Continuação dos comentários ao Evangelho 1º Domingo da Quaresma - Ano A -Mt 4, 1 - 11
NOSSO SENHOR QUIS SER TENTADO
A tentação
de Jesus se deu no início de sua vida pública, logo depois de ter recebido o
Batismo de São João. Estendeu-se ao longo de quarenta dias no deserto de Judá,
região isolada, inóspita e habitada por feras selvagens. Segundo a tradição,
Ele permaneceu em oração e rigoroso jejum numa elevação existente nas proximidades
de Jericó, hoje chamada Monte da Quarentena. Encontramos uma pré-figura desse
acontecimento nas vidas de Moisés e Elias, que também se retiraram pelo mesmo
período durante o desempenho de sua missão profética (cf. Ex 34, 28; I Rs 19,
5-8).
Deus permite a tentação para o
nosso bem
Naquele tempo, 1 o Espírito conduziu Jesus
ao deserto, para ser tentado pelo diabo.
Neste
primeiro versículo, chama-nos especial atenção o fato de Nosso Senhor ter sido
conduzido pelo Espírito Santo. No Batismo do Jordão Ele fora glorificado pelo
Pai, cuja voz se ouviu enquanto o Paráclito descia sob a forma de uma pomba, em
circunstâncias que à primeira vista diríamos muito propícias para inaugurar seu
período de pregação. Ao invés disso, quis Se dirigir ao deserto. Sua atitude
nos mostra que quando somos chamados a realizar alguma obra importante devemos
rezar antes, tal como a Igreja recomenda fazer, no início de todas as atividades.
Disso
nos dá exemplo o Filho de Deus ao escolher o isolamento. E não somente com vistas
à contemplação, mas também para “ser tentado pelo diabo”, como deixa claro São
Mateus. Por que motivo isso teria sido permitido por Deus? Ora, enquanto Segunda
Pessoa da Santíssima Trindade, Nosso Senhor era incapaz de sofrer a menor tentação;
como Homem, todavia, quis padecê-la para vencer o demônio e quebrar seu poder.
Assim, o anjo decaído seria derrotado por uma criatura humana.
Satanás,
por sua vez, não tinha conhecimento de que Nosso Senhor Jesus Cristo era Deus,
e apenas julgava que fos se seu Filho, sem possuir a mesma natureza do Pai.
Ignorava também o mistério da união hipostática, embora reconhecesse que Jesus
estava na graça de Deus. Em suma, o maligno arrastava uma forte insegurança a
respeito da identidade de Cristo, e daí o interesse em tentá-Lo para descobrir
quem era, na realidade. Seu objetivo, porém, terminará frustrado e ele se verá
obrigado a partir sem saber o que desejava, pois Nosso Senhor não lhe dará
possibilidade de chegar a uma conclusão, segundo comenta São Jerônimo: “Em
todas as tentações o diabo faz isto para saber se é Filho de Deus, mas o Senhor
mede a resposta de modo a deixá-lo na dúvida”.4 E evidente que Jesus jamais
poderia ser logrado pela astúcia do demônio, uma vez que era seu Criador.
Quando
a tentação se abate sobre nós, temos a tendência de perguntar: “Por que Deus a
permite?”. Certamente para o nosso bem, caso contrário Nosso Senhor não a teria
experimentado. Lembremo-nos de que Jesus é conduzido pelo Espírito Santo, e
quem permite a tentação é o Pai, o qual dissera pouco antes: “Eis meu Filho muito
amado em quem ponho minha afeição” (Mt 3, 17). Se o Pai manifesta sua
complacência pelo Filho e, em seguida, consente em sua ida para o deserto, por
que não quererá que nós, que recebemos a vida divina por meio d’Ele, sigamos o
mesmo caminho?
De
fato, o Pai quis que tivéssemos um paradigma, Cristo Jesus, e, ao passarmos por
tentações, agíssemos em conformidade com Ele. Não podemos tomar a provação como
um desastre ou um sinal de decadência na vida espiritual, pois se assim fosse
deveríamos concluir que Nosso Senhor havia passado por uma crise espiritual nesse
episódio, o que é absurdo e até blasfemo. Muito pelo contrário, deitemos
especial empenho em analisar o procedimento de Jesus, tendo presente que o
relato das tentações é tão só uma síntese do que na realidade aconteceu. Vários
Santos mostraram-se favoráveis à hipótese de que Ele tivesse sido provado
inúmeras vezes e de todos os modos, no decorrer dos quarenta dias, como já
tivemos oportunidade de comentar.5
O demônio se aproveita das
fraquezas humanas
2 Jesus jejuou durante quarenta dias e
quarenta noites, e, depois disso, teve fome.
O
recolhimento de Nosso Senhor no deserto atinge seu auge ao cabo de quarenta dias,
e é esse o momento escolhido por satanás para tentá-Lo de forma particular, o
que novamente encerra um ensinamento, pois muitas vezes as piores provações se
abatem sobre nós nas melhores fases da vida espiritual. Quando começamos a dar
passos firmes nas vias da virtude, o demônio costuma intensificar as tentações,
visando impedir a nossa santificação. Este versículo mostra ainda como Jesus padecia
as contingências físicas próprias à natureza humana, das quais o demônio tirou
proveito para pô-Lo à prova. Depois de enfrentar longos dias sem comer nem
beber, só uma sustentação sobrenatural O mantinha vivo. Ele estava exangue,
consumindo suas últimas energias, e o tentador, por sua vez, encontrava-se à espreita
para agir. Tal é o artifício que conosco emprega satanás: ele se aproveita das
debilidades humanas. No nosso caso, de maneira diversa ao que se passava com
Nosso Senhor, sofremos as fraquezas decorrentes do pecado, como a
concupiscência, a inclinação para o mal e as paixões desregradas. Se
consentimos nas propostas do espírito das trevas, ele alcança o objetivo desejado
ao nos tentar, fazendo-nos morrer para a vida sobrenatural.
A tentação tem seu início na
sensibilidade
3 Então, o tentador aproximou-se e disse a
Jesus: ‘Se és Filho de Deus, manda que estas pedras se transformem em pães!”
O
demônio, conforme vimos, não sabia ao certo se Jesus Cristo era o Messias. E
provável que possuísse uma vaga noção a respeito disso, por ter-lhe sido
revelado quando era um Anjo de luz no Céu, mas, ainda neste caso, nem todo o
plano divino sobre a Encarnação chegou a ser de seu conhecimento. Recordemo-nos
de que São Paulo afirmou ter sido chamado a ensinar verdades ignoradas
inclusive pelo mundo angélico (cf. Ef 3, 10).
Dado o
impasse no qual estava, o tentador decidiu investir contra o Homem-Deus, tanto
para descobrir quem Ele era quanto para induzi-Lo a cair no apego à matéria.
Como no Paraíso, deu Início à conversa usando um método muito velhaco, de acordo
com a necessidade da ocasião e os elementos existentes no local. Observam os
exegetas que o deserto onde Nosso Senhor Se encontrava tinha pedras de aspecto
muito aprazível, com formato arredondado e cor dourada, parecido ao dos
deliciosos pães ázimos consumidos naquele tempo no Oriente.6 Portanto, em certo
sentido, semelhantes ao fruto proibido do Paraíso, que era “atraente para os
olhos e desejável” (Gn 3, 6), dando a ideia, sobretudo para quem tinha poder
para isso, de serem transformáveis em pão. Bastaria um ato de sua vontade e
Jesus as converteria num magnifico alimento saído do forno de sua palavra
criadora, suficiente para Lhe saciar a fome. Ele, que ainda multiplicaria pães
e peixes, transmutaria a água em vinho e operaria outros milagres sobre a comida,
estava em condições favoráveis de transformar aquelas pedras. E satanás O
estimula, em sua humanidade, para que use de suas capacidades sobrenaturais.
Eis a
tática empregada pelo anjo das trevas na hora da tentação: começa por excitar a
sensibilidade. Ao agir assim, atinge grande número de almas, sobretudo
fomentando o interesse pelos bens materiais. Estes, e em especial o dinheiro,
são simbolizados pela pedra e pelo pão, e constituem o maior empecilho para a
santificação dos que põem sua esperança nos valores deste mundo.
O
demônio mente ao fazer esta proposta a Nosso Senhor, pois promete a vida —
comer, naquela circunstância, era uma questão de subsistência —, mas é à morte
que quer conduzi-Lo, ao sugerir que use seu poder divino para satisfazer uma
mera necessidade humana. Na verdade, Ele tinha direito de operar o milagre, mas
o demônio não o sabia. Esta passagem nos confirma como satanás nunca promove a
vida nem produz união, pois só se empenha em levar as almas ao pecado e, após
lograr a queda de muitas delas, visa o aniquilamento da sociedade.
Uma vez
lançado o desafio, iria Nosso Senhor dialogar com o tentador?
Continua no próximo post.
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