Insegurança entre as autoridades de Israel
19 Este foi o testemunho de João, quando os judeus
enviaram de Jerusalém sacerdotes e levitas para perguntar: “Quem és tu?”
São João redigiu seu
Evangelho com o objetivo, entre outros, de contrapô-lo às calúnias e desvios
dos chefes da sinagoga, inimigos da incipiente Religião Cristã. Por esta razão,
nele estabelece uma clara distinção entre Nosso Senhor e seus discípulos, de um
lado, e os membros da classe dirigente de Israel, de outro lado. A estes — e em
particular os fariseus, neste versículo — designa com o termo “judeus”.4
Jerusalém estava
abalada. O burburinho popular em torno da pessoa de São João fez com que o
Sinédrio — composto pelas elites israelitas, sempre muito empenhadas em manter
o controle sobre o establishment e
não se descolar das suas respectivas bases na opinião pública da época —
ficasse preocupado. Pairava uma interrogação tremenda sobre aquele que estava
pregando na outra margem do Jordão, num local onde controlá-lo ouprendê-lo para
ser examinado no Templo não era tão fácil como seria na própria Cidade Santa.
Segundo o conceito
deles, parecia evidente que se São João batizava, o fazia porque era o Messias,
ou Elias ou o Profeta. A crença dos judeus em geral era que o Messias esperado abriria
perspectivas grandiosas e traria a supremacia do povo
judeu sobre todos os
outros. Era possível que Ele viesse batizando, mas seria um batismo de glória e
salvação meramente humanas. Elias, por sua vez, constituía uma figura ímpar
entre todos os profetas e, enquanto tal, também tinha o direito de batizar. O
mesmo se diga do Profeta acima mencionado. Qual dos três era João? Assaltava-os
um grande receio pelo fato de personagem tão misterioso não ter passado pela
escola deles. Então, a inteligência desses homens punha-se a campo para
descobrir sua origem, seus objetivos, e o porquê daqueles gestos, daquela atitude
e simbologia.
A pregação de São João se opunha aos desígnios do Sinédrio
Com efeito, a ideia que
tinham do Messias não correspondia a São João Batista. Este “seguia uma via
precisamente oposta. Afirmava que filhos de Abraão podiam surgir inclusive das
pedras; não prometia domínios e supremacia; não portava nem invocava armas; não
se ocupava de política; não fazia milagres; era pobre e desnudo; mas, em
compensação, toda a sua pregação se resumia numa admoestação moral” . Ele
ensinava uma série de princípios que obrigavam quem o aceitasse como um enviado
de Deus a mudar de vida. E isto era justamente o que não queriam os fariseus,
cujas doutrinas se opunham às do Precursor. Contudo, pensavam eles, quiçá esta
fosse apenas uma primeira fase de apresentação do Messias e, uma vez que ele
adquirisse poder e influência política, com o domínio da opinião pública, se
declarasse como eles desejavam. Era, portanto, vantajoso agir com diplomacia
para que este homem ficasse do lado deles.
Assim, resolveram
expedir uma comissão formada pelos mais capazes dentre os chefes religiosos
israelitas, para saber ao certo quem ele era e decidir que atitude tomar. Por
conseguinte, precisavam de uma informação clara. Sem dúvida estavam inseguros,
porque se a missão de São João fosse oficial, a fama deles ficaria comprometida.
Como explicar, então, que não tivessem sido avisados de sua vinda nem o
tivessem descoberto até aquele momento? Na verdade, eles deviam ter noção de
que já viviam no tempo do Messias, pois alguns anos antes, quandoanos antes,
quando Herodes mandou perguntar aos príncipes dos sacerdotes e aos doutores da
Lei onde Ele deveria nascer (cf. Mt 2, 3-6), foi-lhe dada a resposta correta,
prova de que se aplicavam ao estudo e à interpretação das Escrituras, e este
Esperado era tema de com versas entre eles. E não é de todo impossível que o
Espírito Santo ainda lhes tenha concedido luzes a respeito da proximidade do advento
do Salvador.
Outro motivo que os
levava a não menosprezar a figura de São João Batista era que, depois de
séculos de ausência de profetismo, Israel sentia-se apetente de uma voz que se
pronunciasse acerca do Messias futuro, O próprio Deus punha nas almas uma sofreguidão,
dando a entender que sua vinda era iminente. Se os animais têm instintos
inerrantes para pressentir certos fenômenos da natureza, com maior razão
existem na alma humana instintos que lhe permitem discernir o sobrenatural. E
difícil de conjecturar que Nosso Senhor Jesus Cristo, estando no meio deles, já
com 30 anos de idade, não tenha sido anunciado por inúmeros sinais. Um Deus que
Se encarna para viver em sociedade não causará nada na natureza? E evidente que
a presença de um Homem que não possui personalidade humana, mas é a Segunda Pessoa
da Santíssima Trindade, e de sua Mãe, criatura sem pecado original, deve ter
exercido um vigoroso influxo sobre o povo eleito, suscitando ações, imponderáveis,
insatisfações, anseios e suspenses que criavam uma expectativa crescente.
Ou controlar, ou destruir…
O clima reinante no
Jordão era acirrado devido ao entrechoque do poder constituído, em toda a sua
força, com um homem que havia aparecido abruptamente. Não nos esqueçamos de que
um ato sobrenatural feito com toda fé e compenetração tem três alcances: um é a
alegria no Céu; outro, o tremor no inferno; e também repercute na Terra, onde
as almas boas se sentem fortalecidas, os medíocres se tornam mais confusos e
nos ruins cresce a amargura, a aflição, a insegurança. Este último era o efeito
provocado no Sinédrio por São João Batista. Nicodemos e José de Arimateia
deveriam experimentar maior apetência para o bem do que antes, mas a cúpula
estava, havia algum tempo, temerosa, inquieta e agitada, mais ou menos como
alguém que está com as mãos elevadas para impressionar o público, quando nota
um outro revistando seu bolso para lhe tirar o dinheiro. Fica sem saber como
agir, porque quereria pôr as mãos no bolso e não pode fazê-lo pelo medo do
ridículo.
Como homens perversos
que eram os membros do Sinédrio, se João fosse o Messias, Elias ou um profeta,
talvez aparentassem aceitá-lo para tentar entrar em confabulação com ele. Planejariam
um modo de trazê-lo para si, a fim de dominá-lo e evitar que tomasse atitudes
opostas aos seus interesses. Se não o conseguissem, moveriam uma guerra contra
ele, procurariam silenciá-lo ou até matá-lo, como seus pais haviam feito a
muitos profetas ao longo dos séculos e, dentro de alguns anos, eles próprios
haveriam de fazer a Jesus. Ninguém sabe se a posterior prisão de São João
Batista, ordenada por Herodes, não terá sido articulada por mãos ocultas...
Meticulosamente restituidor
20 João confessou e não negou. Confessou: “Eu não sou o Messias”.
Este encontro, entre
a delegação dos representantes da Religião verdadeira e São João Batista,
proporcionava a este último a possibilidade de afirmar de forma oficial o que
não havia dito de maneira tão clara até então.
Ao narrar o
testemunho do Precursor, o Evangelista intencionalmente usa dois verbos:
“confessou e não negou”, um afirmativo e outro negativo. Apenas um seria
suficiente, mas ele quis ressaltar que houve uma confissão, ou seja, uma
declaração solene, uma manifestação da sua fé, e, ao mesmo tempo, São João “não
negou a verdade porque disse que não era o Cristo; de outra forma teria negado
a verdade [...]. Não negou a verdade porque, por maior que fosse considerado,
não se entregou à soberba usurpando para si a honra alheia”.6
É comum vermos no decorrer
da História que o homem, posto diante de dois valores espirituais, um maior e
outro menor, tende a preferir o inferior. Por exemplo, quando Gedeão venceu os
135 mil madianitas com apenas 300 homens (cf. Jz 7—8, 12), os hebreus lhe
ofereceram os adornos de ouro obtidos como despojos da batalha, e Gedeão fez
com eles um riquíssimo efod, que expôs em Efra, sua cidade. Pois bem, pouco
tempo depois os judeus caíram na idolatria, adorando este objeto (cf. Jz 8,
24-27). E a lei da gravidade espiritual.
Por isso, antes mesmo
de ser inquirido explicitamente sobre a sua missão, São João exclui por
completo a ideia de ser o Messias. De fato, todo aquele que é enviado para
anunciar alguém que lhe é superior tem verdadeiro pânico — posto por Deus e
fruto da honestidade de alma — de que o tomem por esse que anuncia. “E dever do
bom servidor não só não defraudar seu senhor na glória que lhe é devida, como
também rejeitar as honras que a multidão lhe queira tributar”.7 Em São João
esta impostação era um sexto sentido, e ele nem sequer cogitava na possibilidade
de se apresentar como o Cristo.
Bem podemos imaginar que
o Precursor tenha dito isso com alegria, porque no fundo de sua alma havia
esperança! Elesabia, por inspiração mística, que estava próxima a manifestação
pública do Messias, batizado por ele pouco antes. Toda a movimentação que vinha
crescendo às margens do Jordão, a ponto de chamar a atenção das autoridades e
estas decidirem interrogá-lo, indicava que havia chegado a hora da revelação do
Salvador.
Neste sentido, é oportuno
tratarmos aqui de um pormenor. Alguns comentaristas apresentam São João Batista
brincando com Jesus, num celestial convívio, durante a infância. Outros creem
que São João não O conheceu e, ainda menino, separou-se dos pais, pois é provável
que tenha ficado órfão cedo devido à idade avançada de Zacarias e Isabel.
Partiu, então, rumo ao deserto onde receberia inspirações do Espírito Santo e seria
preparado por Deus para a grande missão que lhe estava destinada. Somos desta
última opinião e cremos, portanto, que ele viu Nosso Senhor pela primeira vez j
á na idade adulta. Pode-se presumir o motivo que terá levado a Providência a
dispor as coisas desta forma.
São João Batista
representa toda a tradição; ele simbolizava, como numa síntese, o Antigo
Testamento e, enquanto tal, vinha anunciando a abertura do Novo. Se o Precursor
conhecesse previamente o Divino Mestre, a sua ação teria um mérito muito menor,
porque ele viria dando testemunho daquilo que já pudera comprovar. Pelo contrário,
ao participar tanto quanto possível da expectativa do povo eleito, que há
séculos implorava a vinda do Messias, seu anúncio tinha uma força sobrenatural extraordinária
para converter as multidões.
Neste momento, registrado
pela narração do Evangelista, São João falava depois de ter batizado Nosso
Senhor e, no dia seguinte, ao vê-Lo aproximar-Se, dirá aos seus discípulos: “Eis
o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo. É este de quem eu disse: Depois
de mim virá um Homem, que me é superior, porque existe antes de mim. Eu não O
conhecia, mas, se vim batizar em água, é para que Ele Se torne conhecido em Israel”
(Jo 1, 29-31). Por conseguinte, ele apontará o Messias, não como um profèta que
diz “Acontecerá!”, e sim como alguém que proclama: “Já aconteceu!”.
É muito mais
emocionante, nesta perspectiva, além de possuir maior substância intelectual, e
até cognitiva, o fato de São João ter tido o primeiro contato com o Redentor
quando este chega para ser batizado: “Eu devo ser batizado por Ti e Tu vens a
mim!” (Mt 3, 14). O discernimento de quem é o Cordeiro de Deus é exatamente o
elo entre o Antigo e o Novo Testamento, e foi naquele instante que se deu a
faísca de união entre um e outro.
Quem era, pois, este homem?
21 Eles perguntaram: “Quem és, então? És tu Elias?” João respondeu:
“Não sou”. Eles perguntaram: “És o Profeta?” Ele respondeu: “Não”.
Os enviados de
Jerusalém julgavam que São João se apresentaria como o Messias, mas a sua
primeira resposta os deixou desarvorados. E prosseguiram com novas perguntas. A
notoriedade do Precursor era tal que tinha propósito os sacerdotes e os levitas
indagarem se ele era Elias ou não. E o faziam com certo medo, porque Elias é o
varão que mandara abrir a terra, cair fogo do céu, parar a chuva (cf. Edo 48,
3), etc. Assim, à sua negativa deve ter-se seguido um alívio imediato, que não
tardou a ser sufocado por crescente insegurança, porque João já era uma figura
mítica, um homem que espantava e, decerto, tinha voz forte e segura. Podia ser
que fosse o Profeta; neste caso, iam pedir um sinal, segundo o costume judaico.
Ele não era o Profeta por excelência, isto é, Nosso Senhor Jesus Cristo, mas
sim um profeta.
São João não se dobra aos interesses do mal
22 Perguntaram então: “Quem és, afinal? Temos que levar
uma resposta para aqueles que nos enviaram, O que dizes de ti mesmo?”
As respostas do
Precursor mostraram aos emissários que com ele não valia a pena perder tempo em
tratativas diplomáticas, uma vez que não seria fácil iniciar uma amizade a fim
de aliciá-lo para o partido deles. Gostariam que São João se declarasse o
Messias, o que serviria de pretexto para convidá-lo afazer parte do Sinédrio.
Se ele fosse um político sagaz, faria uma carreira brilhante com o apoio das
autoridades, que promoveriam uma forte propaganda a seu favor e lhe dariam o
dinheiro e o prestígio necessários para se tornar o homem mais benquisto e
elogiado de toda a nação. Ora, se não era o Messias, nem Elias nem o Profeta,
quem era afinal? Eles quase suplicam uma definição, pois deviam levar alguma
informação que livrasse sua missão de ser julgada um fracasso. Mas perceberam
que partiriam de mãos vazias, com as consequências que isso lhes traria ao se
apresentarem perante seus chefes.
Continua
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