Continuação dos comentários ao Evangelho – XXIII Domingo do Tempo Comum – Ano A – Mt 18, 15-20
“Não poupes a vara a teu filho”
Cornélio a Lápide, em
sua famosa obra de comentários sobre as Sagradas Escrituras, assim se exprime
sobre esta questão: “Não poupes ao menino a correção; se o castigares com a
vara, ele não morrerá, diz o Livro dos Provérbios (Noli subtrahere a puero disciplinam;
si enim percusseris eum virga, non morietur). Castiga-o com a vara e salvarás
sua alma do inferno (Tu virga percuties eum et animam eius de inferno liberabis)
(23, 13-14). A correção é para o menino o que o freio é para o cavalo e o
aguilhão para os bois.
“Os pais que são
demasiadamente indulgentes com seus filhos não os castigam, mas os expõem aos
suplícios do inferno. Quem tem excessiva indulgência para com seu filho, é o
seu mais cruel inimigo. Assim, pais e mães, se amais vossos filhos,
aplicai-lhes a vara das correções, para não acontecer que eles vão parar no
inferno; se os livrais daquelas, será para condená-los a este. Escolhei!
“Repetimos: a
salvação e a felicidade dos filhos resultam de uma boa educação e da justa
severidade dos pais. Pelo contrário, uma condescendência licenciosa e a falta
de correção são o princípio da má conduta e da condenação dos filhos: eles caem
em excessos e crimes que os levam à desgraça eterna. Quantos filhos, no
inferno, maldizem os seus pais e os encherão de imprecações durante os séculos
dos séculos, por terem negligenciado repreendê-los, corrigi-los e castigá-los,
tornando-se assim causa de sua eterna perdição!
“Compreende-se o ódio
desses desgraçados, porque tais pais lhes deram, não a vida, mas a morte; não o
Céu, mas o inferno; não a felicidade, mas a desgraça sem fim e sem limites. O
menino guarda até sua velhice e até a morte os costumes de sua infância e de
sua juventude, de acordo com as palavras da Sagrada Escritura: ‘O caminho pelo
qual o jovem começou a andar desde o princípio, dele não se afastará mesmo
quando envelhecer. (Adolescens juxta viam suam etiam cum senuerit non secedet
ab ea) (Pr 22, 6). A árvore que cedo se entorta continua com sua má inclinação
até ser cortada e lançada ao fogo”.2
Dever de gratidão de quem é corrigido
Na vida comum, não é
raro acontecer o caso de sairmos de casa distraidamente com algum desalinho em
nossa apresentação: meias de cores diferentes, roupa mal-colocada, etc. Basta
que, por caridade, alguém nos advirta para nós nos manifestarmos cheios de
gratidão; se, pelo contrário, ninguém nos avisasse, ficaríamos ressentidos.
Ora, maior motivo temos para agradecer a quem nos admoesta pela nossa falta de
virtude, sobretudo naquilo que possa vir a constituir escândalo.
Inclusive as
considerações daqueles que trilham as veredas do paganismo mostram irem no
mesmo sentido os ditames da sabedoria humana neste particular. Plutarco afirma
que nós deveríamos pagar bem aos nossos adversários porque dizem as verdades a
nosso respeito. Os amigos, segundo ele, só sabem bajular, adular e lisonjear. 3
É, aliás, o que encontramos nas relações habituais de hoje em dia, ou seja, não
nos deparamos com alguma correção a não ser quando se estabelece uma inimizade,
só aí acabamos por conhecer o que realmente os outros pensam sobre nós.
Hugo de São Vítor
sintetiza de modo sábio os bons efeitos da correção. Quando
é aceita com humildade e gratidão, ela detém os maus desejos, coloca freio às
paixões da carne, derruba o orgulho, apazigua a intemperança, destrói a
superficialidade e reprime os maus movimentos do espírito e do coração.4 Por
isso é que ganhamos um irmão quando somos ouvidos com boa disposição da parte
de quem corrigimos, pois lhe devolvemos a verdadeira paz de alma e o
reconduzimos ao caminho da salvação.
III – Correção amistosa diante de testemunhas
“Se não te escutar, toma contigo uma ou duas pessoas, a
fim de que toda a questão se resolva pela decisão de duas ou três testemunhas”.
O empenho de salvar
nosso irmão deve ser penetrado de forte zelo. Caso tenha sido infrutífera a
advertência a sós, não se deve abandoná-lo, pelo contrário, é preciso insistir.
A orientação dada
aqui pelo Divino Mestre não visa preencher o procedimento exigido pelo Deuteronômio:
“Sobre o depoimento de duas ou três testemunhas morrerá aquele que tiver de ser
morto. Mas não será morto sobre o depoimento de uma só. [...] Ambos os
contendores comparecerão diante do Senhor, na presença dos sacerdotes e dos
juízes que estiverem em exercício naqueles dias” (Dt 17, 6; 19, 17). Pelo contrário,
ela tem por objetivo utilizar o instinto de sociabilidade como poderoso
elemento de pressão psicológica para tentar “ganhar o irmão”.
Ainda estamos num
âmbito de privacidade, e por isso a reputação social do infrator encontra-se
resguardada. Por outro lado, a presença de testemunhas poderá criar-lhe certo temor
saudável e, quiçá, tornar-lhe impossível deixar de admitir sua culpa. Se ele vier
a reconhecê-la, verificar-se-á o efeito visado na primeira investida, expresso
no versículo anterior.
A eficácia deste meio
baseia-se no apreço que o transgressor possa devotar ao conceito que desfruta
junto aos outros. Não se trata, portanto, de colocá-lo entre a espada e a
parede, judicialmente falando, pois bem poderia uma ação desse teor mais
suscitar um irreversível ódio do que propriamente conduzi-lo a um sentimento de
dor por sua falta. Esses tais outros a serem convocados não devem exercer a
função de testemunhas de acusação em juízo, mas sim a de auxiliares na correção
amistosa. Portanto, a fama e o decoro do infrator serão objeto de todo cuidado
possível.
“O que devemos fazer,
caso não tenhamos persuadido nosso irmão, o Senhor o diz com estas palavras: ‘E
se não te escutar, toma contigo uma ou duas pessoas’, etc. Quanto mais
desavergonhado e obstinado for ele, tanto mais convém aplicar-lhe o
medicamento, mas sem movê-lo à cólera e ao ódio. Quando vê que a enfermidade
não cede, o médico não desiste, mas é então que ele mais se prepara para
vencê-la. Veja, pois, como nossa meta não deve ser a vingança, mas sim a emenda
pela correção; isto obtido, não manda o Senhor que em seguida se tomem dois, mas
só quando ele não quiser emendar-se. E nem mesmo neste caso quer que ele seja
enviado ao povo, mas que seja corrigido diante de um ou de dois, conforme previne
a Lei, a qual diz: ‘Que toda palavra saída da boca de duas ou três testemunhas
seja tomada em consideração’. É como se dissesse: tendes um testemunho,
fizestes a vossa parte”.5
Segundo São Jerônimo,
isso pode ser entendido também desse modo: “Se ele não quis te escutar,
apresenta-o tão-somente a um irmão; e se não atender a
este, apresenta-o a um terceiro, seja para que ele se corrija por vergonha ou
por teu conselho, seja para que veja que ages diante de testemunhas”.6 E a este
comentário deve-se acrescentar o que diz a Glosa: “Ou para que, caso ele diga
que não pecou, as testemunhas provem que pecou”.7
IV – O bem da própria Igreja
“Se recusa ouvi-las, dize-o à Igreja. E se recusar ouvir
também a Igreja, seja ele para ti como um pagão e um publicano”.
Ao chegar a esse
estágio, tornou-se patente que o método amigável fracassou; o culpado
persistirá em seu ódio, em suas mazelas, ou em seus erros, e
nesse caso não caberá senão recurso à Igreja, aquela instituição prometida por
Nosso Senhor Jesus Cristo que seria fundada sobre a pedra chamada Pedro.
Permanece ainda em foco o zelo pela alma do culpado e por seu bem particular, mas
outro bem se torna presente: o da própria Esposa de Cristo.
Continua no próximo post
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