Comentários à liturgia da Solenidade de Todos os Santos
Mons. João Clá Dias
A festa
dos irmãos celestes
Na
Solenidade de Todos os Santos a Igreja nos convida a ver com esperança nossos
irmãos celestes, como estímulo para percorrermos por inteiro o caminho iniciado
com o Batismo e atingirmos a plena felicidade na glória da visão beatífica.
OS SANTOS, IRMÃOS CELESTES?
Na
Solenidade de Todos os Santos a Igreja celebra todos aqueles que já se
encontram na plena posse da visão beatífica, inclusive os não canonizados. A
Antífona da entrada da Missa nos faz este convite: ‘Alegremo-nos todos no
Senhor, celebrando a festa de Todos os Santos”.’ Sim, alegremo-nos, porque
santos são também — no sentido lato do termo — todos os que fazem parte do
Corpo Místico de Cristo: não só os que conquistaram a glória celeste, como
também os que satisfazem a pena temporal no Purgatório, e os que, ainda na
Terra de exílio, vivem na graça de Deus. Quer estejamos neste mundo como
membros da Igreja militante, quer no Purgatório como Igreja padecente, quer na
felicidade eterna, já na Igreja triunfante, somos uma única e mesma Igreja. E
como seus filhos temos irmandade, conforme diz São Paulo aos Efésios: “já não
sois hóspedes nem peregrinos, mas sois concidadãos dos Santos e membros da
família de Deus” (Ef 2, 19).
Os Santos intercedem por nós e
dão exemplo
É por
isso que o Prefácio desta Solenidade reza: “Festejamos, hoje, a cidade do Céu,
a Jerusalém do alto, nossa mãe, onde nossos irmãos, os Santos, vos cercam e
cantam eternamente o vosso louvor. Para essa cidade caminhamos pressurosos,
peregrinando na penumbra da fé. Contemplamos, alegres, na vossa luz, tantos
membros da Igreja, que nos dais como exemplo e intercessão”.2
Assim,
caminhando “na penumbra da fé”, voltemos
a atenção para os Bem-aventurados — nossos irmãos, se vivermos na graça de Deus
—, pois eles estão mais perto d’Aquele que é
Cabeça desse Corpo, Nosso Senhor Jesus Cristo. Eles são motivo de
esperança para os que padecem nas chamas do Purgatório. E para nós, que
possuímos pelo Batismo o germe dessa glória da qual eles já gozam, são modelo
da santidade de vida que devemos alcançar. Todo nosso empenho será pouco para
obter que essa semente se transforme em árvore frondosa, no pleno desabrochar
de suas flores e com abundância de frutos, isto é, a glória eterna, nossa meta
última.
Precisamos
avançar, então, rumo aos que estão na presença de Deus com o mesmo desejo com
que procuraríamos nossa família, caso não a conhecêssemos, pois, entre os
membros de uma família harmônica e bem constituída existe um imbricamento, fruto
da consanguinidade, tão inquebrantável que, por exemplo, se um dos irmãos
atinge uma situação de prestígio, todos os demais se regozijam. Muito maior há
de ser a união daqueles que, pela filiação divina, pertencem à familia de Deus,
e maior também a alegria ao contemplarmos nossos irmãos louvando a Deus no Céu,
por todo o sempre, e intercedendo por nós junto a Ele.
Tais
pensamentos nos dão a clave para analisar o florilégio das leituras que a Santa
Igreja separou para esta Solenidade.
CHAMADOS A NOS REUNIRMOS NO CÉU
Na primeira
leitura, do Apocalipse (7, 2-4.9-14), é cheia de beleza e, ao mesmo tempo,
difícil de ser explicada com profundidade, em todos os seus simbolismos.
Detenhamo-nos apenas em dois aspectos que a relacionam especialmente com esta
comemoração. “Eu, João, vi um outro Anjo que subia do lado onde nasce o Sol. Ele
trazia a marca do Deus vivo, e gritava, em alta voz, aos quatro Anjos que
tinham recebido o poder de danificar a terra e o mar, dizendo-lhes: ‘Não façais
mal à terra, nem ao mar, nem às árvores, até que tenhamos marca do na fronte os
servos do nosso Deus” (Ap 7, 2-3). Este bonito trecho deixa patente que Deus só
promoverá o fim do mundo quando forem ocupados todos os lugares do Céu e a
coorte dos Bem-aventurados se tenha completado. Vemos como Deus, para além das
ofensas cometidas contra Ele e antes de enviar o castigo à Terra, cuida de seus
Santos, daqueles que Ele escolheu.
Logo em
seguida, continua São João: “Ouvi então o número dos que tinham sido marcados:
eram cento e quarenta e quatro mil, de todas as tribos dos filhos de Israel”
(Ap 7, 4). Este número dos que seguem o Cordeiro por toda parte (cf. Ap 14, 4)
é simbólico, pois a quantidade de Santos do Céu é incalculável. Ao criar o Céu
Empíreo — que, segundo São Tomás,3 foi a primeira criatura a sair das mãos de
Deus, junto com os Anjos —, tinha Ele, desde toda a eternidade, o plano de
povoá-lo com outros seres inteligentes que, além dos espíritos angélicos,
fossem partícipes da natureza divina e, portanto, sócios de sua felicidade eterna.
Eis o
apelo feito a nós na Liturgia de hoje: desejar e abraçar a via da santidade
para fazer parte destes cento e quarenta e quatro mil.
O predomínio do mal depois do
pecado original
Ora, a
partir do pecado original o homem passou a se interessar de forma intemperante
pelas coisas materiais, e aos poucos se esqueceu de Deus. Estabeleceu-se na
face da Terra a luta entre o bem e o mal, entre as volúpias da carne e o
chamado de Deus à santidade, e no relacionamento humano entrou o mal com uma virulência
extraordinária, pois este é dinâmico, enquanto o bem é apenas difusivo.4 Com
efeito, se não fosse a sustentação da graça, o mal dominaria completamente em
nós e derrotaria o bem.
Desde o primeiro Santo, até Nosso
Senhor Jesus Cristo
Isto se
faz patente logo após a saída de Adão e Eva do Jardim do Eden, na história de
seus dois primeiros descendentes, Caim e Abel. Abel era um filho da luz, reto e
justo, cujos Sacrifícios oferecidos a Deus eram aceitos com enorme benevolência
(cf. Gn 4, 4). Caim, pelo contrário, nutria em sua alma o nefasto vício da
inveja que, tendo chegado ao auge, levou-o a matar seu irmão, derramando sangue
inocente. Em seguida, tomado de amargura e depressão, em consequência de seu
pecado, Caim quis fugir da face do Senhor, com a ilusão característica do pecador
que julga poder ocultar-se de Deus, assim como se esconde do olhar dos homens
(cf. Gn 4, 8.14).
Qual
não terá sido o espanto de Eva ao carregar o cadáver de seu filho nos braços e
deparar-se, pela primeira vez, com o efeito do pecado cometido no Paraíso! A
alma de Abel, porém, no instante em que se destacou do corpo foi para o Limbo
dos Justos, à espera da vinda do Salvador que lhe abriria as portas do Céu.
Precedendo os pais, ele encabeçou o cortejo dos Santos, daqueles que, aos poucos,
constituiriam o número dos que de veriam passar desta vida à eterna
bem-aventurança.
A Encarnação do Verbo trouxe ao
mundo uma plêiade de Santos
Entretanto,
a Encarnação do Verbo e sua presença visível entre os homens trouxe ao mundo
uma plêiade de Santos: desde os mártires inocentes, até o bom ladrão que, tendo
implorado misericórdia, obteve dos lábios do próprio Deus o prêmio de ser
perdoado e santificado: “Hoje estarás comigo no Paraíso” (Le 23, 43). Quando
Jesus expirou na Cruz, sua Alma desceu ao Limbo, onde, decerto, o primeiro a
recebê-Lo foi São José, que O aguardava havia poucos anos. Mas foi no dia de sua
gloriosa Ascensão que o Redentor levou consigo essa coorte exultante de justos,
introduzindo-os no Céu a fim de começar a povoá-lo. Em certo momento, com
gáudio para os Bem-aventurados, Maria Santíssima subiu em corpo e alma, e foi
coroada como Rainha do universo.
Ficaram escancaradas as portas da
santidade
Ao
longo dos vinte séculos de História da Igreja, as moradas eternas acolheram os
mártires, os doutores, os confessores... pois foi Nosso Senhor Jesus Cristo
quem abriu definitivamente as portas da santidade a todos os homens, com a
superabundância de sua graça e sua doutrina nova dotada de potência (cf. Lc4,
32; Mc 1, 22).
Sinopse
desta doutrina é o Sermão da Montanha, cujo centro é o Evangelho escolhido para
esta Solenidade: a proclamação das Bem-aventuranças. De fato, elas são o resumo
de toda a moral católica, de toda via de perfeição, de toda a prática da
virtude, e se neste dia comemoramos as miríades de Santos que habitam o Paraíso
Celeste, é porque eles realizaram em sua vida aquilo que o Divino Mestre
delineia como causa de bem-aventurança.
Tendo
comentado este Evangelho em outras ocasiões,5 nos limitaremos agora a dar uma
síntese dos ensinamentos nele contidos, em harmonia com a Solenidade hoje
celebrada.
O contraste entre a Antiga e a
Nova Lei
Em
primeiro lugar, apreciemos o contraste desta cena do Sermão da Montanha com outro
importante discurso da História Sagrada: a promulgação da Antiga Lei, no Monte
Sinai (cf. Ex 19—23). Parece que Nosso Senhor quis estabelecer de propósito uma
contraposição entre ambos os episódios, a fim de mostrar a beleza existente na
Nova Lei que Ele veio trazer, levando a Lei Antiga a maior perfeição (cf. Mt 5,
17).
No
Sinai, Deus permanece no cume da montanha e Moisés tem de subir até lá para receber
as Tábuas da Lei. Cristo, pelo contrário, desce à meia altura do monte para Se
encontrar com o homem e entregar-lhe, Ele próprio, a Nova Lei. Assim, uma Lei é
promulgada no cimo da montanha, outra na orla. Enquanto no Sinai o homem deve
subir até Deus, na montanha em que Jesus faz seu sermão, Deus desce até o
homem.
No
Sinai, o Todo-Poderoso Se apresenta em meio a trovões, relâmpagos, escuridão e
som ensurdecedor de trombeta; na montanha, o Salvador senta-Se entre os homens,
num ambiente suave, sereno e tranquilo, sem especiais manifestações da natureza.
No Sinai, o povo tinha proibição de tocar a base do monte, pois morreria se o
fizesse; na montanha, a multidão está próxima de Jesus e pode tocá-Lo, porque
d’Ele emana uma virtude que cura a todos.
No
Sinai, foi dado a Moisés um código de leis, verdadeiro código penal, com
severos castigos para quem o transgredisse; na montanha, Nosso Senhor mostra, com
misericórdia sem limites, quais os prêmios, os benefícios e as maravilhas
concedidas por Deus a quem pratica a virtude e cumpre a Lei.
No
Sinai, Moisés representa a Lei, servindo de exemplo por seu zelo em cumprir
essa mesma Lei; na montanha, Jesus Cristo é o modelo perfeito da lei da
bondade.
No
Sinai, para ouvir as prescrições divinas poderia subir qualquer homem, desde
que fosse eleito por Deus; na montanha, porém, só o Homem-Deus, Nosso Senhor
Jesus Cristo, Segunda Pessoa da Santíssima Trindade Encarnada, podia pronunciar
aquele Sermão, pois unicamente Ele, enquanto Messias, tinha autoridade para
aperfeiçoar a Lei Antiga.
Nessa
perspectiva de bondade, Jesus proclama as Bem-aventuranças, mostrando a que alturas
é capaz de se elevar uma alma pelo florescimento dos dons do Espírito Santo,
produzindo atos de virtude heroica. Tais frutos podem brotar de maneira
isolada, mas, em geral, quando o santo chega à plenitude da união com Deus,
todas as bem- aventuranças se verificam numa única florada. Ser santo, então,
significa ser um bem-aventurado no tempo para depois se-lo na eternidade.
A filiação divina nos conteve uma
qualidade
Em que
consiste, pois, essa bem-aventurança? Na segunda leitura (I Jo 3, 1-3) desta
Liturgia, um lindíssimo trecho da Primeira Epístola de São João — o Apóstolo do
Amor, exímio espiritualista, sempre dado a ressaltar a vida sobrenatural — nos dá
a resposta, lembrando o valor da nossa condição de filhos de Deus: “Vede que
grande presente de amor o Pai nos deu: de sermos chamados filhos de Deus. E nós
realmente o somos” (I Jo 3, la). Na verdade, por ocasião do Batismo, embora a
natureza humana continue a mesma, com inteligência, vontade e sensibilidade,
acrescenta-se uma qualidade: a participação na própria natureza divina, que nos
assume por completo. A graça, explica São Boaventura, “é um dom que purifica,
ilumina e aperfeiçoa a alma; que a vivifica, a reforma e consolida; que a
eleva, a assimila e a une a Deus, tornando-a aceitável; pelo que semelhante dom
justamente chama-se graça, pois nos faz gratos, isto é, graça gratificante”.6
Sendo
um bem do espírito, não pode ser vista com os olhos materiais pois estes captam
só o que é sensível, mas comprovamos, isto sim, seus efeitos. Santa Catarina de
Sena, a quem Nosso Senhor concedera a graça de contemplar o estado das almas,
chegou a afirmar a seu confessor: “Meu pai, se vísseis o fascínio de uma alma
racional, não duvido que daríeis cem vezes a vida pela sua salvação, porque
neste mundo nada há que se lhe possa igualar em beleza”.7
Certas
imagens podem servir para termos uma ideia, ainda que pálida, das maravilhas
operadas pela graça nas almas. Imaginemos um vitral esplendoroso, com uma
perfeita combinação de cores, fabricado com vidro da melhor qualidade, contendo
até ouro na sua composição. Uma vez posto na janela, se não é iluminado, que
valor terá peça tão espetacular? Entretanto, a partir do momento em que os raios
de luz sobre ele incidem, brilhará com extraordinários matizes, desdobrando-se
em mil reflexos multicoloridos.
Outra
comparação que também nos aproxima da realidade sobrenatural é a de um litro de
álcool no qual são derramadas algumas gotas de fabulosa essência, finíssima e
de requintado aroma. Sem deixar de ser álcool, o líquido torna-se perfume, pois
é assumido pela essência.
Da
mesma forma como a luz ilumina o vitral e a essência assume o álcool — e ainda
poderíamos encontrar na natureza outras imagens ilustrativas —, também a graça
confere nova qualidade à alma humana, que é, por assim dizer, submersa na natureza
divina, como comenta Scheeben: “Se dentre todos os homens e todos os Anjos
escolhesse Deus uma só alma, para comunicar-lhe o esplendor de tão inesperada
dignidade, [...] deixaria estupefatos não só os mortais, mas ainda os mesmos
Anjos, que se sentiriam quase tentados a adorá-la, como se fora Deus em
pessoa”.8 Tal é a excelência da filiação divina!
Uma semente da glória futura
Filhos
de Deus... “nós o somos! Se o mundo não nos conhece é porque não conheceu o Pai.
Caríssimos, desde já somos filhos de Deus, mas nem sequer se manifestou o que
seremos” (I Jo 3, lb-2a). De fato, enquanto permanecemos neste mundo, em estado
de prova, temos a graça santificante, recebida no Batismo, e as graças atuais,
que Deus derrama sobre nós ao longo da nossa existência. Todavia, estamos
apenas no começo do caminho, pois, só quando contemplarmos a Deus face a face,
esta graça se transformará em glória e chegaremos ao “estado de homem feito, a
estatura própria da maturidade de Cristo” (Ef 4, 13).
Continua no próximo post
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