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quinta-feira, 31 de março de 2011

Transfiguração


No post anterior, Mons João Clá Dias comenta um dos principais mistérios de nossa fé: a união da natureza Divina à humana na segunda Pessoa da Santíssima Trindade. Agora Mons João explicará o sentido da Transfiguração. 
Nesse contexto, como situar a Transfiguração?

Um ensino puramente doutrinário não é capaz de, por si só, mover o homem a transformar sua vida. Um antigo adágio ilustra esta verdade de modo lapidar: “As palavras comovem, os exemplos arrastam”. Sobretudo quando o exemplo é íntegro e esplendoroso na verdade e no bem, tem ele uma força tal que age sobre as tendências da alma, convidando a um certo caminho — e às vezes impondo-o.
Ademais, há outro fator indispensável para arrebatar qualquer coração, e mantê-lo firme na reforma iniciada: a clareza do fim. Se este não estiver claro, o ânimo arrefecerá quando surgirem os primeiros lampejos das dificuldades e dos dramas, tão comuns em toda mudança de vida.
Ao tratar da Transfiguração de Jesus, assim se exprime São Tomás de Aquino sobre essa necessidade muito própria à criatura humana: “Para trilharmos bem um caminho, é necessário termos um conhecimento prévio do fim. Assim, o arqueiro não lança com acerto a seta, senão mirando primeiro o alvo que deve alcançar. (...) E isso sobretudo é necessário, quando o caminho é difícil e áspero, a jornada laboriosa, mas belo o fim” (3, q.45, a.1, c).
 Ora, para efetivar a Redenção com a morte na Cruz, e para formar a Igreja, Nosso Senhor Jesus Cristo ia submeter os apóstolos a provas duríssimas. Era muito conveniente, portanto, que fizesse conhecer experimentalmente, pelo menos a três deles, os fulgores de sua glória. Desse modo, não só se sentiriam robustecidos para enfrentar os traumas de sua Paixão, como também mais facilmente ajudariam seus irmãos a solidificar a Santa Igreja, e fortaleceriam os fiéis ao longo dos tempos.
Fulgor no Tabor, para suportar as agruras do Calvário
No mesmo tópico acima citado, São Tomás de Aquino continua a esclarecer, com sua genialidade habitual e sapiencial clareza:
“O Senhor, depois de haver anunciado a sua Paixão aos discípulos, convidou-os a lhe imitarem o exemplo. (...) Ora, o fim de Cristo, na sua Paixão, era alcançar não somente a glória da alma, que tinha desde o princípio da sua concepção, mas também a do corpo (...). E a essa glória também conduz os que imitam seu exemplo da Paixão, segundo diz a Escritura: Por muitas tribulações nos é necessário entrar no reino de Deus. Por isso era conveniente que manifestasse aos seus discípulos a sua claridade luminosa; e tal é a Transfiguração, que também concederá aos seus, segundo diz o Apóstolo (São Paulo): Reformará o nosso corpo abatido para o fazer conforme o seu corpo glorioso. Donde dizer (São) Beda: foi conseqüência de uma pia providência que, tendo gozado por breve tempo da contemplação da felicidade eterna, tolerassem mais fortemente as adversidades” (3, q. 45, a. 1, c).
Já muito anteriormente a São Tomás, o Papa São Leão Magno comentara: “Para que os apóstolos concebessem com toda a sua alma essa ditosa fortaleza, não tremessem ante a aspereza da cruz, não se envergonhassem de Cristo e não tivessem por degradante o padecer... manifestou-lhes o esplendor de sua glória, porque, embora cressem na majestade de Deus, ignoravam o poder do corpo sob o qual a divindade se ocultava... Pois, estando ainda revestidos da carne mortal, não podiam ver e compreender, de modo algum, a inefável e inacessível divindade, visão reservada na vida eterna para os limpos de coração” (Sermão 51).
 E continuando o mencionado sermão, São Leão Magno afirma: “Cada membro [do Corpo Místico de Cristo] pode almejar a participação na glória que, com antecipação, resplandeceu na cabeça. O que já antes havia sido previsto pelo Senhor, quando falava da majestade de sua vinda: então os justos brilharão como um sol no Reino de seu Pai (Mt 3, 33).”
 A Transfiguração do Senhor foi uma excepcional graça mística concedida aos três apóstolos escolhidos, no alto do Tabor. Sua recordação ficou como uma fonte de sólida confiança, que lhes permitiu suportar os maiores sofrimentos, pois, assistindo a ela, tiveram um vislumbre da luz plena e refulgente da eternidade.
“Per crucem, ad lucem”
Deus deseja conferir-nos eternamente sua própria felicidade, fazendo-nos partícipes de sua natureza no esplendor da glória. É fundamental para nós pensarmos, com constância, na glória eterna, como um prêmio imensamente grande a nós oferecido. Nada há de melhor do que essa meditação para enfrentarmos as dificuldades e as cruzes do dia-a-dia.
Muitas são as ofertas de uma felicidade passageira que encontramos hoje em dia, apresentando fórmulas “mágicas”... fora do único caminho que é Jesus Cristo e sua Igreja. Tudo não passa de pura ilusão. Fomos criados para o Céu! Eis o que nos dá ânimo, resolução e alegria. “Per crucem, ad lucem” — “Pela cruz, chegaremos à luz”.
Aqui está uma observação importante a ser feita: muitos há que nos mostram a cruz do Senhor, e isto é ótimo e digno de todo louvor! Todavia, não basta. O objetivo de nossa existência não é a dor, nem o sacrifício. Não podemos nos esquecer da luz, nosso verdadeiro destino. A cruz não é o ponto final de nosso processo humano: é apenas o caminho.
Graças místicas
A Transfiguração de Jesus fortificou as virtudes da fé e da caridade nos Apóstolos.
Enquanto a fé nos faz crer na divindade de Cristo e em suas promessas, a caridade nos conduz a uma entranhada união com Deus. São duas virtudes extremamente interdependentes. Sem a fé na esplendorosa vida eterna que nos espera, a caridade tende a desaparecer.
 Mas, se a fé e a caridade dos apóstolos tanto lucraram com a Transfiguração do Senhor, não haverá algo, nessa mesma linha, que poderá auxiliar a vida espiritual de cada um de nós?
 A resposta é inteiramente positiva. Deus derrama graças místicas sobre todos os que trilham as vias da salvação, em intensidade maior ou menor, segundo o caso. Mas ninguém está excluído de recebê-las. Quem no-lo afirma é o famoso teólogo dominicano, Pe. Réginald Garrigou-Lagrange:

 “Para esses autores, a vida mística não é coisa extraordinária, como as visões e revelações, mas algo eminente na via normal da santidade. Consideram eles que isso é comum para as almas chamadas a se santificar na vida ativa, como São Vicente de Paulo. Absolutamente não duvidam que os Santos de vida ativa tenham tido normalmente a contemplação infusa bastante freqüente dos mistérios da Encarnação redentora, da Missa, do Corpo Místico de Jesus Cristo, do preço da vida eterna, se bem que esses Santos diferem dos puramente contemplativos, no sentido de que neles essa contemplação infusa é mais imediatamente dirigida à ação.”  
É claro que tais graças místicas não isentam ninguém de realizar os esforços próprios à prática das virtudes, tal como no-lo refere em outro trecho o mesmo autor:
 “Conforme o que acabamos de dizer, vê-se que a ascética está ordenada à mística. “Acrescentemos por fim que, para todos os autores católicos, a mística que não pressupõe uma ascese séria é uma falsa mística: foi a dos quietistas.”

Um “Tabor” em nossos corações
É fora de dúvida, pois, que Deus concede “Tabores”, ou seja, graças místicas, a cada um de nós.
 Quem não terá sentido, alguma vez, uma alegria interior, um palpitar do coração, uma emoção calma mas profunda, ao assistir a uma bela cerimônia? Ao apreciar o canto gregoriano, por exemplo? Ou ao contemplar alguma imagem? Quiçá ao ver um lindo vitral banhado de luz, dentro de uma igreja silenciosa, que deixa lá fora os ruídos do mundo? São mil ocasiões em que a graça sensível nos visita, e nos concede contemplações interiores, pré-degustações da felicidade perfeita que nos espera no Céu.
 Dois Doutores da Igreja, Santa Teresa de Jesus e São João da Cruz, mestres da vida espiritual, dizem que a Providência costuma conceder aos principiantes graças místicas que depois irão experimentar novamente só no fim de suas vidas. Tal proceder divino visa fortalecer essas almas para atravessarem os períodos de aridez. É um modo comum de Deus agir: dá-nos consolações — o Tabor — para, quando vier a hora do Getsêmani, termos forças, sabendo que o fim será mais cheio de alegria e esperança.
São graças que nos animam a enfrentar os sacrifícios desta vida. Trata-se de experiências místicas que nos tornam patente quanto Jesus nos ama e quer nossa eterna glória.
Assim, ao longo de nossa existência terrena, já iremos experimentando um pouco das delícias eternas, e as tendas tão desejadas por São Pedro sobre o monte da transfiguração, Jesus as irá levantando no “Tabor” de nossos corações. Para tal, Ele exige de nós apenas uma condição: que não Lhe coloquemos obstáculos.

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