Continuação dos comentários à liturgia da Solenidade de Todos os Santos
Mons. João Clá Dias
A
ideia da felicidade eterna
Esta é a felicidade
absoluta da qual nossos irmãos, os Santos, já gozam em plenitude na
eternidade e com a qual nenhuma consolação desta vida é
comparável. Nossa ideia a propósito da felicidade é tão humana,
que julgamos, muitas vezes, possuí-la em grau máximo ao obter algo
que muito desejamos. A mera inteligência do homem não alcança a
compreensão da felicidade do Céu, pois em relação a Deus somos
como formigas que, andando pela terra, levantassem a cabeça para
olhar o voo de uma águia no céu. A diferença entre uma formiga e
uma águia é ridícula perto da infinitude existente entre a razão
humana e a inteligência divina. E ainda que, dotados de uma
capacidade incomum, passássemos trezentos bilhões de anos
estudando, nosso verbo continuaria falho e não encontraríamos
termos para nos expressarmos devidamente a respeito de Deus.
A essência divina é
definida pela teologia como o Ser subsistente por Si mesmo,9 que Se
conhece, Se entende e Se ama por inteiro, tal qual é.10 Desde toda a
eternidade, isto é, sem haver princípio, Deus, contemplando-Se, Se
compreende inteiramente enquanto Ser incriado, necessário e
superexcelente, que não depende de ninguém, que Se basta; e nisto
consiste sua felicidade absoluta. Contudo, seu próprio conhecimento
é tão rico que gera uma Segunda Pessoa, o Filho, idêntico a Ele e
tão feliz como Ele. Ambos Se amam, e deste mútuo amor entre Pai e
Filho procede uma Terceira Pessoa, também feliz: o Espírito Santo.
Assim, há três Pessoas, num só Deus, a Se conhecerem, Se
entenderem e Se amarem, numa perpétua alegria, sem origem no tempo e
sem fim, eternamente!
Um
emprestimo da inteligência divina
Pois bem, em seu infinito
amor, Deus quis dar às criaturas inteligentes, Anjos e homens, um
empréstimo de sua luz intelectual, o lumen gloriæ, para que possam
nela entendê-Lo tal qual Ele Se entende — guardadas as proporções
entre criatura e Criador —, já que, segundo explica São Tomás,
“a capacida de natural do intelecto criado não basta para ver a
essência de Deus” sem ser aumentada pela “graça divina”.” E
por mais que seccione sua luz, Ele sempre permanecerá imutável e em
nada será diminuído, pois é infinito.
O eminente dominicano padre
Santiago Ramírez define o lumen gloriæ como “um hábito
intelectual operativo, infuso per se, pelo qual o entendimento criado
se faz deiforme e torna-se imediatamente disposto à união
inteligível com a própria essência divina, e se torna capaz de
realizar o ato da visão beatífica”.12
Esse “fazer-se deiforme”
significa que quem entra na bem-aventurança e contempla a Deus face
a face se torna semelhante a Ele, como afirma São João na
continuação de sua Epístola: “Sabemos que, quando Jesus se
manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque O veremos tal como Ele
é” (I Jo 3, 2b). Só no Céu veremos a Nosso Senhor Jesus Cristo
de fato, uma vez que enquanto viveu na Terra ninguém O viu tal qual
Ele é. Nem mesmo na Transfiguração, quando tomou, enquanto
qualidade passageira, a claridade inerente ao corpo glorioso13 —
como tivemos oportunidade de analisar em comentários anteriores —,
São Pedro, São Tiago e São João chegaram a contemplar a essência
de sua divindade, pois, do contrário, a alma deles ter-se-ia
destacado do corpo.
“Todo o que espera n’Ele
purifica-se a si mesmo, como também Ele é puro” (I Jo 3, 3).
Quanto mais aumenta em nós a esperança desse encontro e dessa
visão, e, portanto, quanto mais crescemos no desejo de nos
entregarmos a Deus e de Lhe pertencermos por inteiro na caridade,
mais nos purificamos do amor-próprio e do egoísmo profundamente
enraizados em nossa natureza. Devemos ter bem presente que não
existem três amores, mas apenas dois: o amor a Deus levado até o
esquecimento de si mesmo ou o amor a si levado até o esquecimento de
Deus.14
SIGAMOS
O EXEMPLO DAQUELES QUE NOS PRECEDERAM NA GRAÇA E NOS ESPERAM NA
GLÓRIA!
O homem, ainda quando
privado da graça, tem uma apetência de infinito que não descansa
enquanto não for saciada pela união com Deus. E o que revela Santo
Agostinho, em suas Confissões: “E eis que Tu estavas dentro de mim
e eu fora, e fora Te procurava; e, disforme como era, lançava-me
sobre as coisas belas que criaste. Tu estavas comigo, mas eu não
estava contigo. Retinham-me longe de Ti aquelas coisas que, se não
estivessem em Ti, não existiriam”.15 Essa felicidade imensa e
indescritível, para a qual todos nós somos criados, só a
atingiremos seguindo os passos daqueles que nos precederam com o
sinal da Fé e que já gozam dela, por sua fidelidade a tal chamado.
Peçamos que essa
bem-aventurança eterna seja também para nós um privilégio, pelos
méritos de Nosso Senhor Jesus Cristo, das lágrimas de Nossa Senhora
e da intercessão de todos os Santos que hoje comemoramos, a fim de
um dia nos encontrarmos em sua companhia no Céu. Enquanto lá não
chegarmos, podemos nos relacionar com essa enorme plêiade de irmãos
celestes, membros do mesmo Corpo, por um canal direto muito mais
eficiente do que qualquer meio de comunicação moderno: a oração,
o amor a Deus e o amor a eles enquanto unidos a Deus. Tenhamos a
certeza de que, do alto, eles nos olham com benevolência, rogam por
nós e nos protegem.
1
SOLENIDADE DE TODOS OS SANTOS. Antífona da entrada. In: MISSAL
ROMANO. Trad. Portuguesa da 2a. edição típica para o Brasil’
realizada e publicada pela CNBB com acréscimos aprovados pela Sé
Apostólica. 9.ed. São Paulo: Paulus, 2004, p.691.
2)
Idem, Prefácio, p.692.
3)
cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. I, q.61, a.4.
4)
cf. Idem, q.5, a.4, ad 2.
5)
Cf. CLÁ DIAS, EP, João Scognamiglio. Radical mudança de padrões
no relacionamento divino e humano. In: Arautos do Evangelho. São
Paulo. N.109 (Jan., 2011); p.10-16; Comentário ao Evangelho do IV
Domingo do Tempo Comum — Ano A,no Volume II desta coleção.
6)
SÃO BOAVENTURA. Breviloquio. PV, c.1, n.2. In: Obras. 3.ed. Madrid:
BAC. 1968, v.1, p.324.
7)
BEATO RAIMUNDO DE CÁPUA. Santa Caterina da Siena. 5.ed. Siena:
Cantagalli, 1994, p.149.
8)
SCHEEBEN, Matthias Joseph. As maravilhas da graça divina.
Petrópolis: Vozes, 1952, p.29.
9)
Cf. ROYO MARÍN, OP, Antonio. Dios y su obra. Madrid: BAC, 1963,
p.47-49.
10)
cf. SAO TOMAS DE AQUINO, op. cit., q.14, a.2-4; q.20, al.
11)
Idem, q.12, a.5.
12)
RAMÍREZ, OP, Santiago. De hominis beatitudine. In I-Il Summæ
Theologice Divi Thomæ commentaria (QQ. 1-y). II P., Q.II, Sect.III,
n.298. Madrid: Instituto de Filosofía Luis Vives, 1972, t.IV, p.342.
13)
Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., III, q.45, a.2.
14)
Cf. SANTO AGOSTINHO. De Civitate Dei. L.XIV, c.28. In: Obras. Madrid:
BAC, 1958, v.XVI-XVII, p.984.
15)
SANTO AGOSTINHO. Confessionum. L.X, c.27, n.38. In: Obras. 6.ed.
Madrid: BAC, 1974, v.11, p.424.
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