles não se pode confiar.
Napoleão Bonaparte é um bom exemplo do vazio enganador no qual se
fundamentam os Impérios neste mundo. Basta imaginá-lo proclamando seu fracasso
do alto de um penhasco na ilha Santa Helena, durante o penoso exílio ao qual
ficara reduzido. Em síntese, a plenitude da felicidade de um governador terreno
é um sonho irrealizável. E ainda que ela fosse atingível, a nós caberia a frase
do Evangelho: “Que aproveitará ao homem ganhar o mundo inteiro se perder a
sua alma?” (Mc 8, 36).
A
REALEZA ABSOLUTA DE CRISTO
A Realeza de Cristo é bem outra. Ele de fato é Rei do Universo e, de
maneira muito especial, de nossos corações. Ele possui uma autoridade absoluta
sobre todas as criaturas e já muito antes de sua Encarnação, quando se
encontrava no seio do Padre Eterno, ouviu estas palavras:
“Tu és meu Filho, eu
hoje te gerei. Pede-me; dar-te-ei por herança todas as nações; tu possuirás os
confins do mundo, tu governarás com cetro de ferro” (Sl 2, 7-9).
Rei
por direito de herança
Ele é o unigênito Filho de Deus e por Este foi constituído como herdeiro
universal, recebendo o poder sobre toda a criação, no mesmo dia em que foi
engendrado (1).
Rei
por ser Homem-Deus
Por outro lado, Jesus Cristo é Deus e, assim sendo, tudo foi feito por
ele, o Criador de todas as coisas visíveis e invisíveis. Senhor absoluto de
toda existência, do Céu, da terra, do sol, das estrelas, das tempestades, das
bonanças. Seu poder é capaz de acalmar as mais terríveis ferocidades dos
animais bravios e as procelas dos mares encapelados. Os acontecimentos, as
forças físicas e morais, a guerra e a paz, a pobreza e a fartura, a humilhação
e a glória, o revés e o sucesso, as pestes, os flagelos, a doença e a saúde, a
morte e a vida, estão todos ao dispor de um simples ato de sua vontade. Aí está
um Governo incomparável, superior a qualquer imaginação, e do qual ninguém ou
nada poderá se subtrair.
O título de Rei Lhe cabe mais apropriadamente do que às outras duas
Pessoas da Trindade Santíssima, por ser o Homem-Deus, conforme comenta Santo
Agostinho: “Apesar de que o Filho é Deus e o Pai é Deus e não são mais que um
só Deus, e se o perguntássemos ao Espírito Santo, Ele nos responderia que
também o é...; entretanto, as Sagradas Escrituras costumam chamar de rei, ao
Filho” (2).
De fato, o título de Rei, quando aplicado ao Pai, é usado de forma
alegórica para indicar seu domínio supremo. E se quisermos atribuí-lo ao
Espírito Santo, faltará exatidão jurídica, por tratar-se Ele de Deus
não-encarnado, pois, para ser Rei dos homens é indispensável ser Homem. Deus
não encarnado é Senhor, Deus feito homem é o Rei.
Rei
por direito de conquista
Jesus Cristo é nosso Rei também por direito de conquista, por nos ter
resgatado da escravidão a Satanás.
Ao adquirirmos um objeto às custas de nosso dinheiro, ele nos pertence
por direito. Mais ainda se o obtivermos através de duras penas, pelos esforços
de nosso trabalho, e muito mais, se for conseguido pelo alto preço de nosso
sangue. E não fomos nós comprados pelo trabalho, sofrimentos e pela própria
morte de Nosso Senhor Jesus Cristo? É São Paulo quem nos assevera: “Porque
fostes comprados por um grande preço!” (I Cor 6, 20).
Rei
por aclamação
Cristo é nosso Rei por aclamação. Antes mesmo das purificadoras águas do
Batismo serem derramadas sobre nossa cabeça, nós O elegemos para ser o regente
de nossos corações e de nossas almas, através dos lábios de nossos padrinhos.
Por ocasião do Crisma e a cada Páscoa, de viva voz nós renovamos essa eleição,
sempre de um modo solene.
Rei
do interior dos homens e de todas as exterioridades
Não houve, nem jamais haverá um só monarca dotado da capacidade de
governar o interior dos homens, além de bem conduzi-los na harmonia de suas
relações sociais, seus empreendimentos, etc. O único Rei pleníssimo de todos os
poderes é Cristo Jesus.
Exteriormente, pelo seu insuperável e arrebatador exemplo — além de suas
máximas, revelações e conselhos — Ele governa os povos de todos os tempos,
tendo marcado profundamente a História com sua Vida, Paixão, Morte e
Ressurreição. Por meio do Evangelho e sobretudo ao erigir a Santa Igreja,
Mestra infalível da verdade teológica e moral, Jesus perpetua até o fim dos
tempos o imorredouro tesouro doutrinário da fé. Através dessa magna instituição
Ele orienta, ampara e santifica todos os que nela ingressam, e vai em busca das
ovelhas desgarradas. Aqui precisamente se encontra o principal de seu governo
neste mundo: o Reino Sobrenatural que é realizado, na sua essência, através da
graça e da santidade.
Nosso Senhor Jesus Cristo enquanto a “videira verdadeira” é a causa da vitalidade
dos ramos. A seiva que por eles circula, alimentando flores e frutos, tem sua
origem n’Aquele Unigênito do Pai (Jo 15, 1-8). Ele é a Luz do Mundo (Jo 1, 9;
3, 19; 8, 12; 9, 5) para auxiliar e dar vida aos que dela quiserem se servir
para evitar as trevas eternas. Jesus — segundo a leitura de hoje — é “a
cabeça do corpo que é a Igreja, é o Princípio, o Primogênito entre os mortos,
de maneira que tem a primazia em todas as coisas, porque foi do agrado do Pai
que residisse n’Ele toda a plenitude e que por Ele fossem reconciliadas consigo
todas as coisas, pacificando pelo Sangue da sua Cruz, tanto as coisas da terra,
como as do Céu” (Col 1, 18-20).
O Reinado de Cristo, em nosso interior, se estabelece pela participação
na vida de Jesus Cristo. Só no Homem-Deus se encontra a plenitude da graça,
enquanto essência, virtude, excelência e extensão de todos os seus efeitos. Os
outros membros do Corpo Místico participam das graças que têm sua origem em
Jesus, a cabeça que vivifica todo o organismo. Quem de maneira
privilegiadíssima tem parte em grau de plenitude nessa mesma graça, é a
Santíssima Virgem.
Dada a desordem estabelecida em nós após o pecado original, acrescida
pelas nossas faltas atuais, nossa natureza necessita do auxílio sobrenatural
para atingir a perfeição. Sem o sopro da graça, é impossível aceitar a Lei,
obedecer aos preceitos morais, não elaborar razões falsas para justificar
nossas más inclinações e conhecer, amar e praticar a boa doutrina de forma
estável e progressiva. Ela refreia nossas paixões e as equilibra nos gonzos da
santidade, orienta nosso espírito, modera nossa língua, tempera nosso apetite,
purifica nosso olhar, gestos e costumes. É através da graça que nossa alma se
transforma num verdadeiro trono e, ao mesmo tempo, cetro de Nosso Senhor Jesus
Cristo. E é nessa paz e harmonia que se encontra nossa autêntica felicidade, e
esse é o Reino de Cristo em nosso interior.
E qual o principal adversário contra esse Reino de Cristo sobre as
almas? O pecado! Por isso mesmo, se alguém tem a desgraça de o cometer, nada
fará de melhor do que procurar um confessionário e com arrependimento ali
declará-lo a fim de ver-se livre da inimizade de Deus. É impossível gozar de
alegria com a consciência atravessada pelo aguilhão de uma culpa. Nessa consciência
não reinará Cristo; e se ela não se reconciliar com Deus, aqui na terra,
tampouco reinará com Ele na glória eterna.
III
– A IGREJA, MANIFESTAÇÃO SUPREMA DO REINADO DE CRISTO
O júbilo e às vezes até mesmo a emoção, penetram nossos corações ao
contemplarmos estas inflamadas palavras de São Paulo: “Cristo amou a Igreja
e Se entregou a Si mesmo por ela, para a santificar, purificando-a no batismo
da água pela Palavra, para apresentar a Si mesmo esta Igreja gloriosa, sem
mácula, nem ruga ou coisa semelhante, mas santa e imaculada” (Ef 5, 25-27).
Porém, ao analisarmos a Igreja militante, na qual hoje vivemos, com
muita dor encontramos imperfeições — ou, pior ainda, faltas veniais — nos mais
justos, conferindo opacidade a essa glória mencionada por São Paulo. Entre as
ardentes chamas do Purgatório, está a Igreja padecente, purificando-se de suas
manchas. Até mesmo a triunfante possui suas lacunas, pois, exceção feita da
Santíssima Virgem, as almas dos bem-aventurados foram para o Céu deixando seus
corpos em estado de corrupção nesta terra, onde aguardam o grande dia da
Ressurreição.
Portanto, a “Igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga ou coisa
semelhante, mas santa e imaculada”, manifestação suprema da Realeza de
Cristo, ainda não atingiu sua plenitude.
E quando definitivamente triunfará Cristo Rei? Só mesmo depois de
derrotado seu último inimigo, ou seja, a morte! Pela desobediência de Adão,
introduziram-se no mundo o pecado e a morte. Pelo seu Preciosíssimo Sangue
Redentor, Cristo infunde nas almas sua graça divina e aí já se dá o triunfo
sobre o pecado. Mas a morte será rendida com a Ressurreição no fim do mundo,
conforme o próprio São Paulo nos ensina:
“Porque é necessário
que Ele reine, ‘até que ponha todos os inimigos debaixo de seus pés’. Ora, o
último inimigo a ser destruído será a morte; porque Deus ‘todas as coisas
sujeitou debaixo de seus pés’ ” (I Cor 15, 25- 26).
Cristo Rei, por força da Ressurreição que por Ele será operada,
arrancará das garras da morte a humanidade inteira, como também iluminará os
que purgam nas regiões sombrias. Ao retomarem seus respectivos corpos, as almas
bem-aventuradas farão com que eles possuam sua glória; e assim, serão também os
eleitos outros reis cheios de amor e gratidão ao Grande Rei. Apresentar-se-á o
Filho do Homem em pompa e majestade ao Pai, acompanhado de um numeroso séquito
de reis e rainhas, tendo escrito em seu manto: “Rei dos reis e Senhor dos
senhores” (Apoc 19, 16)
IV
– SE CRISTO É REI, MARIA É RAINHA
Se Cristo é Rei por ser Homem-Deus e recebeu o poder sobre toda a
Criação no momento em que foi engendrado, daí se deduz ter sido realizada no
puríssimo claustro maternal de Maria Virgem a excelsa cerimônia da unção régia
que elevou Cristo ao trono de Rei natural de toda a humanidade. O Verbo assumiu
de Maria Santíssima nossa humanidade, e assim adquiriu a condição jurídica
necessária para ser chamado Rei, com toda a propriedade. Foi também nesse mesmo
ato que Nossa Senhora passou a ser Rainha. Uma só solenidade nos trouxe um Rei
e uma Rainha.
V
– CONCLUSÃO
Agora sim, estamos aptos a entender e amar a fundo o significado do Evangelho
de hoje. A resposta ao povo e aos príncipes dos sacerdotes que escarneciam
contra Jesus: “Salvou os outros, salve-Se a Si
mesmo, se é o Cristo, o escolhido de Deus” (v. 35), como
também aos próprios soldados romanos em seus insultos: “Se és o Cristo, salva-Te a Ti mesmo” (v. 37), transparece claramente nas premissas até aqui expostas.
Eles eram homens sem fé e desprovidos do amor a Deus, julgando os
acontecimentos em função de seu egoísmo e por isso levados a se esquecerem de
sua contingência. Cegos de Deus, já há muito afastados de sua inocência
primeva, perderam a capacidade de discernir a verdadeira realidade existente
por trás e por cima das aparências de derrota que revestiam o Rei eterno
transpassado de dor sobre o madeiro, desprezado até pelas blasfêmias de um mau
ladrão. Não mais se lembram dos portentosos milagres por Ele operados, nem
sequer de suas palavras: “Julgas porventura que Eu não posso rogar a meu Pai e
que poria já ao meu dispor mais de doze legiões de anjos?” (Mt 26, 53). Sim, se
fosse de sua vontade, numa fração de segundo poderia reverter gloriosamente
aquela situação e manifestar a onipotência de sua realeza, mas não o quis, como
o fez em outras ocasiões: “Jesus, sabendo que O viriam arrebatar para O
fazerem rei, retirou-se de novo, Ele só, para o monte” (Jo 6, 15).
Quem discerniu em sua substância a Realeza de Cristo foi o bom ladrão,
por se ter deixado penetrar pela graça. Arrependido em extremo, aceitou
compungido as penas que lhe eram infligidas, e reconhecendo a Inocência de
Jesus no mais fundo de seu coração, proclamou os segredos de sua consciência
para defendê-La das blasfêmias de todos: “Nem tu temes a
Deus, estando no mesmo suplício? Quanto a nós se fez justiça, porque recebemos
o castigo que mereciam nossas ações, mas Este não fez nenhum mal” (vv. 40-41). Eis a verdadeira retidão. Primeiro, humildemente ter
dor dos pecados cometidos; em seguida, com resignação abraçar o castigo
respectivo; por fim, vencendo o respeito humano, ostentar bem alto a bandeira
de Cristo Rei e aí suplicar-Lhe: “Senhor, lembra-Te
de mim, quando entrares no teu Reino!” (v. 42)
Tenhamos sempre bem presente que só pelos méritos infinitos da Paixão de
Cristo e auxiliados pela poderosa mediação da Santíssima Virgem nos tornaremos
dignos de entrar no Reino.
Seguindo os passos da conversão final do bom ladrão, poderemos esperar
com confiança ouvir um dia a voz de Cristo Rei dizendo também a nós: “Em verdade te digo: Hoje estarás comigo no Paraíso” (v. 43).
1 ) cf. Hb 1, 2-5.
2 ) Enarrat. in Ps. 5 n. 3: PL 37, 83
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